sábado, 29 de março de 2025

José Pacheco Pereira aborda a problemática da Liberdade de expressão em Portugal

 Sempre que há uma polémica sobre liberdade de expressão em Portugal, pergunto-me se nos EUA isso daria uma condenação

O tema, central em democracia, da liberdade de expressão é, ao mesmo tempo, simples e complexo, dependendo do modo como nos aproximamos dele. Esta é a pior maneira de começar um texto, mas não tenho outra. O modo simples é dizer pela negativa que, quando há ou se sente a censura, e se perde assim a liberdade, cada um, nós, sabe que é assim. Eu tive artigos censurados e livros proibidos antes do 25 de Abril, por isso mesmo sei do que falo. E também sei dos mecanismos mais subtis da autocensura que qualquer pessoa que escreve conhece, mas os únicos que para aqui interessam são os que se traduzem na percepção de que há menos liberdade. Sim, “percepção”, que pode ou não ter sentido factual. Não vou discutir esta questão em termos jurídicos, mas a minha fonte para entender a liberdade de expressão no seu sentido mais lato é a Primeira Emenda da Constituição americana: “O Congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de discurso, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao Governo para que sejam feitas reparações de queixas.” Este texto, de 1791, é um dos mais revolucionários da história humana, quer pelo tempo em que foi escrito quer pelo modo como nas emendas posteriores, do período da chamada “reconstrução” posterior à guerra civil americana, foi reafirmado e consolidado. É certo que, como se passa com todas as acções humanas, nem sempre foi devidamente aplicado, em particular no período do macarthismo, como agora na era Trump, talvez o período da história americana em que a liberdade de expressão mais está ameaçada. Seja como for, permitiu a muitos “dissidentes” a protecção constitucional

face a perseguições. Mas convém lembrar, para os nossos debates de hoje, que essa protecção é também para o Ku Klux Klan. Por isso, pergunto-me, sempre que há uma polémica sobre liberdade de expressão em Portugal, se nos EUA isso daria uma condenação, embora saiba que a Constituição portuguesa está longe da amplitude da Primeira Emenda e é muito mais restritiva, em particular quanto ao chamado “discurso de ódio”, traduzido também na legislação europeia. Nesta matéria, estou mais próximo da Primeira Emenda e tenho muitas reservas quanto à condenação do chamado “discurso de ódio”, que penso que pode, de facto, servir para limitar a liberdade de expressão. Aliás, os riscos de uma interpretação extensiva do “discurso de ódio” que habitualmente se considera ter como alvo a extrema-direita podem servir para condenar cartazes em manifestações sobre a habitação que dizem “morte aos senhorios”. Calúnia, difamação, falsidades podem ser consideradas crimes, mas essa condenação terá sempre de ser feita por um tribunal, porque a única limitação à liberdade de expressão é o crime, mas isso não implica censura prévia. Tudo isto vem a propósito do cartaz do Chega que associa, debaixo da acusação de corrupção, Montenegro e Sócrates, e percebe-se muito bem a indignação do primeiro-ministro, mas tenho a certeza de que, ao abrigo da Primeira Emenda, caberia no âmbito da liberdade de expressão. Aliás, o que é mais grave do ponto de vista político é a referência aos “50 Anos”, ou seja, a associação entre a corrupção e a democracia, o que é falso do ponto de vista factual porque, se tirarmos a manta da censura ao regime da ditadura, aparece corrupção por todos os lados. No entanto, os 50 anos ajudam a perceber a parte da corrupção — para o Chega, o regime democrático é intrinsecamente corrupto. Para esta discussão, convém lembrar a mais violenta campanha ad hominem da democracia portuguesa, a que ocorreu a partir de 1976 contra Francisco Sá Carneiro, acusado de uma “burla de 33.000 contos”, e de “fraude” nestes exactos termos. O seu autor foi o PCP, utilizando o jornal O Diário, e algumas acusações foram condenadas em tribunal, num processo com várias reviravoltas. Mas se se Æzer a mesma pergunta sobre a aplicação da Primeira Emenda, muita coisa que foi desenhada, dita e escrita devia ser protegida pela liberdade de expressão. Na verdade, como em muitos casos concretos, esta é a parte complexa da questão. Seja como for, em caso de dúvida, a liberdade de expressão conta sempre mais.
O ruído do mundo JOSÉ PACHECO PEREIRA

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