sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Em 1973, a Guiné vivia sob o fantasma da Índia

 A queda da ditadura e do Império foi lenta. Os anos 1970 do século passado aceleraram o processo e potenciaram o seu desenlace, numa imparável contagem decrescente.

A 9 de Setembro de 1973, na Herdade do Sobral, em Alcáçovas, Ferreira do Alentejo, decorreu a primeira reunião de capitães que esteve na origem do derrube da ditadura. Em África, Portugal tinha guerra em três frentes e, na mais dura, Guiné, vivia-se sob o fantasma da Índia: a rendição a 19 de Setembro de 1961 do governador-general Vassalo e Silva à invasão por tropas da União Indiana de Goa, Damão e Diu, que levou à sua expulsão das Forças Armadas e os seus homens a serem considerados traidores pelo regime de Lisboa. “O ano de 1973 foi o pior de todos da Guerra Colonial na Guiné. Vivemos os três G: Guidaje, Guileje e Gadamael”, relata ao PÚBLICO o coronel Jorge Sales Golias, autor de A Descolonização da Guiné-Bissau e o Movimento dos Capitães. Entre Abril e Maio, o então capitão de 32 anos assistiu a três desastres militares “Em Guidaje, no Norte, na fronteira com o Senegal, houve um cerco de 53 dias ao quartel do Exército, estiveram envolvidos centenas de militares, comandos, pára-quedistas, fuzileiros, milícias e até a companhia de Cavalaria de Salgueiro Maia que, já finda a comissão, foi enviada para a frente por mais seis meses”, refere. Na resistência, contra-ataque e libertação do cerco também estiveram os Comandos Africanos do major Almeida Bruno e os homens dirigidos pelo capitão comando Carlos Matos Gomes. “O PAIGC tinha tanques, aviões e os mísseis Strela, o Exército acabaria por atacar a base no Senegal, numa batalha quase corpo a corpo”, continua. Assim se rompeu o cerco. Foi nos céus de Guidaje que os mísseis soviéticos acabaram com a tradicional supremacia aérea portuguesa, e abateram os dois primeiros North American T6 Harvard [aviões a hélice de fabrico norte-americano], mudando a guerra. “O major Rolando Mantovani foi abatido, um segundo aparelho baixou e foi também abatido”, descreve. “Mantovani era meu amigo pessoal, o meu piloto para as operações mais complicadas”, acentua o engenheiro aeronáutico e major-general José Manuel Costa Neves, então jovem major de 32 anos. Costa Neves, membro do Conselho da Revolução “do princípio ao fim”, explica a situação: “Quando o PAIGC começou com os mísseis Strela, não sabíamos como defender-nos, foi feito um estudo da Direcção dos Serviços de Material da Força Aérea e decidido manter os aviões no chão até haver uma resposta, o estudo durou relativamente pouco tempo, alguns meses.” A Força Aérea utilizava os T6 Harvard, não podia recorrer aos jactos F-86 afectos à NATO, não autorizados a participar na guerra, e os FIAT G-91. “Tínhamos aviões relativamente antigos, de outras guerras” (II Guerra Mundial). A solução para escapar à perseguição dos mísseis guiados por infravermelhos atraídos pelas fontes de calor — os motores — era fazer manobras bruscas e evasivas. “Na Guiné, os próprios pilotos aviadores começaram a saber quais eram as zonas perigosas”, reconhece. Dias depois do ataque, no Norte, a acção da guerrilha, numa clássica operação de tenaz, passou para o lado oposto, o Sul: o alvo era Guileje. “Estava no corredor de abastecimento do PAIGC, cujas tropas na zona eram comandadas por Nino Vieira [que viria a ser Presidente da República da Guiné-Bissau em dois mandatos]. Foram meses de ataques e bombardeamentos, os nossos militares viviam em buracos”, precisa o coronel Sales Golias. “O major Coutinho e Lima, que comandava a nossa tropa em Guileje, a 22 de Maio decidiu retirar sem autorização superior e, sem comunicações por o posto de transmissões ter sido destruído, ignorou-se o seu paradeiro durante algum tempo até ser localizado por pára-quedistas”, refere. “Em Bissau, Spínola [governador e comandante-chefe das Forças Armadas na Guiné] retirou o comando ao major, mandou-lhe instaurar um processo judicial de que resultou uma pena de prisão de um ano, da qual Coutinho e Lima apenas se livrou após o 25 de Abril de 1974, com o arquivamento do processo”, recorda. “O alferes miliciano José Barros Moura [viria a ser deputado do PCP e eurodeputado do PS], que integrou a equipa de defesa do major, foi castigado e colocado no mato, em Ingoré, onde o MFA [Movimento das Forças Armadas] o foi buscar após o 25 de Abril”, assinala. A situação militar na Guiné culmina, há 50 anos, com o abandono de Gadamael, zona onde, a 24 de Setembro de 1973, o PAIGC decretaria unilateralmente a independência. “É considerada a maior débâcle do Exército português: mais de 100 homens abandonaram o quartel”, enumera. “Vinha-nos à memória a imagem do abandono da Índia”, diz Sales Golias. Em escassos meses, a situação degrada-se: “A ordem era aguentar posições no terreno sem entrar em combate. Perdemos a iniciativa, entrou-se numa certa entente, não atacávamos para não sermos atacados...” Em Outubro, as Nações Unidas aprovam uma resolução que insta Portugal a abandonar o território, e as tropas portuguesas passam a ser consideradas invasoras. “António de Spínola, através de Léopold Senghor [Presidente do Senegal], contacta o PAIGC, mas Marcello Caetano desautoriza-o”, salienta. “Prefiro um desastre militar na Guiné a negociar seja com quem for”, terá dito o Presidente do Conselho. Spínola é substituído pelo general Bettencourt Rodrigues, que na carta de comando tinha como ordem um significativo resistir até à exaustão dos meios. “Quando começaram a deitar abaixo os aviões com os mísseis e bombardeavam os nossos quartéis com artilharia a partir do Senegal e da Guiné Conacri, Costa Gomes, que era chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, recomendou o recuo”, anota o almirante Martins Guerreiro, antigo conselheiro da Revolução. Então com 32 anos e primeiro-tenente engenheiro construtor naval, assegura que na Guiné se vivia uma síndrome histórica: “Os militares não aceitavam uma nova Índia [com a sua culpabilização pela derrota] e Marcello Caetano preferia perder a negociar, tornando os militares em bode expiatório.”  
Independência branca.
A situação militar nas colónias não autorizava o propósito do 1.º Congresso dos Combatentes do Ultramar, realizado no Porto, de 1 a 3 de Junho. Os “ultras” defendiam uma solução militar para a guerra e queriam que Marcello se comprometesse com a continuação das hostilidades. “Desde o tempo de Humberto Delgado, [eu] estava nas fileiras da oposição e sentia que a contestação ao Congresso dos Combatentes podia ser aproveitada. Envolvi-me com Carlos Fabião e Firmino Miguel na recolha de assinaturas contra o congresso”, relata o general Pezarat Correia, então major de 41 anos em missão no Luso, Angola. “Na Guiné, a guerra estava perdida”, sentencia. “Em Angola, estava mais controlada. Angola era a jóia da coroa do Império, a colónia mais rica, com maior ocupação do interior e um maior número de colonos”, prossegue. Autor de … Da Descolonização. Do Protonacionalismo ao Pós-colonialismo, a sua tese de doutoramento em Relações Internacionais na Universidade de Coimbra, Pezarat Correia, também ele membro do Conselho da Revolução, fez um total de seis missões em Angola, Guiné, Moçambique e Índia. Explicita as peculiaridades angolanas: “Em Angola, existiam três movimentos de libertação em confronto e guerra civil entre si”, recorda. “Os vizinhos de Angola, África do Sul, Zâmbia e Zaire, eram favoráveis a Portugal; em Cabinda, a República Popular do Congo apoiava o MPLA, mas a principal zona de combate era a frente Leste, onde a UNITA se uniu a Portugal para combater o MPLA”, destaca. E continua o balanço da especificidade angolana: “Portugal não estava na iminência de perder a guerra, mas também não estava na iminência de a ganhar, porque os movimentos de libertação estavam presentes no terreno e, nas vésperas do 25 de Abril, a UNITA rompeu o acordo com Portugal assinado com Bettencourt Rodrigues [comandante da Zona Militar Leste de Angola de 1971 a 73].” Do ponto de vista militar, Angola tinha uma situação própria, que a distinguia das outras colónias: “50% do Exército era de forças de recrutamento local, a serem somados aos 30 mil mobilizados na metrópole.” A geopolítica ditava, ainda, outras consequências. “Os Estados Unidos apoiavam a África do Sul, que, tal como a Rodésia, queria captar Angola e Moçambique para o projecto Alcora de independências brancas naquelas duas ex-colónias, a que Marcello Caetano aderiu”, anota. “Para Agosto de 1974, estava prevista a apresentação pelo governador geral de Angola, Santos e Castro, da declaração de uma independência branca”, garante Pezarat Correia. 
“PIDE em maus lençóis” 
“Moçambique não estava tão mal como a Guiné”, admite Costa Neves, de 1967 a 70 no território. “Utilizando os termos da época, Moçambique foi a província que mais tarde sentiu os efeitos da guerra, aliás, em Moçambique os militares recebiam menos do que os que estavam em missão na Guiné ou Angola”, destaca. Pezarat Correia explica que, em 1973, a situação não era tranquilizadora para o quartel-general da então capital, Lourenço Marques: “Não estava tão mal como na Guiné, mas para lá andava. Estava mal a norte, em Niassa e Cabo Delgado, e muito mal em Tete.” O ano de 1973 foi de catadupa de acontecimentos. Em Julho e Agosto, Marcello Caetano, empenhado em não ceder em África, aprovou dois decretos-leis que tiveram um duplo efeito: de bumerangue e potenciador do descontentamento militar. Para responder às necessidades da Guerra Colonial, o quadro de oficiais milicianos poderia ultrapassar o dos oficiais com formação de quatro anos. “Em Setembro, vou passar uns dias de férias a Luanda e apercebo-me que a 16 vai haver uma reunião de capitães no Hotel Continental e, apesar de ser major, compareci”, recorda Pezarat Correia: “Na parte final disse-lhes que os militares estavam a ser desprestigiados por serem vistos como suportes do regime e se não nos demarcássemos não recuperávamos o prestígio. Fui aplaudido.” “Na Guiné, o movimento dos capitães começou pela constituição de um grupo, eu, o Matos Gomes e o jornalista e oÆcial miliciano José Manuel Barroso”, lembra o coronel Sales Golias. Na metrópole, multiplicavam-se os contactos que levaram à reunião de Alcáçovas, apesar da polícia política. “A PIDE não actuou porque tinha ligações com o Exército, era mesmo a polícia de informações militares, e assim se manteve em África após o 25 de Abril”, explica Martins Guerreiro: “A PIDE, directa e indirectamente, tinha ligações com Spínola e Costa Gomes, a PIDE considerava, de boa fonte, que ia continuar. Aliás, Spínola tentou criar um novo serviço com base na PIDE”, insiste. O que não aconteceu. “Quando apareceu o programa político de Melo Antunes, a coisa mudou, desviou-se da linha de Spínola. A partir daí, a PIDE ficou em maus lençóis”, conclui.


7 comentários:

  1. Morador do Seixal usou forno solar para cozinhar refeição
    https://www.dnoticias.pt/2023/10/6/378081-morador-do-seixal-usou-forno-solar-cozinhar-refeicao/

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  2. 29 de outubro de 2023 às 02h atrasar o relógio para 01h em Portugal Continental e na Madeira.

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  3. Lá se foi a ditadura que o Mira, tanto gosta e faz dele a sua missão de vida.
    A boa notícia é que na sua terra Natal, ela impera com força.
    Vá coragem.

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  4. Madeirenses, hoje começo de fim de semana, vamos mas é aproveitar com os nossos, mais um fim de semana que promete ser muito quente, viver e ser feliz, nada de frustrações, de pessoas tóxicas.
    Nem sempre é fácil, mas somos um povo gigante, orgulhoso, não estão a morrer milhares de pessoas por mês, ou já não haviam pessoas na Madeira
    Não liguem jamais a disparates.
    Vamos, meu povo. Alegria.

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    1. Gigantes na pobreza extrema. Tenha lá juízo, parasita.

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    2. Quer no ensinar a roubar?
      É isso?
      Ou ainda, quer nos roubar mais?
      Olhe, pequenino, é o que você é, pequenino..

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  5. Que a sua morte seja lenta e muito dolorosa e dure meses, abandonado numa cama psiquiatrica.

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