“A justiça, na Madeira, não cumpre integralmente o seu estatuto”Entrevista a Martins Júnior
Martins Júnior é padre, foi presidente da Câmara Municipal de Machico, eleito como independente pela UDP e mais tarde pelo PS e deputado à Assembleia Regional. Antes do 25 de Abril já tinha uma acção importante junto da população da Ribeira Seca, onde ainda celebra Missa, mesmo tendo sido suspenso ‘ad divinis’ pelo bispo Francisco Santana, há quase 40 anos. Com 75 anos, afastado da política partidária, continua a ser uma voz muito crítica da acção do governo liderado por Alberto João Jardim. Vai inscrever-se nas primárias do PS porque se assume como simpatizante socialista.
Neste momento está afastado da política activa. Qual a sua principal actividade neste momento? Ocupo-me da comunidade da Ribeira Seca (Machico), como animador social, cultural e religioso e cumpro, medianamente, a minha missão. Também leio muito.
E continua a celebrar Missa. Sim, ainda esta manhã celebrei, como faço todos os dias.
Há quase 40 anos que está numa situação de suspensão ‘ad divinis’. Qual é o efeito dessa suspensão? Posso repetir o que disse, um dia destes, no Paço Episcopal, ao senhor bispo D. António Carrilho, quando também estava presente o senhor cardeal, D. António Clemente. Disse que a minha suspensão foi decretada e escrita entre aquela casa e a Quinta Vigia. Nunca passou pelo crivo dos tribunais e dos julgamentos. Até hoje, não sei porque é que fui suspenso.
Foi uma suspensão assinada pelo bispo D. Francisco Santana. Sim, exactamente. O que quero é que me julguem, não quero amnistia religiosa.
Fizeram-me um processo, posteriormente, de conluio entre o bispo D. Teodoro Faria e o Governo Regional, para me julgarem por usar cabeção, era essa a linguagem. O tribunal considerou improcedente, baseado na Concordata.
A sua suspensão aconteceu depois de uns célebres Crismas, em Machico e envolveu D. Francisco Santana. Em 1976, fui convidado por um casal, de Machico, para ser padrinho de um rapaz. O senhor padre Ribeiro passou-me a certidão e eu estava lá. Quando me viu o bispo disse que não aceitava concelebrar comigo, nem admitia que fosse padrinho. Eu disse que ficaria a assistir à Missa, mas ele disse que não celebraria enquanto eu não saísse. Disse-lhe que estava a abusar de um poder que não tinha. Disse-lhe que tinha nascido perto daquela igreja, que lá me baptizei, fiz a Primeira Comunhão, fiz o Crisma e disse Missa pela primeira vez e que não poderia sair dali. Depois, veio a suspensão.Até hoje, o único efeito prático acabou por ser o recordar-se essa suspensão regularmente, porque continuou a celebrar missa na Ribeira Seca. É verdade, até hoje.
Como tem sido o relacionamento com o actual bispo do Funchal que disse que iria resolver esse problema? Tenho falado imensas vezes com ele e a única coisa que digo é que quero ser julgado. Devo ser o único réu que foi condenado sem ter sido julgado. Repito, não quero uma amnistia religiosa.
Antes disso, como começou a sua actividade política? Foi na Guerra Colonial?Fui tenente capelão, em Moçambique, mas antes disso também estive no Porto Santo e também houve um sururu quando quiseram tirar-me de lá. Na altura, o Porto Santo era quase uma colónia penal.
Como é que foi parar ao Porto Santo? Fui para lá devido a um sermão que fiz na Catedral, a 1 de Dezembro de 1963. O 1º de Dezembro era uma aliança entre o poder político, militar e religioso. Cá fora, era quase sempre o Horácio Bento de Gouveia que fazia o discurso, com a Mocidade Portuguesa em formatura e dentro da Sé convidavam, quase sempre, um sacerdote doutorado em Roma.
Mas nesse ano foi diferente, convidaram um jovem padre. Porquê? O dr. Emanuel Paulo Ramos era o presidente da Sociedade de Geografia na Madeira e era essa instituição que organizava as cerimónias. Ele veio falar comigo e disse que queriam que fosse eu a fazer o sermão. Eu perguntei se não estava enganado e queria, mesmo, um caloiro como eu a fazer o sermão. Ele insistiu e lá fui. Fiz algumas afirmações polémicas. Uma delas foi que os maiores criminosos não estavam na cadeias. Outra, foi dizer que Cristo não precisa de adoradores que venham ajoelhar-se em fofas almofadas vermelhas. O que eu fui dizer! Quem estava ajoelhado na almofada vermelha era o governador, o Brancamp Sobral! Guia de marcha para o Porto Santo.
No Porto Santo viveu episódios curiosos. Chegaram a sequestrá-lo para não ir embora, não foi? Meteram-me numa casa, no Campo de Baixo e vigiavam, dia e noite, com medo que a PIDE viesse buscar-me. E veio. Eu nem sabia o que era a PIDE e até falava com o agente que estava lá. O senhor Vieira veio dizer-me que tinha um táxi para me levar ao aeroporto se eu quisesse. Ele foi correcto, nesse aspecto. Depois veio muita gente e com medo que me levassem para a Madeira, imagine-se, levaram-me para o Ilhéu da Cal.
Depois do Porto Santo foi para a tropa? Sim, depois do Porto Santo fui para Moçambique.
Depois da guerra veio para Machico? Eu vim de uma África para outra África, atendendo às condições inferiores em que o povo da Ribeira Seca vivia, sem água potável, sem luz eléctrica, sem estradas. O povo da Ribeira Seca era marginalizado por estas condições infra-humanas.
Foi nesse tempo que começaram as obras comunitárias na Ribeira Seca? Fizemos muita coisa, o povo até montou um transformador, construiu caminhos. Pedi ajuda à Junta geral, cujo presidente era o Homem Costa e ajudaram-me imenso. Até devo dizer que, apesar de tudo, nunca no tempo do fascismo, Machico e a Ribeira Seca foram tão perseguidos como no tempo desta Madeira Nova.
Mesmo depois do 25 de Abril continuaram a ter problemas? Sim, Machico foi mais perseguido com a Madeira Nova. Nem o Estado Novo nos fez um massacre como esse.
Machico era um dos alvos da FLAMA? Sei, de fonte certa, que a FLAMA andou a rondar a Ribeira Seca, durante alguns dias. Quem me disse sabia, era alguém do grupo que foi desprezado, que não agraciado, como outros foram, pelo Governo Regional.
É desse tempo que vem a sua divergência profunda com Alberto João Jardim?Sobretudo pela forma como ele tratou Machico e prejudicou muito.
Nesses maus tratos aconteceu a ocupação da igreja da Ribeira Seca, de madrugada. O que me custa foi o que fizeram ao povo, não a mim.
Também teve vários episódios polémicos na Assembleia, até foi vítima de agressões. Uma vez no intervalo da Assembleia, entrei e não vi ninguém no corredor, o que estranhei. Foi tudo orquestrado para o Egídio Pita me agredir. Se eu ripostava era expulso. Não lhe toquei e fui bater ao hospital.
Depois foram as pratas da Assembleia que desapareceram e eu até acabei por ter um processo que acabou de uma forma caricata. Fiquei ano e meio sem por os pés na Assembleia, devido ao processo movido pelo parlamento, mas ganhámos.
Hoje, passados 40 anos, que imagem fica da Madeira? Fica uma melhoria de qualidade de vida, evidente, a obra material. Fica a casca, mas fica uma alma deteriorada, uma seiva inoculada da matriz fascista. Para mim, a Madeira Nova tanto apregoam não é mais, politicamente, do que uma cópia actualizada do Estado Novo.
Porquê? É de uma evidência total. Quem foram os capitães de Abril na Madeira? Um colaboracionista da União Nacional, que até escreveu na Voz da Madeira, o actual presidente do Governo Regional. O outro capitão de Abril, na Madeira, foi o bispo Francisco Santana, amarrado de pés e mãos ao regime fascista. Conheci-o antes de ser bispo e ele dizia-me que tratava por tu os ministros do Salazar. Um homem profundamente ligado e submisso ao regime salazarista. Com estes dois pilares na Madeira, o que é que queríamos do 25 de Abril se não mais do mesmo?… Só ficou o verniz, tantas vezes inútil.
Essa marca negativa é responsabilidade de Alberto João Jardim? Esse homem chamou a um deputado do seu partido, filho de outro deputado destacado, ‘petit Salazar’. Esse homem é o ‘grand Salazar’. Estamos a respirar um capacete salazarista adaptado aos dias de hoje e há atitudes que o demonstram.
A justiça é outro sector determinante neste processo. Por exemplo, o caso Cuba Livre está há três anos a marcar passo. Quatro décadas depois do 25 de Abril isto é aceitável? O que vou dizer é uma evidência, a justiça, na Madeira, não cumpre integralmente o seu estatuto. Nestes casos do GR há uma ficção de justiça e deveria o Conselho Superior da Magistratura ter uma mão mais forte sobre estes casos. Como disse há dias a procuradora Maria José Morgado, não temos a justiça que o Povo merece.
Nas últimas eleições autárquicas, o PSD-M sofreu uma derrota significativa. Acha que foi um golpe decisivo para o futuro da política regional? Na noite das eleições eu disse, numa rádio, que era verdade que me tinha amedrontado o regime monocloror em que Madeira vivia, mas que também me assustava este tsunami que agora invadiu a Região. Como num casamento, o que mais custa não é começar é aguentar. Era bom que não se inebriassem com a vitória.
O que tem acontecido dá-lhe razão? Infelizmente. A política enferma de dois vícios estruturais, de um lado o voluntarismo que eu chamaria ingénuo, do outro o carreirismo calculista. Esta gente que ganhou as câmaras provavelmente nunca esperaria que lhe caísse nos braços estas crianças… O trabalho preparatório que deveria ter sido feito antes das eleições, teve ser feito depois.
O próprio PS também entrou em ebulição, na Madeira e no continente. Não é militante, mas vai participar nas primárias do partido? Sim, vou inscrever-me. Sou simpatizante socialista e até fui promotor do partido durante muitos anos. Acho que isto vai ser bom, vai renovar, vai acordar, vai fazer os titulares do PS caírem na realidade. Mesmo entre nós, acho que ainda não caíram na real.
Última questão, de resposta rápida: acredita que é desta vez que Aberto João Jardim sai? Mesmo que ele fique já está na rua.
Quadras das romagens foram à censura
“Admiro muito os poetas populares porque numa quadra conseguem sintetizar várias ideias”, afirma Martins Júnior, quando recorda as quadras que o povo da Ribeira Seca cantava, nas romarias, antes do 25 de Abril, em plena ditadura fascista
‘A Senhora do Amparo – já está muito magoada – por ver os paroquianos – beber água da levada’. Uma queixa em relação à falta de água potável.
‘Santíssimo Sacramento – batemos à vossa porta – valei a nossa miséria – já que a câmara não se importa’. Outra quadra, mais directa e que acabou por provocar reacção dos responsáveis pela censura.
“Os versos das romagens da Ribeira Seca chegaram a ser levados ao inspector de espectáculos, ao ‘Lápis Azul’ e a PIDE até foi lá assistir às romagens”, recorda.
Santos Costa, Ex-secretário do governo de Jardim, foi muito activo nos ‘Julgamentos populares’ de Machico em 1975
Um dos casos mais polémicos do período quente, pós-25 de Abril, na Madeira, foi aquele que ficou conhecido como o ‘julgamento popular’, em Machico, de seis jovens que pintaram inscrições do grupo separatista FLAMA.
Martins Júnior recorda o episódio, garantindo que tratou “sempre bem os rapazes”, mas que temeu o que o povo poderia fazer.
Santos Costa, anos mais tarde secretário regional do Equipamento Social, terá sido, segundo Martins Jr. um dos principais promotores do ‘julgamento’. “Ele tem registos fotográficos de tudo”, garante.
Um dos jovens tinha 16 anos e todos os outros tinham mais de 18 anos. “Dois eram filhos do engenheiro Moura, dos Açores, activista da FLA”, recorda. Foram apanhados pelos trabalhadores da MATUR e levados para a polícia que funcionava na dependência da câmara, então presidida pelo padre Martins.
“Recebi um telefonema do tenente-coronel Azeredo, governador da Região que me mandou metê-los no calabouço mas não fiz, porque um era menor”, garante.
O problema foi que a carrinha da PSP que veio buscar os rapazes para os levar para o Funchal avariou “com o povo sempre a se amontoar à porta”, a exigir ver os autores das inscrições. “Toda a gente sabia que depois das inscrições da FLAMA vinham as bombas”, assegura.
“O Santos Costa foi um dos ‘heróis’ dessa identificação dos rapazes”, lembra.
“Depois veio um Unimog da tropa, deram bastonadas às pessoas e foi um pandemónio. Dias depois deram-me a carta de alforria e deixei a câmara”. (DN/Madeira disponível só para assinantes)
Convém não meter toda a justiça no mesmo saco!
ResponderEliminar