Ana Nicolau, uma desempregada agora prestes a fazer 40 anos, não estava sozinha: com ela gritavam mais dezena e meia de pessoas, a maioria da associação Precários Inflexíveis. Manifestavam-se após a divulgação, pelo PÚBLICO,
das dívidas do então primeiro-ministro à Segurança Social. Ana Nicolau foi a única manifestante cujo processo chegou a julgamento, pela prática do crime de perturbação do funcionamento de órgão constitucional, que é punível com até três anos de prisão.
Nesta quinta-feira, em Lisboa, o presidente do colectivo de juízes que decidiu o caso, José Lopes Barata, afirmou que o país precisa de “cidadãos empenhados” como Ana Nicolau, mas também que “a sociedade não pode permitir que a sua actuação se faça dentro da Assembleia da República”.
"A arguida sobrepôs-se ao poder da Assembleia da República, ao impedir, ainda que por momentos, o seu funcionamento", pode ler-se no acórdão. Naquele dia, Passos Coelho preparava-se para responder a uma interpelação do socialista Ferro Rodrigues, precisamente sobre as suas dívidas à Segurança Social, quando foi interrompido por aquilo que a lei designa por “vozearias”. Foram escassos dois ou três minutos até a polícia evacuar as galerias, não tendo os trabalhos parlamentares chegado a estar interrompidos um minuto sequer. Mas diz o Código Penal que se sujeita a até três anos de cadeia “quem, com tumultos, desordens ou vozearias, perturbar ilegitimamente o funcionamento de um órgão constitucional”.
Ana Nicolau admitiu saber que está vedado por lei aos visitantes da Assembleia da República manifestarem-se nas galerias que lhes estão reservadas seja de que forma for – nem que seja em silêncio, envergando
t-shirts com determinada mensagem, ou ostentando narizes de palhaço,
como também já sucedeu. Alegou, porém, que ignorava tratar-se de um crime.
O facto de não ter demonstrado arrependimento pesou na condenação. Mas pesou também, e a seu favor, ter "pretendido contribuir para o bem-estar geral da comunidade", muito embora "de forma ilícita", observaram os juízes. Tal como ter levado a cabo o seu protesto "numa época de grave dependência financeira externa do país, o que causou grave conflitualidade social". Sem cadastro anterior, foi sentenciada a 180 dias de multa, à taxa diária de oito euros - valor que levou em linha de conta o facto de, apesar de não ter emprego, contar com 590 euros mensais de rendimento, provenientes da renda de uma casa que herdou do pai.
Os magistrados não escamotearam a questão do direito à liberdade de expressão que assiste a qualquer cidadão: "A única possibilidade que se vislumbra de os factos merecerem justificação seria terem sido praticados no exercídio desse direito". Acontece que, apesar de se tratar de um direito fundamental, "também pode sofrer restrições". À saída do tribunal, Ana Nicolau disse que ainda não decidiu se vai ou não recorrer da sentença."Se tivesse sido eleita deputada, podia ter gritado à vontade" dentro do Parlamento, referiu José Lopes Barata. Nada lhe sucederia. Como não é o caso, terá de pagar a multa. "Senão isto complica-se", avisou o juiz.
Assim que se soube da decisão, anunciada esta quinta-feira à tarde, activistas e amigos de Ana Nicolau solidarizaram-se com ela, estando em discussão nas redes sociais uma campanha de angariação de fundos para pagar a multa. O encenador Jorge Silva Melo sugere que sejam 1440 os subscritores da campanha, à razão de um euro por cabeça, e que divulguem uma declaração conjunta na qual demonstrem a sua indignação perante a punição aplicada pelo tribunal.
O PÚBLICO pediu reacções aos diferentes grupos parlamentares sobre a decisão do tribunal, mas poucos se pronunciaram até ao momento. Os comunistas dizem que não comentam decisões judiciais. Já Carlos Abreu Amorim, da bancada social-democrata, diz que vários dos protestos populares que sucederam na anterior legislatura "extravazaram em muito a liberdade de expressão".
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