Numa entrevista ao jornal brasileiro Correio da Manhã de 10 de Novembro de 1945, à pergunta «É exacto que não deu aulas em Portugal?», António Aniceto Monteiro respondeu:«Não. Dei muitas aulas particulares, desde 1936 até à minha vinda, e desenvolvi no meu sector grandes esforços. Simplesmente, recusei assinar um papel de compromisso político para poder leccionar... matemática. Por isso não me nomearam; nem modesto funcionário podia ser lá. Teria que morrer à fome, com os meus, doutorado pela Sorbonne.»
Para compreendermos bem que compromisso político era esse, lembremos que Portugal vivia desde o golpe militar de 28 de Maio de 1926 debaixo de uma ditadura que rapidamente adquiriu contornos fascistas, com as suas polícias, as suas prisões, os seus tribunais e as suas leis. Em 13 de Maio de 1935 é publicado o Decreto-lei n.º 25317 que, no seu artigo 1º, dizia o seguinte:
«Os funcionários ou empregados, civis ou militares que tenham revelado ou revelem espírito de oposição aos princípios fundamentais da Constituição Política ou não deem garantias de cooperar na realização dos fins superiores do Estado serão aposentados ou reformados, se a isso tiverem direito, ou demitidos em caso contrário».
Foi invocando este decreto que muitos funcionários foram afastados daí em diante. Logo no dia seguinte à saída deste decreto, 14 de Maio, foram afastados 33 funcionários, entre os quais professores e militares.
No ano seguinte, 1936, no dia 14 de Setembro, sai o Decreto-lei n.º 27003 que diz:
«Para admissão a concurso, nomeação efectiva ou interina, assalariamento, recondução, promoção ou acesso, comissão de serviço, concessão de diuturnidades e transferência voluntária, em relação aos lugares do estado e serviços autónomos, bem como dos corpos e corporações administrativos, é exigido o seguinte documento com assinatura reconhecida: Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas. (...)
Os directores e chefes dos serviços serão demitidos, reformados ou aposentados compulsivamente sempre que algum dos respectivos funcionários ou empregados professe doutrinas subversivas, e se verifique que não usaram da sua autoridade ou não informaram superiormente».
Este decreto impunha que o candidato a um emprego público se humilhasse renunciando às suas convicções e aos que tinham responsabilidades na administração obrigava-os a fazerem de polícias ou de delatores. Em resumo, colocava pessoas perante o angustiante dilema: ou perderem o emprego ou perderem a honra.
Foi o compromisso «Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas» que António Aniceto Monteiro se recusou a assinar. Ele não foi o único, longe disso. Por exemplo, quando, em 1940, o director de programas da Emissora Nacional, Pedro Prado, amigo e antigo colega de Conservatório de Fernando Lopes-Graça, o convidou para assumir a direcção da secção de música da estação, o músico recusou [LL], justamente por não querer assinar o compromisso imposto pelo Decreto-lei n.º 27003. Lopes-Graça passou dificuldades e chegou a pensar em emigrar [LL]. Apesar disso, ajudou a subsidiar a revista Portugaliae Mathematica quando, em Dezembro de 1950, uma primeira audição de uma sonata sua foi realizada, pela Junta de Investigação Matemática, no cinema Batalha, no Porto [RLG].
Mas não se pense que estas atitudes de grande firmeza perante o opressor são um exclusivo português. É de assinalar a similitude destes comportamentos com aqueles que Einstein defendeu mais tarde aquando do macartismo, nos EUA.
Em 1932 «The Woman Patriot Corporation» enviou ao Departamento de Estado dos EUA uma carta denunciando Albert Einstein: «Nem mesmo Stalin está filiado em tantos grupos internacionais anarco-comunistas». É o primeiro documento de um enorme ficheiro organizado pelo FBI contra o famoso físico que apenas seria encerrado com a sua morte. Einstein só fixaria residência nos EUA, fugido do terror nazi, em 1933; em 1940, obteria a cidadania americana.
Nos EUA, o período que vai do final dos anos 40 (início da chamada Guerra Fria) até meados da segunda metade dos anos 50 ficou conhecido pela perseguição sistemática a todas as pessoas ou instituições consideradas «subversivas», em particular as comunistas ou vistas como tal. Muitas pessoas foram chamadas a comissões do senado para testemunhar, tendo-se distinguido nessa «caça às bruxas», pela sua sanha persecutória, o senador Joseph McCarthy.
Einstein foi intensamente vigiado pelo FBI e J. Edgar Hoover teria gostado de o denunciar publicamente, mas isso era muito complicado dado o prestígio internacional do físico. Este, que sempre tinha apoiado os direitos humanos e o pacifismo, nos últimos anos da sua vida dedicou-se a lutar activamente contra o macartismo. Muitas pessoas perseguidas procuraram o cientista simplesmente batendo-lhe à porta de casa. Einstein recebia-as informalmente e elas, nervosas de início, rapidamente se sentiam confortáveis e à vontade. Pode sentir-se um pouco desse ambiente de confiança quando se vê uma fotografia do cientista com William Frauenglass, professor de liceu em Nova Iorque, e esposa, tirada pelo filho de ambos.
William Frauenglass foi chamado a depor em 1953 e recusou. Para tentar evitar ser demitido por esse facto, escreveu a Einstein pedindo-lhe apoio. Este respondeu-lhe em carta datada de 16 de Maio [THP] que foi publicada na primeira página do «New York Times» de 12 de Junho:
«O problema com o qual os intelectuais deste país estão confrontados é muito sério. Os políticos reaccionários conseguiram instilar no público a suspeição sobre todas as actividades intelectuais agitando um perigo vindo do estrangeiro. Tendo sido bem sucedidos, pretendem agora suprimir a liberdade de ensinar e privar dos seus postos de trabalho todos aqueles que se mostrem insubmissos, i.e., matá-los à fome.
O que deve fazer a minoria de intelectuais contra este mal? Francamente, eu só vejo a maneira revolucionária da não cooperação no sentido de Gandhi. Todo o intelectual que seja chamado perante uma das comissões deve recusar-se a depor, i.e., tem que estar preparado para ser preso e ficar arruinado economicamente, o que significa o sacrifício do seu bem-estar pessoal no interesse do bem-estar cultural deste país.
[Todavia] esta recusa a depor [não] deve ser baseada [no conhecido subterfúgio de invocar a Quinta Emenda contra uma possível auto-incriminação mas] na posição de que é vergonhoso para um inocente cidadão submeter-se a tal inquisição e que esta espécie de inquisição viola o espírito da constituição. Se muitas pessoas estiverem dispostas a dar este passo, serão bem sucedidas. Caso contrário, os intelectuais deste país nada melhor merecem do que a escravatura que lhes é destinada.»
Entre parêntesis rectos, uma parte não incluída no jornal, a pedido de Frauenglass a que Einstein acedeu, facto de que o físico se arrependeu mais tarde. Einstein defendia que alguém que fosse chamado a depor perante uma comissão do Congresso devia invocar a primeira emenda da Constituição dos EUA, que garante a liberdade de opinião e associação. Segundo ele, era errado invocar a quinta emenda, que confere a prerrogativa de uma pessoa não se auto-incriminar, porque tal seria admitir que o exercício de um direito (ser membro de um partido, por exemplo) pudesse ser incriminatório.
Ainda nesse ano, Al Shadowitz, também físico, outra testemunha que se recusou a responder, invocando a primeira emenda, alegou que estava a seguir o conselho do Professor Einstein.
Corliss Lamont, um filósofo socialista, que foi chamado a depor, também em 1953, negou ser – ou de alguma vez ter sido – comunista e invocou a primeira emenda para não fazer mais declarações. Enviou esse depoimento a Einstein. Este respondeu-lhe em carta datada de 2 de Janeiro de 1954 [TG] em que é bastante explícito sobre a sua posição:
«Agradeço-lhe ter-me enviado o seu excelente depoimento o qual, evidentemente, eu já tinha visto. Através da sua atitude, prestou ao país um importante serviço. Há um ponto no seu depoimento que lamentei. É a sua declaração de que nunca foi membro do Partido Comunista. A condição de membro de um partido é uma coisa da qual nenhum cidadão tem qualquer obrigação de prestar contas.»
A correspondência entre Einstein e Lamont continuou (algumas cartas estão na rede) e é através dela que se conhece o texto completo da carta a Frauenglass publicada no New York Times, porque o físico lhe enviou uma cópia.
No seu livro sobre Einstein e o FBI, Fred Jerome faz o seguinte justo comentário:
«É difícil enfatizar o impacto electrificante do desafio de Einstein no ânimo de jovens professores e cientistas, entre outros, face à terrível escolha: o posto de trabalho ou a auto-estima. Einstein tinha publicamente desafiado, por duas vezes [casos Frauenglass e Al Shadowitz] em seis meses, os investigadores do Congresso.» [FJ]
Monteiro foi sempre um insubmisso – cientificamente, socialmente e politicamente – e tinha uma perspectiva ética próxima da de Einstein. O dilema com que Monteiro se confrontou, tanto em Portugal como, mais tarde, no Brasil, foi o de escolher entre «morrer à fome» e emigrar, uma vez que nunca quis abdicar das suas convicções.
https://resistir.info/portugal/j_rezende_a_monteiro.html