Para a corrupção ser combatida com a “mínima eficácia” é preciso “libertar” a polícia de investigação criminal de qualquer ligação ao poder executivo, diz o histórico dirigente da PJ, numa entrevista, a pretexto do lançamento do seu livro.
Para José Braz,De que “voragem securitária” na nossa lei de Segurança Interna fala no livro Ciência, Tecnologia e Investigação Criminal, que acaba de lançar? A Lei de Segurança Interna ( LSI), de 2008, consolida de forma clara uma via doutrinária, absolutamente hegemónica, que reduz a investigação criminal a uma das muitas valências contidas num conceito exacerbado de segurança. Temos um Código de Processo Penal ( CPP) que nos diz que a investigação criminal é um instrumento da ação penal, promovida e dirigida por uma magistratura, e uma LSI que nos diz que é um instrumento da segurança, da competência do governo. Confundem- se e amalgamam- se deliberadamente, conceitos tão distintos como segurança e justiça, com o objetivo de transferir competências e poderes do judicial para o executivo, desequilibrando o sistema de separação dos poderes do Estado. E qual a melhor forma de combater as grandes ameaças globais, como o terrorismo, a cibercriminalidade, o tráfico de droga? A montante, através de uma forte intervenção preventiva e reguladora. A jusante, através de uma investigação criminal judicializada e desenvolvida por uma polícia inserida no poder judicial e dotada de elevados níveis de especialização e tecnicidade. Em investigação criminal, o que é relevante é a partilha de informação e não a dispersão de competências. Deve ser valorizada a especialização, a complementaridade e a convergência e não a sobreposição e a concorrência. É isto que a realidade nos vem mostrando e que alguns interesses instalados teimam em não querer ver. Refere- se à partilha de competências na investigação de crimes que, desde 2000, a Polícia Judiciária ( PJ) foi obrigada a fazer com a GNR e a PSP? É hoje evidente que o modelo de organização da investigação criminal introduzido pela Lei 21/ 2000 não rentabilizou os recursos disponíveis, não promoveu a partilha e a complementaridade, nem melhorou a capacidade global de resposta. Bem ao contrário, aumentou a conflitualidade organizacional, a sobreposição e a redundância, atingindo- se mesmo, em matéria de custos, uma irracionalidade perdulária, com a triplicação ou quadruplicação de valências funcionais. Este modelo estimula a hipervalorização da componente repressiva em detrimento da componente preventiva e fiscalizadora, em forças de segurança, histórica e matricialmente, para elas vocacionadas, o que é uma péssima opção de política criminal, com efeitos deletérios a médio prazo, quer no sistema de segurança, quer no sistema de justiça. Em suma, o atual modelo é mais problema do que solução. No seu livro diz que para punir a corrupção no Estado é preciso “libertar” a investigação criminal do poder executivo. Não foi suficientemente autónoma a investigação dos recentes casos? É hoje claro aos olhos de todos que o crime organizado infiltrou o aparelho de Estado e tem um peso e uma influência significativas nos centros de decisão política, económica e administrativa. Para perseguir e punir este tipo de delinquência com o mínimo de eficácia é fundamental, além de vontade política traduzida em leis adequadas, um poder judicial verdadeiramente independente – que felizmente existe em Portugal –, mas também uma polícia de investigação criminal inserida no judiciário e liberta de quaisquer vinculações ou tutelas orgânico- funcionais do poder executivo. A PJ devia estar integrada no MP, como tem sido defendido por alguns setores da PJ e do MP? Num Estado de direito que respeita verdadeiramente a separação de poderes, justiça e segurança são realidades distintas, e uma polícia de investigação criminal que, por vocação e natureza, coadjuva a justiça não é uma força de segurança e, por conseguinte, deve estar inserida no poder judicial, não se ( con) fundindo, porém, com qualquer magistratura. Retirando a investigação criminal das polícias de segurança pública, que papel lhes seria reservado? A investigação criminal é o fim da linha. Antes, há todo um conjunto de estratégias preventivas, dissuasoras, fiscalizadoras e reguladoras. Não se pode pedir à investigação criminal que resolva todos os problemas, mesmo concentrando nela recursos que deviam atuar a montante. No seu livro diz que a proliferação de escutas e de videovigilância transforma a investigação numa espécie de “pesca de arrasto”, em vez de “pesca à linha”. O que o faz concluir isto? A investigação criminal não deve ter como ponto de partida a informação cruzada, obtida através de sistemas de interceção telefónica a funcionar em rede e que, em termos materiais, escapa a qualquer controlo jurisdicional, conjugados com sistemas de videovigilância cuja instalação foi autorizada para uma atuação preventiva e dissuasora. Num Estado de direito, a prova ou o simples conhecimento de factos passados ou futuros não pode ter como fonte um big brother que escuta e vigia indiscriminadamente grupos ou territórios, selecionando alvos em função de dados obtidos indiscriminadamente. Isso não é a investigação criminal prevista no CPP, mas uma outra coisa que constitui seguramente um perigoso caminho. Que caminho é esse? É o caminho e o futuro de uma investigação feita num contexto securitário, totalmente alheio a uma cultura judiciária que respeita os direitos fundamentais e os valores do direito penal democrático. (com a devida vénia DN/Lisboa de hoje)
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