quinta-feira, 1 de abril de 2021

Alvaro Lins o embaixador brasileiro que enfrentou Salazar concedendo asilo político ao general Humberto Delgado

 

 Prestes a ser preso pela PIDE, em 12 de janeiro de 1959, Humberto Delgado pede asilo na Embaixada do Brasil. Álvaro Lins é o embaixador brasileiro que enfrenta as pressões de Salazar e as hesitações do seu governo, protegendo o General Sem Medo.
Álvaro Lins enfrentava uma decisão difícil. Porém, embora não fosse diplomata de carreira, não era um novato nas atividades políticas. Pernambucano de Caruaru, formado em Direito no Recife, foi Secretário do Governo Estadual e, mais tarde, em 1956, Chefe da Casa Civil do Presidente Juscelino Kubitschek (cargo que, pela sua importância, se aproxima da figura de Primeiro-Ministro em Portugal), precisamente antes de vir para Lisboa como embaixador. Mas foi no jornalismo e na literatura que se distinguiu. Membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa, é um profundo conhecedor da cultura e da literatura portuguesa. Autor de livros como História Literária de Eça de Queiroz, Poesia e Personalidade de Antero de Quental, Discurso sobre Camões e Portugal, foi professor na Faculdade de Letras de Lisboa.A primeira conversa com Delgado foi longa. Álvaro Lins tomou consciência das ameaças feitas ao seu interlocutor. Sublinhou no seu livro o caso da prisão dos apoiantes de Delgado, destacados intelectuais presos por terem promovido a vinda a Portugal do dirigente trabalhista inglês Aneurin Bevan. "Jaime Cortesão, António Sérgio, Vieira de Almeida e Azevedo Gomes – foram imediatamente presos" e o mesmo não acontecera ao general devida à sua situação de militar, tendo o governo, em nota oficial emitida na ocasião, prometido dar a Delgado o mesmo tratamento assim que se concluisse o seu processo de afastamento das forças armadas.– "General: em princípio, concedo o asilo que o senhor veio solicitar à Embaixada do Brasil. Darei a minha decisão definitiva ao voltar da audiência com o ministro dos Negócios Estrangeiros".Lins foi recebido às 18h30 por Marcelo Matias, no Palácio das Necessidades. "Pude sentir, desde logo, que ele nada sabia ou suspeitava do assunto", regista o embaixador.


– "Vim comunicar-lhe que o General Humberto Delgado procurou-me hoje, faz apenas algumas horas, para solicitar asilo diplomático à Embaixada do Brasil. E lá se encontra neste momento."Com a sua prosa de grande qualidade, Lins descreve a reação do ministro de Salazar. "Fixei e observei bem a reação de Matias: ficou pasmado. Teve um momento de sobressalto, num estado de espírito ainda mais visível pela maneira como suas mãos apertavam os braços da cadeira. Dominou-se, porém, com presteza."
Só então reage.
– "A sua comunicação, Embaixador, enche-me de surpresa. E de indignação contra o General Delgado. Nada existia contra ele, nenhum propósito de persegui-lo ou prendê-lo."
Álvaro Lins tem uma proposta face à esperada reação de Marcelo Matias.
–"Amanhã, em meu automóvel, indo diretamente da Embaixada ao aeroporto, eu levaria o General Delgado até um avião da Panair; depois de amanhã, o general desembarcaria no Rio de Janeiro (…) sem qualquer espécie de escândalo público."
Marcelo Matias hesita. Não aprova a proposta mas sente que a decisão já não é sua e interrompe o diálogo. Lins relata o sucedido.
– "Dê-me licença por alguns instantes. Estão a chamar-me ao telefone.
Fui eu, agora, que fiquei surpreso: não vira abrir-se nenhuma porta, nem notara secretário algum que lhe houvesse feito um gesto ou dirigido qualquer palavra; e pareceu-me extravagante aquela chamada telefónica em tal hora, já encerrado o expediente do Ministério. Presumi: Marcelo Matias foi à sala de junto consultar Salazar pelo telefone.
Demorou-se uns cinco ou seis minutos. Foi-me fácil perceber que voltara ainda mais intransigente."
Depois do telefonema, Marcelo Matias voltou com a posição ditada por Salazar.
– "Nós não reconheceremos jamais o asilo do General Humberto Delgado, por falta de motivos, e não poderemos permitir que o general venha a sair de Portugal sob a proteção de uma potência estrangeira."
Álvaro Lins já esperava o endurecimento da posição de Marcelo Matias, depois de conversar com Salazar. Todos sabiam que Delgado era o inimigo número um de Salazar, desde o "obviamente demito-o" do café Chave de Ouro. Iria persegui-lo até às últimas consequências…

Todavia, o que mais feriu a sua sensibilidade de profundo conhecedor e amante da pátria lusitana, também sua pela cultura e pelo sangue, foi a expressão "potência estrangeira". Não se conteve e disse a Marcelo Matias, a propósito da insistência nas expressões "território estrangeiro" e "potência estrangeira" ao referir-se ao Brasil:

– "Esta insistência me está parecendo chocante.(…) Então o Brasil 
passa a ser visto e tratado em termos de uma potência estrangeira e território estrangeiro quanto a Noruega, o Egito ou a China?"

Lins concede asilo a Delgado

O diálogo tinha chegado a um impasse. A Álvaro Lins restava reafirmar a sua posição:

– "Então, ministro, cumpre-me comunicar ao Governo português, por seu intermédio, que eu concedo o asilo solicitado pelo General Humberto Delgado. E o asilo será mantido, a não ser que a minha decisão, o que não acredito, venha a ser desaprovada pelo Governo brasileiro, hipótese em que voltarei à sua presença apenas para apresentar-lhe as minhas despedidas."
Restava um problema. Delgado estava na Chancelaria (na Calçada dos Caetanos) e não na Embaixada (na rua António Maria Cardoso, o lado da PIDE). Lins avisou o ministro de que iria transferir o general no seu automóvel, sabendo que a PIDE já o estaria a seguir:
– "Coloquei o General à minha direita no automóvel; na frente um dos secretários, ao lado do chofer. Este pareceu-me um pouco nervoso e perturbado. Quis, para encurtar a viagem, mudar o itinerário – pelo Rossio e pelo Chiado – que eu seguia todos os dias."
Ao seu nervoso motorista português, sabendo-se seguido pela PIDE, Álvaro Lins recomenda que siga:
– "Nem muito devagar, para não dizerem que estou querendo irritar, nem muito depressa, para não dizerem que estou com medo."
Estavam finalmente na Embaixada. Emocionado, Delgado declara a Lins:
– "Agora, Embaixador, estou sentindo, realmente, a sensação de um homem que penetra no território de um país livre!"
Já pelas nove e meia da noite, ouviram o ardina apregoar a edição do Diário Popular, com a notícia do asilo, em tom oficioso e achincalhante para Delgado. Segundo Álvaro Lins, no "estilo do jornal de Palma Cavalão em Os Maias".
Mais do que qualquer análise da situação política, são as palavras de Maria Iva Delgado, mulher de Humberto Delgado, que lhe tiram todas as dúvidas sobre a sua opção:
– "Depois de alguns meses, ontem foi a primeira noite que pude dormir tranquila, por saber o meu marido em segurança na Embaixada do Brasil. Antes, de dia e de noite, vivia em sobressalto; ao toque da campainha, ao menor ruído, imaginava que já era a PIDE a entrar-nos pela porta adentro."
Tinha-lhe pedido para vir à embaixada para conversar sobre as condições de vida de Delgado na embaixada. Apenas a mulher e as filhas o podiam visitar e, todos os dias, apesar das buscas e deselegâncias dos agentes da PIDE, cumpriam pontualmente essa tarefa. A PIDE fazia questão de parar a esposa de Humberto Delgado, exigindo-lhe a revista do carro em todas as visitas.
A embaixatriz Heloísa era anfitriã solicita. Numa conversa com Maria Iva, revelou-lhe que os gritos vindos do edifício ao lado, a sede da PIDE, frequentemente a perturbavam de noite. Tinha mandado uma carta ao Cardeal Cerejeira a queixar-se e recebera em resposta que se tratava do chiar dos elétricos nas calhas da Rua António Maria Cardoso…

Obviamente assassinado com a autorização de Salazar

Mas Álvaro Lins revela outro pormenor da conversa com Iva Delgado que lhe transmite outra sua preocupação, o facto de o General andar sempre com o seu revólver, para resistir a qualquer tentativa da PIDE para o prender.
– "Ainda por cima, o Humberto sempre com o revólver à altura da mão, no seu propósito de não se deixar levar com vida pela polícia."
Este testemunho de Lins publicado em 1960, é muito importante para compreender o que se vai passar no assassinato de Delgado em 1965.
Era do conhecimento de todos que o General andava armado. A PIDE não ignorava esse facto. Salazar também sabia que o General sempre andava com um revólver, já que o conhecia pessoalmente há muitos anos. Por conseguinte, ao autorizar a operação da PIDE que iria levar Delgado a Badajoz, autorização confirmada pelo Diretor da PIDE no julgamento, Salazar não ignorava que o General não se deixaria apanhar vivo.
Obviamente sabia que o encontro preparado pela PIDE, junto à fronteira portuguesa, acabaria na morte de Humberto Delgado.

Intelectuais brasileiros apoiam Lins

Entretanto, a questão do asilo na Embaixada ganha repercussão internacional. No Brasil, no início de fevereiro, um grande grupo de intelectuais brasileiros lança em vários jornais um manifesto de apoio e solidariedade ao embaixador Álvaro Lins, o qual, segundo o texto, muito orgulhava os brasileiros com a sua atuação no caso do asilo.
Tratava-se de uma reação ao movimento encabeçado pela Federação das Associações Portuguesas, que entendia o asilo como uma afronta à Portugal, exigindo do Brasil o apoio a Salazar.
Assinavam o manifesto solidário com Álvaro Lins, grandes nomes da intelectualidade brasileira, como Carlos Drummond de Andrade, Erico Veríssimo, Darcy Ribeiro e António Calado.
Em 19 de fevereiro, o escritor Érico Veríssimo chega a Lisboa.
Lins refere ser Érico "muito popular, muito lido em Portugal, onde conhecem bem as suas ideias antiditatoriais, anti-franquistas, anti-salazaristas, tudo isso, simultaneamente, com a sua coragem em exprimi-las."
A 21 de fevereiro, na receção da embaixada ao escritor, Lins responde no seu diário a quem o acusa de só convidar oposicionistas portugueses. Esclarece que "quanto aos escritores e professores, aos intelctuais que constituem a vida cultural portuguesa, a culpa não é minha que, em trezentos de uma lista, duzentos e noventa são democratas e anti-salazaristas." E quando o Adido Naval lhe sugere um convite ao Diretor da PIDE porque é oficial do Exército, recebe uma recusa formal:
– "Jamais o Diretor-Geral da PIDE recebera, nem receberia um convite meu, a facultar-lhe a entrada na Embaixada do Brasil."
Após estar alguns dias na embaixada e ter manifestado a Lins o seu apoio no caso Delgado e recusar convites de homenagens governamentais, Érico Veríssimo vai ao teatro D. Maria II debater literatura, a 2 de março.
Quando questionado pela audiência sobre o motivo da estagnação da literatura portuguesa, sua resposta é simples: "A censura", e acrescenta ser "desonestidade ou cobardia não falar claro numa hora como esta".
No final da conferência as ovações também alcançavam Álvaro Lins, que fora aconselhado pelos diplomatas a não reagir aos gritos de "viva o Brasil" vindos da plateia.
Segundo o jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, de 5 de abril de 1959, Veríssimo afirmaria que existia uma campanha para denegrir a embaixada brasileira e seu embaixador, que, segundo ele, desempenhavam um papel exemplar na questão.
Mas se Lins conta com o apoio de muitos intelectuais brasileiros, nos finais de fevereiro os seus receios quanto à solidariedade do Presidente e do ministro das Relações Exteriores do Brasil confirmam-se. Juscelino Kubitschek de Oliveira e Negrão de Lima aproximam-se das posições de Salazar.
A 27 de fevereiro de 1959, último dia do seu diário publicado no livro Missão em Portugal, Lins refere que lhe faz "saber o Itamarati de Kubitschek e Negrão que a ida do General Delgado para o Brasil, mesmo nas condições impostas pelo Governo português, seria um sucesso para a diplomacia brasileira; e me aconselham a ceder e transigir, com a aceitação da fórmula que seria uma degradação do princípio do asilo e uma vergonha internacional para o Brasil."
Nesse final de fevereiro sintetiza a sua situação:
– "Vejo-me como em estado de guerra, com a Embaixada cercada pela PIDE, com os telefones sob a censura, com vigilância da polícia política sobre os meus passos, por toda a parte."
Mais tarde, na sua "Carta de Rompimento Político e Pessoal com o Presidente Kubitschek", sublinharia que os seus compromissos eram "com a Nação portuguesa imperecível" e a "solidariedade e apoio ao movimento de restauração das liberdades públicas e dos direitos da pessoa humana para todos os portugueses."

Um Mercedes na noite de Lisboa

Na noite de 11 para 12 de março, a última esperança do General Sem Medo asilado por Álvaro Lins, esvaiu-se. A Revolta da Sé, assim designada porque os revolucionários se reuniam na Sé de Lisboa, com a ajuda do padre oposicionista Perestrelo de Vasconcelos (próximo de Manuel Serra, chefe civil do movimento), não teve êxito.
O regime acabou por aceitar a ida de Delgado para o Brasil. Porém pretendia impor-lhe condições humilhantes. Antes de entrar no avião, teria de sair do automóvel, fazer dois requerimentos e esperar pela sua concretização. Essa pretensão recebeu uma recusa inequívoca do General, apoiada pelo embaixador Álvaro Lins.

Terá sido João Dantas, diretor do Diário de Notícias do Rio de Janeiro, então em Lisboa, a telefonar ao Ministro da Presidência de Salazar, Teotónio Pereira, conseguindo a mudança da posição do Governo português.

Os requerimentos foram enviados para a embaixada. Delgado assinou-os e, com o formal deferimento, foram devolvidos à embaixada, a 20 de abril.

Álvaro Lins e Humberto Delgado, sem palavras, despediram-se com um abraço.

Missão em Lisboa de Álvaro Lins estava cumprida.

Mercedes  preto partiu do interior da embaixada, conduzido pelo motorista António Madeira, acompanhado pelo primeiro-secretário da embaixada, Alarico de Oliveira. Atravessou a noite de Lisboa a alta velocidade, entrou na pista do aeroporto da Portela e travou junto ao voo 289 da Panair do Brasil. Ignorando os olhares ameaçadores dos agentes da PIDE, Humberto Delgado embarcou.

16/Março/2021

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