Diz o historiador Manuel Lof:
1961: quando começou a guerra?
«Há 60 anos, a 9 de junho de
1961, Portugal era condenado
pela primeira vez no Conselho
de Segurança das Nações
Unidas por causa da Guerra
Colonial. Nove dos 11 países
representados votaram a favor, incluindo os
EUA (principal motivo de preocupação e
irritação para Salazar), de uma resolução
que recordava a Portugal o dever de
proceder à “transferência de todos os
poderes, sem condições ou reservas, para as
populações dos territórios [sob dominação
colonial]” e apelava à “cessação de todas as
medidas repressivas” em Angola que o
Governo português adotara desde a rebelião
de fevereiro, em Luanda, recordando o seu
dever de “respeito dos direitos humanos e
das liberdades fundamentais” das
populações sujeitas ao seu domínio colonial.
Nesse mês de junho, as tropas que Salazar mandara para Angola depois do seu discurso
do “depressa e em força” estavam a começar
o processo de reconquista do Norte. Três
meses antes, os massacres do 15 de Março
(em que terão morrido 800 colonos
portugueses e várias centenas de serviçais
angolanos) tinham dado lugar à organização
de milícias de colonos, que, com a ajuda das
primeiras tropas enviadas para o Norte,
terão sido responsáveis pelos chamados
contra massacres perpetrados nos primeiros
seis meses nos quais se estima tenham sido
mortos 30 a 50 mil angolanos. As notícias
das represálias portuguesas circulavam
livremente em Angola, transformando em
heróis figuras como o alferes Robles e o
capitão Mendonça, mas sempre na condição
de não serem abertamente divulgadas pelos
meios de comunicação por forma a não
alimentar as campanhas internacionais
contra a repressão portuguesa.
É que esta não começara no Norte, nem
depois do 15 de Março. Começara em
fevereiro, e diretamente em Luanda, como
represália pelas duas tentativas (4 e 11 de
fevereiro) de assalto feitas por
independentistas angolanos para libertar
vários presos políticos que receavam a sua
iminente transferência para Portugal. Em
resposta aos cinco guardas mortos (face a 54
independentistas, no mínimo), muitos colonos lançaram-se logo no primeiro dos
funerais em represálias desenfreadas sobre
os habitantes dos muceques de Luanda, não
simplesmente no calor dos acontecimentos,
mas ao longo do resto do mês de fevereiro.
James Wardrop, o cônsul britânico na
cidade, descreveu como, “noite após noite,
brancos armados de gatilho fácil
[trigger-happy] Fizeram incursões nos bairros
nativos, matando os habitantes e queimando
as suas palhotas”.
Com a chegada de refugiados a Luanda
vindos do Norte depois do 15 de Março, o
processo recomeçou, desta vez, segundo as
informações que chegavam ao consulado, já
com a participação “menos inibida” [sic] de
soldados recém-chegados de Portugal que se
juntavam a colonos em carrinhas de caixa
aberta e iam literalmente fazer tiro ao alvo
para os muceques. Estava-se em Luanda,
não nas fazendas do Norte. No início de
maio, três meses depois dos assaltos às
cadeias e seis semanas depois do 15 de
Março, os raides aos muceques
continuavam.
A desvalorização que na memória coletiva
portuguesa se faz do 4 de Fevereiro decorre
essencialmente da omissão pura e simples
destes acontecimentos. A memória
portuguesa da violência concentra-se na que
foi praticada contra fazendeiros portugueses e muitos dos seus serviçais mas, na sua
grande maioria, tende a omitir as represálias
maciças praticadas depois do 15 de Março no
Norte de Angola e a ignorar, talvez pelo
sucesso da censura, aquela que vinha sendo
praticada desde fevereiro pelos colonos nos
muceques de Luanda. Fora esta, aliás, que
levara a que, ainda em março, antes dos
massacres do Norte, a questão fosse
discutida no Conselho de Segurança, mas
ainda sem consequências. O que se não sabia
em Portugal, divulgava-se por todo o mundo.
Como em todas as histórias, situar o início
dos processos históricos é o primeiro
procedimento argumentativo para os
explicarmos. Quando falamos de conflitos
que envolvem violência, e violência de
massa, situarmos num momento ou noutro o
seu início tem sempre implicações de
natureza moral que contribuem
decisivamente para o processo de atribuição
de responsabilidades. Dizer que a guerra em
Angola começou com os massacres do 15 de
Março e não com a rebelião do 4 de Fevereiro
em Luanda e as represálias que se lhe
seguiram ajuda à narrativa da violência
legítima, como se tivessem sido os
independentistas a provocar a guerra.»
(fonte: jornal Público)
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