O “contabilista de Auschwitz” quer expiar a sua culpa em tribunal
Será dos últimos nazis a responder pelo seu papel no Holocausto. O julgamento do “contabilista de Auschwitz” levanta questões sobre o modo como a justiça alemã lidou com os suspeitos de envolvimento no extermínio.
Não escondeu a adesão ao nazismo, nega envolvimento directo na morte de judeus, foi dos poucos guardas dos campos da morte a levantar a voz contra o negacionismo. Oskar Gröning, um alemão de 93 anos, que esta terça-feira deve começar a responder por “cumplicidade no homicídio agravado de 300 mil pessoas”, está longe de ser uma personagem linear.
O julgamento do “contabilista de Auschwitz”, um homem que nunca encontrou “a paz interior”, como reconhecia no final de 2014 ao jornalHannoverische Zeitung, é também, 70 anos após o final da II Guerra Mundial, o julgamento do modo como a Alemanha lidou com um passado sombrio.
Oskar Gröning esteve em Auschwitz, onde chegou com 21 anos, de 1942 a 1944. A sua tarefa era reunir e enviar para Berlim o dinheiro dos prisioneiros. Mais tarde passou também a recolher as bagagens dos recém-chegados para que os seguintes não as vissem e não se apercebessem imediatamente do seu destino.
A acusação garante que estava consciente de que os incapazes para o trabalho “eram assassinados logo após a sua chegada” e que “pela sua actuação, forneceu vantagens económicas ao regime nazi e apoiou matanças sistemáticas.” Nada que Gröning negue.
Por motivos “legais e de prova” as acusações que o levam ao tribunal de Luneburgo, Sul de Hamburgo, dizem apenas respeito a dois meses do seu tempo de Auschwitz, na Polónia ocupada: de Maio a Julho de 1944, o período da Operação Hungria, quando chegaram a Auschwitz “cerca de 425 mil pessoas”, 300 mil das quais foram mortas nas câmaras de gás.
Ao longo de décadas, Gröning respondeu apenas perante a sua consciência. Tal como milhares de outros alemães. Mas ao contrário de outros não negou o que aconteceu. “Eu estava lá, é verdade”, afirmou em 1985, quando um colega do clube de filatelia lamentou a proibição do negacionismo. Sentiu então que era seu dever dar testemunho. Escreveu sobre o que viveu, foi entrevistado pela BBC, falou à imprensa.
Uma mesma ideia atravessa sucessivas declarações: vê-se como uma “pequena peça da engrenagem”, alguém a quem, tal como a muitos milhares de outros, a justiça alemã não prestou atenção, durante décadas. “Descreveria o meu papel como o de uma pequena peça na engrenagem. Se se considerar isso culpa, sou culpado”, disse à revista Der Spiegel, há dez anos.
“Coisa horrível mas necessária”
Nascido em 1921, órfão de mãe desde os quatro anos, foi criado pelo pai, um nacionalista que aceitou mal a derrota na I Guerra Mundial e integrava o grupo paramilitar Der Stahlhelm, que se opunha ao Tratado de Versalhes. Oskar fez parte da organização juvenil e cresceu num ambiente belicista e anti-semita. Na entrevista à Spiegel, foi buscar à memória uma cantilena desses tempos: “E quando o sangue judeu correr pelas nossas facas, tudo ficará novamente bem”. “Na época não pensávamos muito no que cantávamos”, disse também.
Nascido em 1921, órfão de mãe desde os quatro anos, foi criado pelo pai, um nacionalista que aceitou mal a derrota na I Guerra Mundial e integrava o grupo paramilitar Der Stahlhelm, que se opunha ao Tratado de Versalhes. Oskar fez parte da organização juvenil e cresceu num ambiente belicista e anti-semita. Na entrevista à Spiegel, foi buscar à memória uma cantilena desses tempos: “E quando o sangue judeu correr pelas nossas facas, tudo ficará novamente bem”. “Na época não pensávamos muito no que cantávamos”, disse também.
Fascinado pelas músicas e fardas, alistou-se nas SS, uma força de elite nazi, onde inicialmente teve tarefas administrativas. Foi depois colocado em Auschwitz, lugar do assassínio de 1,2 milhões de pessoas, entre 1940 e 1945.
Alega que só se deu conta do que se passava no campo de concentração quando, numa ocasião, se aproximou da área das câmaras de gás, viu e ouviu. “Só me dei conta do horror quando ouvi os gritos.” Mas a crença em Hitler, a convicção de que a Alemanha perdera a I Guerra por causa dos judeus e que era dever da Alemanha destruir o judaísmo, permitiram-lhe conviver com a situação.
Afinal, explicaria mais tarde, via no extermínio de judeus “uma forma de fazer a guerra”, “uma guerra com métodos avançados”. “Se estiver convencido de que a destruição do judaísmo é necessária não interessa como as mortes ocorrem”, afirmou.
O que Oskar Gröning nunca recuperou foi a paz interior. “Sinto-me culpado em relação ao povo judeu, culpado por ter pertencido a um grupo que cometeu esses crimes, mesmo que não tenha sido um dos executores. Peço perdão ao povo judeu. E peço perdão a Deus”, disse à Spiegel.
“Envergonhei-me durante décadas e continuo envergonhado hoje. Não pelos meus actos, porque nunca matei ninguém […] Mas ajudei. Era uma peça da máquina que eliminou milhões de pessoas inocentes”, declarou, noutra entrevista, também de 2005, ao diário Bild. Quando o Die Welt lhe perguntou recentemente se iria falar em tribunal, respondeu: “Se ainda for vivo, sim”.
Depois de décadas sem que fosse abordado pela justiça, o julgamento tornou-se possível com a jurisprudência criada pela condenação, em 2011, a cinco anos de prisão, de John Demjanjuk, antigo guarda do campo de Sobibór, que morreria no ano seguinte, aos 91 anos. Foi a primeira vez que a justiça alemã condenou alguém por cumplicidade. Antes, só tinha havido condenações de dirigentes, em Nuremberga, e, depois, de comprovadamente envolvidos no extermínio. (público)
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