O maior ‘Comandante’ de modelos de aviões
Nélio Nunes tem uma colecção com mais de 600 modelos de aviões. O Comandante, como é apelidado, guarda somente no seu espólio réplicas que aterraram na Madeira. A história da aviação madeirense está literalmente guardada numa casa em Gaula.Mais de 600 modelos de aviões, todos com ‘visto’ (leia-se passagem) na Madeira. É este o impressionante espólio que Nélio Nunes conseguiu reunir ao longo de 22 anos, tornando-se o Comandante da maior frota do género… que a MAIS tem conhecimento.
Aeroporto de Santa Catarina nos anos 80.
A colecção do Comandante, como é carinhosamente apelidado por colegas de profissão e amigos, confunde-se com a história recente da Madeira. Aliás, a ligação aérea continente-Porto Santo-Madeira acaba por ser um dos expoentes máximos da autonomia político-administrativa que a Região conquistou faz agora precisamente 40 anos. “A minha colecção representa também os sinais dos tempos”, refere.“Por vezes querem oferecer-me utensílios ou até modelos de aviões que consideram interessantes. Mas se não passou pela Madeira ou se não está directamente ligado com a história da nossa Região não me interessa. Tudo está conjugado e há uma história por trás de tudo o que mostro aqui”, aponta, mostrando o espaço que fica no sótão da sua casa, situada em Gaula, com uma vista privilegiada sobre a baía e, claro, para o aeroporto internacional da Madeira.Mas afinal como surge este anseio, quase obsessivo, de reunir modelos de aviões que passaram pelo aeroporto madeirense? De berço, pois claro. “O meu pai era tractorista de reboque de avião no aeroporto e eu passava muito tempo na placa a observar tudo e fiquei fascinado com a ideia de um dia também eu poder pilotar um avião”, explicou.Não estranhou, portanto, que o agora Técnico de Tráfego de assistência em escala (TTAE) tenha optado, primeiro, por se alistar na Força Aérea como técnico manutenção de aeronaves (TMA) até que um dia, um Major amigo lhe deu um conselho. “Estávamos em plena Guerra do Golfo (1990/1991) e disse-me que devia sair caso contrário arriscava-me a ter de ir para lá”. Seguiu a sugestão e ainda pensou continuar a sua formação em aeronaves na Escola de Tires mas logo percebeu que a meta era inalcançável.“Em Tires informaram-me que teria de cumprir seis meses de curso e ainda mais dois anos de prática para tornar-me um TMA com carteira profissional. Para além disso era preciso pagar 900 e tal contos sem quaisquer garantias de sucesso e isso era muito dinheiro na altura. Por isso decidi arrumar as minhas coisas e regressar à Madeira”, notou.Manteve-se, contudo, ligado ao fenómeno da aviação, ingressou na Transportadora Aérea Portuguesa, sendo o funcionário 21971 (todos têm um registo do género) até aos dias de hoje e valida positivamente o comportamento da companhia. “Relativamente aos aviões é normal que alguns aparelhos sofram com o tempo, mas hoje em dia não há qualquer condicionante e estou certo que a TAP vai continuar a pautar a sua actuação pela qualidade acima da média”, vaticina.Foi quando já estava a trabalhar na TAP que obteve o primeiro modelo. Seguiram-se outros, espaçadamente, até que decidiu acelerar a angariação de mais modelos a fim de obter uma colecção de peso com o objectivo de retratar os 50 anos do aeroporto madeirense.É numa sala improvisada que monta todos os modelos comprados. “Costumo dizer que é a minha linha de montagem. Até porque ao contrário do que muitos pensam, a maior parte dos modelos chegam todos por montar e ainda é necessário um pouco de trabalho e paciência”, explica.Lamenta o facto de não existirem “lojas em Portugal que apostem nestes produtos”, apesar de recentemente, um amigo no aeroporto já ter percebido que os modelos têm saída. “Agora consigo alguns cá. Mas a esmagadora maioria dos modelos que tenho tive de comprá-los fora, por encomenda ou na internet”, o que acaba por tornar mais onerosa a compilação da sua extensa colecção.São inúmeros os modelos de aviões que representam também a evolução das companhias aéreas, algumas das quais já extintas, outras que acabaram por ceder ao marketing financeiro durante pequenos períodos. “Para quem gosta e até para quem está pouco familiarizado com a história da aviação, os aviões que passaram pela Madeira são capazes de ilustrar muito do que se passou durante as últimas décadas. As apostas que foram feitas e depois não deram certo, as rotas que as companhias aéreas entenderam apostar, enfim, a Madeira é um ponto importante no Atlântico”, constata.
Nélio Nunes acredita que a sua colecção pode ser aproveitada para ilustrar a história da aviação madeirense e disponibiliza-se para o efeito
Na sua colecção não podia faltar, pois claro, o primeiro de todos a aterrar em Santa Cruz oficialmente, no então aeroporto de Santa Catarina, o Super Constellation, com capacidade para pouco mais de 80 passageiros. Decorria o ano de 1964. Antes, a vinda para a Madeira, tinha mesmo de ser efectuada por via marítima e Nélio Nunes até tem os horários desse tempo. “Tinham de aterrar no Porto Santo e depois apanhavam o Lisbonense até à Madeira, viagem de barco que demorava mais quatro horas e meia”, revela.
Chegavam ao Porto Santo no Douglas Skymaster C-54, numa viagem realizada durante cerca de 2 horas e 45 minutos. O primeiro piloto a fazer a ligação continente-Porto Santo foi o histórico Amado da Cunha, com quem Nélio Nunes teve oportunidade de privar não há muito tempo. “Uma pessoa muito simpática e com uma grande história de vida”, recorda, mostrando o livro biográfico do antigo comandante da TAP assinado pelo próprio com dedicatória especial à sua pessoa. Amado da Cunha faleceu há cerca de dois anos “mas fica para sempre ligado à história de sucesso da TAP”.
Pelo Porto Santo passou também o primeiro avião a jacto da TAP, o “Caravelle VI-R”, designação em homenagem ao tempo dos descobrimentos e que Nélio Nunes também exibe com satisfação no seu espólio. Já o primeiro Boeing 727 -100 Lufthansa, em finais da década de 60, foi o primeiro jacto na Madeira a título experimental, com a finalidade de ser adquirido pela TAP, e cujos modelos também constam entre os 600 de Nélio Nunes.
No início dos anos 60 a ligação aérea era feita para o Porto Santo e depois era o Lisbonense que assegurava a viagem para o Funchal, como demonstra a brochura da época.
Avião do desastre de Novembro de 1977
Mas, como em tudo na história, a colecção do ‘Comandante de Gaula’ mostra igualmente o pior acidente da TAP, precisamente no aeroporto de Santa Catarina, a 19 de Novembro de 1977. O Boeing 727 – 200 “Sacadura Cabral”, comprado à Boeing, foi sujeito a um conjunto de “azares, uma espécie de tempestade perfeita, que terminou num desastre de proporções inimagináveis, especialmente por todos os que o presenciaram/viveram”, sublinha.
A primeira recordação de Nélio Nunes do momento acaba por ser indirecta. “Apercebi-me que algo estava mal quando acordei e eram 3 horas da manhã e o meu pai, que trabalhava no aeroporto, ainda não tinha chegado a casa”. E continua: “Mais tarde comecei a perceber a dimensão do desastre pela quantidade de caixões que foram colocados na capela de Santa Cruz, mas ainda houve alguns corpos que simplesmente não apareceram”, lembra.
O Boeing 727 – 200 vinha de Bruxelas, com passagem por Lisboa, e a tripulação, segundo relatos de então, “apresentava-se já bastante cansada” apesar das condições atmosféricas também serem especialmente adversas na noite de 19 de Novembro de 1977. “Para já tratava-se de um avião bastante potente para a época, e não conseguiu fazer a travagem por causa de uma série de condições contrárias ao que deveria ser normal. Santa Cruz estava sob o efeito de uma frente fria medonha e a água que estava na pista criou uma almofada de ar que fez com que o avião deslizasse. O piloto ainda fez duas tentativas de aproximação à pista antes de acontecer o acidente”, refere.
De facto, a terceira tentativa de aterragem acabou na morte de 131 pessoas (6 dos 8 tripulantes e 125 dos 156 passageiros). Sobreviventes foram 33. Por culpa do acidente foram feitas diversas alterações. “A TAP nunca mais voou com o Boeing 727 -200 para o Funchal, a pista foi aumentada e só o comandante pode agora aterrar no aeroporto e somente depois de muitos treinos”.
Hoje em dia acidentes deste tipo “não acontecem”, mas continua a haver riscos normais associados, “como é normal em qualquer meio de transporte”. “São os pássaros o principal inimigo mesmo nos dias de hoje. Um pequeno pássaro pode causar a queda de um avião de grandes proporções, por isso é que os aeroportos têm instrumentos para afastar as aves do espaço aéreo”, aponta.
E isto de ter quase todos os modelos de aviões que já aterraram em solo madeirense, dá também para captar aqueles que registaram anomalias, como um “TAP 320 que tinha a bandeira ao contrário”. “Enganaram-se e trocaram a ordem das cores”, frisou, indicando o modelo em causa.
Nélio Nunes promete continuar dedicado em aperfeiçoar o seu espólio e até já tem ideias para tornar o espaço mais apelativo, não obstante até considerar torná-lo público caso exista interesse de alguma entidade para tal. “É o meu tabaco. Já gastei muito dinheiro com isto, mas acho que a história da Madeira também está aqui representada com esta colecção e a de outros colecionadores que existem na região”.
Da casa onde comanda a sua enorme ‘frota’, Nélio Nunes tem uma vista privilegiada para o aeroporto. Lugar onde cresceu e posteriormente se estabeleceu profissionalmente.
O Super Constellation em 1964 foi o primeiro a aterrar no aeroporto de Santa Catarina. A imagem retrata a presença de bombeiros durante o abastecimento de combustível do avião.
Acto de pirataria que ficou por contar
O interesse de Nélio Nunes pela história da aviação comercial, com incidência no destino Madeira, resultou em aprendizagens contínuas que tem conseguido fazer passar a outros. Ainda recentemente realizou uma palestra na escola de Santa Cruz, utilizando também imagens únicas que conseguiu reunir (algumas das quais mostramos nesta reportagem).
Histórias são também várias, algumas bem recentes que prefere não identificar por motivos profissionais e de amizade, outras mais antigas que também ficaram por contar e que o ‘Comandante’ aproveita agora para registar através da MAIS, como um acto de pirataria ocorrido em 1977, curiosamente um pouco antes do fatídico acidente que vitimou 133 pessoas.
O comandante Carlos Varanda acabou por ser “vítima e protagonista ao mesmo tempo”, quando um passageiro húngaro quis desviar o avião, que vinha em direcção ao Funchal, para Marrocos. “O húngaro encostou um objecto ao mecânico de bordo e tanto ele como o mecânico aluno ficaram sem reacção. Mas o piloto saiu e resolveu a questão, agredindo o húngaro”. Mais curioso foi o que se passou no Funchal. “Chegado à Madeira, o piloto levou o pirata à polícia no Funchal mas como não havia embaixada, voltou a levá-lo consigo para Lisboa à sua responsabilidade”.
O 6421 da TAP
Nélio Nunes fala com carinho do amigo ‘TAP 6421’. António Fernandes, que trabalhou desde 1968 até 2002 na companhia aérea, é um dos mais reconhecidos funcionários da transportadora. É conhecido como o ‘paparazzo’ de serviço e uma “pessoa amiga”.
“Fotografa por prazer e é ele que consegue captar todos os momentos que mais tarde acabamos por guardar com carinho, como é o meu caso”. O fotógrafo de serviço ganhou o estatuto de ‘paparazzo’ da TAP a partir do momento em que se reformou, já lá vão 14 anos.
Nélio Nunes acredita que são pessoas como António Fernandes que mantêm viva a chama da TAP. “Conhece toda a gente e está em todos os momentos, sejam mais ou menos importantes. Está sempre pronto para colaborar”. Nunes agradece a boa vontade do 6421 assim como “centenas de outras pessoas”. (revista Mais /assinantes)
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