António de Oliveira Salazar era uma pessoa de hábitos. Tinha o seu médico, o seu calista, o seu barbeiro, a sua governanta, os seus ministros, a sua bíblia, o seu regime, a pátria, as províncias, as políticas, a polícia, o seu cantinho afectivo em Santa Comba Dão, residência oficial em São Bento, a residência de Verão no Forte de Santo António, no Estoril, onde tinha o seu terraço e, neste, a sua famosa cadeira de lona, com os seus contornos definidos, como se fosse de um velho realizador de cinema. Uma ironia do destino, gasta pelo uso, com vista para o mar que cercava o Búgio.
Não se sabe exactamente se foi Salazar quem traiu a cadeira ou se foi esta que traiu o ditador. Sabe-se que no dia 3 de Agosto de 1968, o presidente do Conselho caiu desamparado, caindo o Estado Novo no vazio, batendo com a cabeça na lajes do terraço. Não era caso para alarme, comunicou Salazar. Naquela altura, as suas palavras ainda eram ordens. Embora no caso em apreço, Maria de Jesus Caetano Freire, a fiel governanta, guardasse muitas reservas. Tinha sido uma queda feia. E o senhor doutor, Deus o protegesse, já não ia para novo. Não foi a queda, foi a ordem que a impediu de telefonar a Eduardo Coelho, médico de Salazar durante mais de duas décadas, pessoa de absoluta confiança, que já tinha livrado este paciente de algumas condições clínicas de cuidado, incluindo uma pneumonia atípica, três anos antes destes acontecimentos.
Eduardo Coelho visitava Salazar de 15 em 15 dias. Soube da queda alguns dias depois, na sua visita regular. Um exame preliminar não detectou sequelas objectivas. Mas o médico advertiu que, em casos como estes, os sintomas são sorrateiros – para evitar chamar-lhes subversivos -, só se manifestando mais tarde. Instruiu a governanta para ficar vigilante, pois uma pancada na cabeça podia reservar consequências muito sérias. Tinha de estar atenta a cansaços inusitados, dificuldades motoras, perdas de memória, tonturas. Nesse caso, devia avisá-lo sem hesitações.
Na manhã de 5 de Setembro, a três dias da sua visita quinzenal, conforme descreve Eduardo Coelho no seu livro Salazar o Fim e a Morte, que António Macieira Coelho – seu filho, igualmente médico, que a espaços também acompanhou Salazar no período da doença -, publicou nos anos 90, o médico de Salazar recebe um telefonema da governanta. Os tais sintomas verificavam-se, sendo notórios há mais de dois dias. O que mais D. Maria estranhou foi a fadiga mental, de todo invulgar no seu "governante de estimação. Questionada pelo médico, tinham sido observadas lacunas de memória, um conjunto de sinais de motricidade, sensibilidade e da esfera psíquica muito característicos".
Muito característicos de um prognóstico muito reservado, tratando-se de quem se tratava. Para Eduardo Coelho, que não era neurologista, tudo apontava para um "hematoma subdural". A confirmar-se, era urgente uma intervenção cirúrgica. Eduardo Coelho pediu autorização a Salazar para chamar um neurocirurgião. Com relutância, o paciente concordou. Em coisas de médicos, Maria, omnipresente, não se metia. Para o senhor doutor, só tinha um pequeno dixit, que deixou no ar, que nem Salazar se atreveu a desdizer: "Veja lá se vem alguém que esteja contra a Situação..."
A longa urgência
Segundo Eduardo Coelho, foi por exclusão de três partes que escolheu António Vasconcelos Marques, neurocirurgião dos Hospitais Civis. Só conseguiu contactar Vasconcelos Marques à noite, pelo telefone. Este lamentou não poder aceder à sugestão de uma visita imediata, marcando-a para as 15 horas do dia seguinte, 6 de Setembro de 1968. O dia mais longo da vida do médico de Salazar.
Chegaram ao forte de Santo António pelas 16 horas. Pelo caminho, Eduardo Coelho tinha feito um relato da situação clínica do doente e do seu diagnóstico provisório. Tratava-se de uma situação potencialmente grave. Vasconcelos Marques não tinha como saber que era assim. Só por isso Eduardo Coelho não o culpava de não ter considerado a situação urgente na noite anterior. A recusa não tinha caído bem. Havia semeado antagonismo crónico entre estes médicos. O tempo confirmá-lo-ia à saciedade.
Depois da consulta 'in loco' ao doente, concordaram na necessidade de fazer um electroencafalograma. Mas só pelas 20 horas se dirigiram para o Serviço de Neurologia dos Hospitais Civis. Este não era um doente qualquer. Nenhuma decisão estava inteiramente na mão dos médicos. Em São José, fizeram-se radiografias ao crânio, que não indiciavam fractura, mas nada que demovesse Eduardo Coelho da sua convicção: hematoma intracraniano subdural, cirurgia imediata. Vasconcelos Marques "continuava a duvidar". O impasse em nada ajudava Salazar, cuja condição se agravava progressivamente desde que abandonaram o Estoril.
Não estava fácil o contacto com os ministros. Só depois de chegar à fala com Paulo Rodrigues, subsecretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, se decidiu encaminhar Salazar para o Hospital dos Capuchos para fazer o electroencefalograma. Lá, foi decidido que Salazar tinha de ser imediatamente internado. Por sugestão firme de D. Maria, escolheu-se a Casa de Saúde da Cruz Vermelha, hoje hospital, onde chegaram às 23h45.O almirante Américo Tomás, então chefe de Estado, foi informado, assim como a cúpula do Estado Novo e os amigos mais próximos de Salazar. Enquanto o presidente da República não chegasse à Cruz Vermelha, as decisões estavam presas preventivamente. Os médicos usaram o tempo para debater o caso clínico. E assim ocorreu a primeira contenda pública entre Eduardo Coelho e Vasconcelos Marques, num crescendo de violência verbal. O médico de Salazar não abdicava do seu diagnóstico, enquanto o neurocirurgião se inclinava mais para uma trombose, que não requeria cirurgia. Os médicos discutiam, deputados e ministros e até outros médicos ouviam, como se assistissem a um duelo.
Mário Figueiredo, antigo ministro da Educação e presidente da Assembleia Nacional e o professor Bissaya Barreto, anterior médico de Salazar e um dos seus melhores amigos, e José Soares da Fonseca, antigo ministro das Corporações e presidente da Câmara Corporativa, eram alguns dos presentes, atónitos com o evoluir da discussão, à qual se juntou o professor Almeida Lima, outro reputado neurocirurgião, que admitia também poder tratar-se de uma trombose. Mas o internista estava irredutível. Em torno da discussão, ia engrossando a plêiade do regime, que chegava a conta-gotas. Muitos chegavam atrasados porque, nessa noite, Antenor Patiño, multimilionário boliviano residente em Sintra, dava um dos seus sumptuosos bailes de gala.
Eduardo Coelho foi mais convincente que os médicos da especialidade. Começaram os preparativos para a intervenção cirúrgica, enquanto se aguardava por 'quorum' político para uma decisão desta magnitude. A equipa de neurocirurgia baixou um piso, para o bloco operatório. A decisão estava tomada. Luz verde.
A cirurgia, que decorreu já pela madrugada de 7 de Setembro, tinha por chefe de equipa Vasconcelos Marques, acompanhado por outros dois neurocirurgiões: Álvaro de Ataíde e Lucas dos Santos, sendo Maria Cristina da Câmara a anestesista de serviço. Assistiram à operação de Salazar mais nove médicos, incluindo o inevitável Eduardo Coelho, Bissaya Barreto, Luís Lopes da Costa (director da Casa de Saúde da Cruz Vermelha), Almeida Lima, Ana Maria Monteiro, João de Castro, João Bettencourt, Jorge Manaças e Silva Santos, todos na condição de espectadores.
Esta cirurgia, na qual se removeu um hematoma subdural intracraniano, salvou a vida a Salazar. Ficaria, porém, para a história como um estranho caso por resolver. O tempo foi apagando a maioria das suas testemunhas oculares.
E subsistiu a velha discussão de dois homens: Eduardo Coelho e Vasconcelos Marques, que à data era chefe do Serviço de Neurocirurgia do Hospital dos Capuchos e, tecnicamente, o salvador da pátria. Eduardo Coelho sempre afirmou peremptoriamente que foi Álvaro Ataíde quem operou Salazar. Vasconcelos Marques asseverava que Álvaro Ataíde apenas fez a primeira incisão. Eduardo Coelho morre uns meses depois da revolução de Abril. Mas António Macieira Coelho, seu filho, junto com a família, levaria o assunto até à barra dos tribunais, num processo que se arrastou até aos anos 90. Na madrugada de 7 de Setembro de 1968, isso pouco importava. Salazar estava vivo. As acusações, tal como as condecorações, ficariam para depois.
O paciente do quarto 68
A Cruz Vermelha passou a ter uma prioridade residente. Salazar ficou internado no quarto 68. Lopes da Costa, o director, mandou fechar a ala direita do sexto piso, fortemente guardada pela PIDE. Os seis quartos até ao número 75 eram ocupados pela equipa clínica que cuidava em permanência de Salazar, o pessoal de enfermagem e, claro, o corpo de guarda. O primeiro boletim clínico emitido para a nação, à hora de almoço do dia 7 de Setembro, referiu a queda sem referir a cadeira, acrescentando que o seu médico assistente, perante sintomatologia evidente, tinha recorrido a dois neurocirurgiões, conduzindo a uma situação que se resumia nisto: "Sua Excelência foi operado esta noite de um hematoma, sob anestesia local, encontrando-se bem".
O segundo boletim, difundido às 21 horas do mesmo dia, era mais objectivo e, ao mesmo tempo, menos. Substituia a gravidade da situação pela grandeza da boa- nova, colocando no passado a cirurgia e no presente o futuro, em cenário de total recuperação. Esclarecia-se que o presidente do Conselho tinha sido "operado com êxito de um hematoma subdural", continuando "a melhorar progressivamente". Foi censurada a palavra "intracraniano", para não ferir susceptibilidades de esperança ou de pesar.
Os boletins clínicos seguintes, eram como o prolongamento de um conto de fadas clínico, após uma tempestade subdural, sem qualquer necessidade de ser intracraniana. 4º boletim, 10 de Setembro de 1968: "Tudo se encaminha para a normalidade". 5º boletim, 11 de Setembro: "Acentuam-se as melhoras". A 15 de Setembro foi veiculado o que era entendido pelos médicos como o último dos boletins: "O senhor presidente do Conselho entrou em franca convalescença e regressará brevemente à sua residência de Lisboa". De acordo com a realidade, nada mais falso.
Merritt não ia mentir: "uma hemorragia intracerebral é uma lesão grave que ameaça a vida do doente". Mas, "os cuidados médicos que o presidente tem recebido e o tratamento que foi instituído para a hemorragia intracerebral foram excelentes e não poderiam ter sido ultrapassados em parte alguma do mundo". Foi a primeira de duas visitas (a segunda ocorreu meses mais tarde, já em São Bento) de Houston Merritt a António de Oliveira Salazar. Eduardo Coelho não entendeu nenhuma. Certamente tinha mais significância política do que médica. Ainda assim, também não entendia qual.
Na Cruz Vermelha era um verdadeiro corrupio. Para além de uma legião de beatas que passavam os dias em peregrinação ao quarto 68, era também constante a presença de membros do governo e de políticos, sussurrando pelos cantos. Foi como se a Casa de Saúde se tivesse transformado num enorme gabinete de crise. Entre os médicos, comentava-se a chamada ao Palácio de Belém. Américo Tomás queria escutar prognósticos da boca dos médicos, para tomar a decisão mais difícil da sua vida política: a "substituição" de Salazar. Quando se falava nisto, adicionava-se quase sempre um "provisoriamente". A vida de um dos ditadores mais longevos da Europa, parecia por um fio, mas a sua resistência e a hipótese de um volte-face clínico aconselhava prudência. Não seria por falta de oração. As beatas lá fora tomavam chá, faziam crochet e rezavam o dia inteiro por Salazar, como se estivessem no seu mausoléu.
A 24 de Setembro, Eduardo Coelho define assim a situação: "Os políticos não deixam os médicos em paz, querem meter o nariz em tudo". No dia seguinte, os médicos foram convocados a Belém. Da sua opinião, dependia a presidência do Conselho de Ministros, sabiam-no. Eduardo Coelho entrou e saiu do Palácio de Belém com a mesma sensação: a decisão de substituir Salazar já estava tomada. No dia 28 de Setembro, Marcelo Caetano toma posse na presidência do Conselho. Eduardo Coelho ficou seriamente desconfiado da relação de proximidade entre Marcelo Caetano e Vasconcelos Marques.
Mal se conheciam antes do coma de Salazar e agora pareciam velhos amigos. As palavras que Marcelo Caetano disse ao corpo clínico quando visitou a Cruz Vermelha três dias depois, ficaram registadas na mente do médico de Salazar: "Não sacrifiquem os serviços hospitalares a que pertencem os médicos auxiliares que aqui fazem turnos, na vigilância de complicações súbitas, quando o doente vai morrer, em prejuízo dos doentes de urgência que podem aparecer nos serviços hospitalares e que é preciso salvar".
O Boletim Clínico de 4 de Outubro dava substância aos arautos do inevitável: "O período já decorrido após o AVC, sem recuperação apreciável, não permite prever quaisquer melhoras das lesões do sistema nervoso". Salazar era o que em termos médicos se definia como "grande inválido".
Do seu silêncio profundo, o eterno presidente do Conselho ainda tinha algo a dizer. No dia 15 de Outubro, quase um mês depois do AVC, Salazar emergiu do coma. Nada menos que um milagre, aclamaram as beatas. Saiu de um progóstico reservado para outro, com várias complicações graves que surgiram: "desequilíbrio ácido básico, alterações metabólicas, insuficiência renal, situações graves de natureza cardiovascular".
No pós-coma, Salazar teve seis episódios cardiovasculares, num dos quais teve de ser reanimado com choques de 200 watts, ministrados por Eduardo Macieira Coelho, à data graduado de Cardiologia no Hospital de Santa Maria, filho de Eduardo Coelho. Aparentemente, estava no ADN da família salvar Salazar. "Todas as complicações que o nosso doente apresentava foram de medicina interna e só poderiam ser resolvidas por internistas".
Eduardo Coelho não entendia a razão de Vasconcelos Marques passar os dias no quarto 68, quando um neurologista já não era para lá chamado. Para o médico de Salazar, tal facto só podia estar relacionado com as boas graças de Marcelo Caetano, que era presidente do Conselho, mas nunca no quarto 68. Foi neste momento que a contenda entre estes dois médicos se tornou irreversível. Ainda para mais, Vasconcelos Marques pretendia cobrar honorários pelo seu trabalho, pelo qual, aliás, seria condecorado por Américo Tomás, por recomendação de Marcelo Caetano. Eduardo Coelho referia uma fortuna de honorários: "três milhões de escudos". A verba cobrada ao Estado por Vasconcelos Marques foi bastante mais pequena: pouco mais de 550 mil escudos (perto de 150 mil euros).
Vasconcelos Marques não estaria perto de Salazar muito mais tempo. No dia 15 de Dezembro de 1968, o neurocirurgião, por ordem do presidente da República, comunicou na Cruz Vermelha que Salazar podia ter alta. No dia 19, comunicou à direcção da Cruz Vermelha que dava por finda a sua assistência clínica ao paciente do quarto 68. Embora estivesse ainda semi-paralisado do lado esquerdo, Salazar já comunicava, só se calando quando se punham a falar com ele como se "fosse uma criança". Para ele, continuava a ser presidente do Conselho. No seu quarto continuava a receber ministros e a mais altas entidades do País, como se o tempo não tivesse passado. Não imaginava que em coma o haviam substituído.
Só no dia 5 de Fevereiro de 1969 é que o doente teve alta efectiva da Cruz Vermelha. "Quando o termómetro atingiu 10 graus à sombra e o sol brilhava no céu descoberto, dei ordens para que viesse a ambulância", recordava Eduardo Coelho. Mais um dia e Salazar tinha completado cinco meses de internamento.
No palacete de São Bento, a disposição de Salazar melhorou muito nos primeiros dias. Até o cardeal Cerejeira, Patriarca de Lisboa e amigo de longa data de Salazar, se referiu a Eduardo Coelho como uma "recuperação extraordinária", para quem há coisa de cinco meses tinha recebido uma extrema unção. Tinha sido ele, aliás, a ministrá-la. Em São Bento correram os meses mais ligeiros, mesmo com o ditador quase sempre acamado. Prosseguia um contínuo desfile de personalidades de visita ao convalescente, cruzando conversas de política nacional e internacional, como se estivessem na presença do legítimo presidente do Conselho. Os ministros, que lá iam para a sua peça de teatro, faziam o mesmo, assim como os médicos, que faziam visitas de cortesia. A saúde de Salazar já não preocupava como antes, no calvário comatoso. Mas era visível o seu estado de fraqueza. As insónias não o deixavam descansar. Algo premonitório, só no dia 25 de Abril de 1969, Salazar conseguiu dar um passeio pelos jardins de São Bento. Na prática, estava internado numa casa que já nem sequer lhe correspondia na lei, embora isto não lhe pudesse moer a consciência, dado o seu estado de ignorância sobre a sua realidade. Nem chegou a saber que Marcelo Caetano tinha feito uma visita oficial a África, onde Salazar nunca tinha posto um pé.
D. Maria faz-lhe massagens aos pés, "que lhe doem com frequência". Só uma vez Eduardo Coelho viu Maria de Jesus a chorar. Foi no dia 26 de Maio de 1969. O professor Bissaya Barreto tinha sugerido à governanta que contasse a verdade a Salazar. Tal nunca aconteceu. Depois de quase um ano e meio internado em São Bento (o seu médico chamava-lhe sequestro), a condição de saúde de Salazar agudiza. No dia 15 de Julho de 1970, adoece gravemente. No dia seguinte, uma nova equipa de médicos, chefiada pelo professor Jacinto Simões, especialista em nefrologia do Hospital Curry Cabral, monta uma unidade de cuidados intensivos em São Bento. Salazar teria mais 11 dias de vida. O seu médico recorda uma expressão que Salazar repetiu inúmeras vezes durante o longo período da sua convalescença: "Ainda estou vivo" (fonte)
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