Só amamos as batalhas difíceis

O processo teve também uma longa
preparação. Antes dele, houve duas outras
tentativas de criar um processo judicial
contra mim — o Freeport e as chamadas
“escutas de Belém”. Ambas foram
desmascaradas e ambas falharam. A
primeira teve origem no gabinete do
primeiro-ministro de então; a segunda na
Casa Civil do Presidente da República.
Quando decidiram tentar de novo,
asseguraram-se de que toda a gente estaria a
seu lado — um Governo, uma maioria, um
Presidente e uma procuradora-geral. Faltava
um juiz. A obrigação legal do sorteio foi
então substituída pela “atribuição manual” e
o jogo foi viciado. Agora, o juiz era o seu juiz,
escolhido por quem nada quis deixar ao
acaso. Eis a trapaça, agora denunciada na
decisão instrutória. Eis o escândalo de que
ninguém parece querer falar.
Nada disto tinha tradição na política
portuguesa. A instrumentalização do
combate à corrupção para combater o
inimigo político é mais própria de outras
latitudes. Na verdade, o Governo Passos
Coelho foi o primeiro em democracia a iniciar
esta caça ao homem. Após as eleições, a
primeira preocupação foi a de criminalizar as
políticas do Governo anterior, única forma
que encontraram de legitimar as suas. A
ministra da Justiça da altura deu o tom —“acabou a impunidade”. A partir daí, valeu
tudo: inquérito sobre gastos dos gabinetes,
inquérito sobre as PPP, inquérito sobre a EDP,
inquérito sobre a PT, sobre o TGV, sobre a
diplomacia económica na Venezuela, sobre a
Parque Escolar, estas últimas devidamente
acondicionadas no chamado processo
Marquês. Escapou alguma coisa? Talvez o
Magalhães, o inglês na primária, as Novas
Oportunidades. Muito por onde escolher.
Quando chegou a primeira imagem da
detenção, estava tudo a postos. O clima de
ódio instalado, a televisão da lei e da ordem
atribuída à Cofina e o futuro chefe da
extrema-direita com emprego — o de
comentador principal da Operação Marquês.
A televisão dá-lhe visibilidade e o líder do
partido a oportunidade de se lançar na
política. Depois de um pequeno teste numa
campanha municipal e de uma primeira fala
sobre ciganos, fica absolutamente claro que
a direita salazarista nunca deixou de existir e fica igualmente claro o que quer ouvir. Chega
de uma direita tímida e civilizada. Depois de
Trump e de Bolsonaro, chegou o momento
de afirmação — violência, ódio e intolerância.
A moderação e o civismo democrático são filhos do politicamente correto e é preciso
acabar com isso. O momento simbólico dá-se
quando os polícias se manifestam em frente
à Assembleia da República e cantam o hino
nacional voltados de costas para o
Parlamento. Aplaudem freneticamente o
deputado de extrema-direita, que é também
o único a discursar aos manifestantes. Têm
agora à sua frente tudo aquilo com que há anos sonharam — ordem, pátria, autoridade,
os eternos ontem.
A esquerda, pelo seu lado, finge e finge e finge: o Partido Comunista considera as
reivindicações dos polícias justas; o Bloco de
Esquerda critica o Governo por ter sido tão
indiferente a essas legítimas aspirações; e o
Partido Socialista lembra tudo o que fez pela
organização policial. Os manifestantes
sentem imediatamente o cheiro da covardia
e garantem que doravante serão os donos
das ruas. A manifestação, na verdade, nada
tem a ver com reivindicações profissionais.
Ela pretende, isso sim, afirmar uma nova
cultura política, a caminho de um estado
policial.
Neste longo período, que tem agora mais
de dez anos, a crise, o terror, os refugiados e
os imigrantes criaram o ambiente propício para endurecer as leis, dar mais poderes às
autoridades e enfraquecer as liberdades
individuais. Como sempre, a caçada foi feita
de arrasto, sem distinguir culpados e
inocentes. O que importa é mostrar serviço:
acusar, difamar, insultar. Tudo é suspeito,
tudo é criminoso, até se provar que não é. Eis
o caminho que despertou a memória
histórica da inquisição e a cultura penal por
detrás dela — o julgamento passa a ser feito
por quem acusa e o direito de defesa e a
presunção de inocência, bases do Direito
moderno, transformam-se lentamente em
presunção pública de culpabilidade. A
“morosidade insuportável” dos julgamentos
acabou. Nós, procuradores e polícias,
faremos a nossa própria justiça — já não
precisamos de juízes independentes e
imparciais. Foi este o caldo cultural que
esteve no bojo do processo Marquês, que o
permitiu e que o impulsionou. E ao qual a
esquerda — toda a esquerda — assistiu em
silêncio.
No final, anotemos o essencial. Primeiro,
todas as alegações contidas na acusação — a
fortuna escondida e a corrupção — caíram
com estrondo. Segundo, fica agora
absolutamente claro que, durante o meu
mandato como primeiro-ministro, não foi
identificada nenhuma conduta contrária aos
deveres do cargo. Nunca. Pronto, este foi o
primeiro passo.
No entanto, o juiz de instrução não resistiu
à tentação de criar novas acusações.
Pronuncia-me por um crime de que nunca
estive acusado e do qual nunca me pude
defender. Transforma o alegado “testa de
ferro” em “corruptor” sem comunicar aos
visados esta alteração de factos. Passei sete
anos a defender-me da mentira da fortuna
escondida e no final ouço, pela primeira vez,
que há indícios (que alguns imediatamente
transformam em provas e em sentença
transitada em julgado) de um crime que já
prescreveu. Essa acusação é tão injusta e
falsa como as outras e dela me defenderei
mais à frente.
Por agora, que fique claro que as acusações
de corrupção no TGV, na diplomacia
económica com a Venezuela, em Vale do
Lobo, na PT e na ligação aos interesses do
BES eram fantasiosas, incongruentes e sem
nenhuma lógica, para usar as expressões do
juiz. E, todavia, tive de as ouvir todos os dias
reproduzidas nas televisões como se fossem
factos provados. E todavia, foi por elas, com
base nelas, que foi decretada a prisão,
pormenor que os moralistas de turno
decidiram pôr de lado, por inoportunidade.
Bom, a batalha foi longa e dura, mas a
solidão do combate deu-lhe uma beleza
singular. Houve momentos em que parecia
nada mais existir, a não ser essa vontade
interior que “mantém acordada a coragem e
o silêncio”. Não, não esqueço a ignomínia,
mas celebro a oportunidade de vencer esta
etapa. E vencerei a próxima porque nunca
cometi nenhum crime. Para alguns, esta foi a
vitória possível. Talvez. Seja como for, só
amamos as batalhas difíceis.
O Coelho a defender um ex-primeiro-ministro corrupto. Nada de novo para quem já foi à cadeia visitar presidentes de Câmara do PSD que foram apanhados a roubar.
ResponderEliminarJosé António Jardim a botar faladura contra o nosso amigo Coelho que por vezes em tempos colaborou com a nossa redação
EliminarColaborou ou é o dono do blogue? Cantas bem...
EliminarAh! não sejas tonto ! o Coelho não tem categoria para escrever um blog com a categoria do Pravda Ilhéu!
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