Sempre que há uma
polémica sobre liberdade
de expressão em Portugal,
pergunto-me se nos EUA
isso daria uma condenação
O tema, central em
democracia, da liberdade
de expressão é, ao mesmo
tempo, simples e
complexo, dependendo do
modo como nos
aproximamos dele. Esta é a pior maneira
de começar um texto, mas não tenho
outra. O modo simples é dizer pela
negativa que, quando há ou se sente a
censura, e se perde assim a liberdade,
cada um, nós, sabe que é assim. Eu tive
artigos censurados e livros proibidos
antes do 25 de Abril, por isso mesmo sei
do que falo. E também sei dos
mecanismos mais subtis da autocensura
que qualquer pessoa que escreve
conhece, mas os únicos que para aqui
interessam são os que se traduzem na
percepção de que há menos liberdade.
Sim, “percepção”, que pode ou não ter
sentido factual.
Não vou discutir esta questão em
termos jurídicos, mas a minha fonte para
entender a liberdade de expressão no seu
sentido mais lato é a Primeira Emenda da
Constituição americana:
“O Congresso não deverá fazer
qualquer lei a respeito de um
estabelecimento de religião, ou proibir o
seu livre exercício; ou restringindo a
liberdade de discurso, ou da imprensa;
ou o direito das pessoas de se reunirem
pacificamente, e de fazerem pedidos ao
Governo para que sejam feitas
reparações de queixas.”
Este texto, de 1791, é um dos mais
revolucionários da história humana,
quer pelo tempo em que foi escrito quer
pelo modo como nas emendas
posteriores, do período da chamada
“reconstrução” posterior à guerra civil
americana, foi reafirmado e consolidado.
É certo que, como se passa com todas as
acções humanas, nem sempre foi
devidamente aplicado, em particular no
período do macarthismo, como agora na
era Trump, talvez o período da história
americana em que a liberdade de
expressão mais está ameaçada. Seja
como for, permitiu a muitos
“dissidentes” a protecção constitucional

face a perseguições. Mas convém
lembrar, para os nossos debates de hoje,
que essa protecção é também para o Ku
Klux Klan.
Por isso, pergunto-me, sempre que há
uma polémica sobre liberdade de
expressão em Portugal, se nos EUA isso
daria uma condenação, embora saiba
que a Constituição portuguesa está longe
da amplitude da Primeira Emenda e é
muito mais restritiva, em particular
quanto ao chamado “discurso de ódio”,
traduzido também na legislação
europeia. Nesta matéria, estou mais
próximo da Primeira Emenda e tenho
muitas reservas quanto à condenação do
chamado “discurso de ódio”, que penso
que pode, de facto, servir para limitar a
liberdade de expressão. Aliás, os riscos
de uma interpretação extensiva do
“discurso de ódio” que habitualmente se
considera ter como alvo a extrema-direita
podem servir para condenar cartazes em
manifestações sobre a habitação que
dizem “morte aos senhorios”.
Calúnia, difamação, falsidades podem
ser consideradas crimes, mas essa
condenação terá sempre de ser feita por
um tribunal, porque a única limitação à
liberdade de expressão é o crime, mas
isso não implica censura prévia. Tudo
isto vem a propósito do cartaz do Chega
que associa, debaixo da acusação de
corrupção, Montenegro e Sócrates, e
percebe-se muito bem a indignação do
primeiro-ministro, mas tenho a certeza
de que, ao abrigo da Primeira Emenda,
caberia no âmbito da liberdade de
expressão. Aliás, o que é mais grave do
ponto de vista político é a referência aos
“50 Anos”, ou seja, a associação entre a
corrupção e a democracia, o que é falso
do ponto de vista factual porque, se
tirarmos a manta da censura ao regime
da ditadura, aparece corrupção por
todos os lados. No entanto, os 50 anos
ajudam a perceber a parte da corrupção
— para o Chega, o regime democrático é
intrinsecamente corrupto.
Para esta discussão, convém lembrar a
mais violenta campanha ad hominem da
democracia portuguesa, a que ocorreu a
partir de 1976 contra Francisco Sá
Carneiro, acusado de uma “burla de
33.000 contos”, e de “fraude” nestes
exactos termos. O seu autor foi o PCP,
utilizando o jornal O Diário, e algumas
acusações foram condenadas em
tribunal, num processo com várias
reviravoltas. Mas se se
Æzer a mesma
pergunta sobre a aplicação da Primeira
Emenda, muita coisa que foi desenhada,
dita e escrita devia ser protegida pela
liberdade de expressão. Na verdade,
como em muitos casos concretos, esta é a
parte complexa da questão. Seja como
for, em caso de dúvida, a liberdade de
expressão conta sempre mais.O ruído do mundo JOSÉ PACHECO PEREIRA
Sem comentários:
Enviar um comentário