Muhammad Ali tinha a Marcha de Washington nos dois punhos
Nenhum outro atleta teve uma vida política tão apaixonada, complexa e transformadora como Ali. A sua luta contra a repressão e o racismo elevou a sua voz aos patamares de Martin Luther King e Nelson Mandela.

Foi uma enormidade, como tudo na vida de Muhammad Ali. As suas declarações chegaram às primeiras páginas dos jornais de todo o país. Não foi tanto pelo facto de um homem negro recentemente convertido a muçulmano se ter recusado a combater no Vietname, mas pela ideia de que alguém tão célebre podia fazê-lo num momento em que a maioria dos americanos apoiava a guerra. O que se tornou ainda mais surpreendente foi Ali justificar-se com os mesmos argumentos da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos segregados. “Matá-los por quê? Nunca me chamaram preto [nigger], nunca me lincharam, nunca atiçaram os cães contra mim, nunca me roubaram a nacionalidade, ou violaram e mataram a minha mãe e pai.”
Ali sofreu com a sua decisão. Por causa dela perdeu o título mundial e foi impedido de combater por três anos. Tudo isto no seu melhor momento de forma, quando podia esperar receber milhões de dólares. Ali recusou alistar-se mesmo quando o exército lhe ofereceu um posto em que não teria de combater. Um tribunal condenou-o a cinco anos de prisão, mas Ali recorreu e aguardou o desfecho do seu processo em liberdade. “O verdadeiro inimigo da minha gente está aqui. Não vou desgraçar a minha religião, a minha gente ou eu próprio tornando-me numa ferramenta para escravizar aqueles que estão a combater pela sua própria justiça, liberdade e igualdade. Se eu soubesse que a guerra traria liberdade e igualdade aos 22 milhões da minha gente não teriam de me recrutar. Juntar-me-ia amanhã. Não perco nada por respeitar as minhas convicções. Vou para a cadeia. E então? Estamos presos há 400 anos.”
Esta não era a sua primeira batalha política. Ali já se tornara um ícone da luta pelo fim da segregação e pelos direitos civis quando se converteu ao Islão e abandonou o seu “nome de escravo”, Cassius Clay, mesmo que a maioria dos jornais e alguns dos seus rivais se recusassem a tratá-lo por Muhammad Ali. Mas a oposição à frente no Vietname elevou a sua importância política para um patamar diferente. Ali foi a primeira figura pública americana a associar o Vietname à luta pelo fim da segregação e direitos civis e naqueles três anos discursou em universidades por todo o país sobre a ideia de que também a ordem política mundial— e não só os Estados Unidos — escondia a raiz racista de um mundo dominado pelo homem branco. Marthin Luther King só o fez um ano depois, em 1967, e mesmo assim teve de agir contra protestos de jornalistas e dos seus próprios conselheiros. Quando o justificou aos repórteres, Luther King não citou um qualquer pensador político. “Como Muhammad Ali diz, somos todos — negros e castanhos e pobres — vítimas do mesmo sistema de repressão.”
O processo de Ali chegou até ao Supremo Tribunal, que lhe deu razão e o confirmou como objector de consciência. Quando regressou aos ringues, em 1970, já o fez como uma figura emblemática não só na luta pelos direitos civis dos negros na América, mas também como uma voz importante pelo fim do colonialismo e imperialismo. "A Marcha de Washington em dois punhos", chamaram-lhe quando recebeu o prémio Martin Luther King. Ali olhava até criticamente para o seu próprio desporto. “Somos como dois escravos no ringue. Os patrões arranjam dois grandes escravos pretos e deixam-nos lutar enquanto apostam: ‘o meu escravo consegue desancar o teu escravo’. É isto que vejo quando vejo dois homens negros lutarem”, disse em 1970. “Que atleta moderno, principalmente no nível de Ali, fala com tanta complexidade, ambiguidade ou dedicação?”, questiona-se David Remnick na New Yorker.
O activismo político de Muhammad Ali não acabou com a sua carreira. Quando uma onda de islamofobia se abateu sobre os Estados Unidos depois dos atentados do 11 de Setembro, Ali começou uma discreta campanha em que defendia a imagem do Islão como uma religião de paz e igualdade. O palco da sua luta política, moldado durante muitos anos pela sua infância no Sul racista americano, atingiu uma escala global. A sua última grande intervenção aconteceu no final do último ano, quando Donald Trump, o agora candidato republicano à Casa Branca, prometeu proibir a entrada de muçulmanos no país. "Falando como alguém que nunca foi acusado de ser politicamente correcto, acredito que os nossos líderes políticos devem usar as suas posições para melhorar o entendimento sobre a religião do islão e deixar claro que alguns assassinos desorientados perverteram a opinião pública sobre o que é na verdade o islão."
Como escreve este sábado Barack Obama: “Muhammad Ali abalou o mundo. E o mundo ficou melhor por causa disso. Estamos todos melhores por causa disso.” (PÚBLICO)
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