sexta-feira, 13 de junho de 2025

Raquel Varela dá o seu testemunho sobre o glorioso padre Martins Júnior

 


Raquel Varel, uma mulher de Abril.


«Morreu o Padre Martins. Perdi um do grandes amigos de sempre. Estou abalada, triste e até incrédula, ainda. Portugal perde hoje - não tenho dúvidas - a figura central que condensa a revolução dos cravos. É um dos poucos portugueses que alcançou dimensão universal e que ficará na história, quando o tempo se encarregar de deitar fora a panóplia de vazios que inundam o espaço mediático.
Muitos falarão do Padre que esteve junto dos pobres contra a hierarquia da Igreja, não é pouco, mas não é único. Recordarão o seu compromisso com a cultura, ensino da literatura, da poesia e da música. Referirão a sua dimensão política, há outros casos, maiores. Ele foi tudo isso mas foi mais. O que lhe dá um lugar na história universal é que Portugal teve a mais profunda revolução do pós guerra, quase 3 milhões de pessoas decidiram dia a dia como deviam viver, e isso aconteceu num país que teve a mais longa ditadura da Europa, 48 anos, e que nunca teve um partido fascista, ao contrário da Itália ou da Alemanha, porque a Igreja Católica cumpriu essa função. E a Igreja é o lugar onde mais se aprendeu a pensar, organizar e administrar a sociedade portuguesa. Não por acaso o fascismo hoje vem do Estado e da Igreja mais uma vez. O Padre Martins usou tudo o que aprendeu na Igreja para construir não a dominação mas a emancipação. Pegou nessa porção mágica, o saber organizativo da Igreja - e fez dela não um veneno obscurantista, como era, mas o elixir da vida.
Ele foi para a Igreja porque a mãe achou que assim podia estudar, foi um aluno tão brilhante que teve uma dispensa papal especial para ser ordenado padre, tão novo. Essa distinção deu-lhe direito a fazer o discurso na Sé, num dia da pátria, o 1 de Dezembro, e ele usou-o para dizer que Deus não está com quem se ajoelha em fofas almofadas vermelhas. Estavam à sua frente os governadores civis e militar ajoelhados em almofadas vermelhas. Daí, o castigo foi Porto Santo, um deserto, chegou lá e alfabetizou a população, criou a tuna, teatro, de sanfona, a PIDE persegui-o. Foi enviado para a guerra colonial e disse ao brigadeiro - "não vou fazer de Nossa Senhora a Padeira de Aljubarrota!".
Veio então, de castigo, para a Ribeira Seca, na Madeira, um ermo sem água, luz, escola, estradas, e aí aboliu a confissão, que era usada para chantagem e denúncias à PIDE, disse "falem com Deus directamente", enfrentou a PIDE. Tocou sanfona, criou saraus de poesia e teatro, e cantando e compondo músicas ocuparam as terras que os senhorios usurpavam, a Madeira teve um regime feudal até 1974. Criaram uma democracia participativa em que todos em Machico, reuniam, discutiam e decidiam tudo. Nunca foi paternalista com o povo, sempre ensinou que o caminho era reunir, pensar, agir. A extrema direita organizada em milícias tentou matá-lo, a polícia não fazia nada para impedir a extrema direita, e eles, em Machico, em resposta, construíram um comité de auto defesa, de operários e estivadores e lavradores que, ao toque do sino, largavam o trabalho para defender-se da FLAMA, organização terrorista.
Quando em desespero, já nos anos 1980, enviaram a polícia cercar a Igreja, o povo cercou a polícia, 18 dias e 18 noites.
Até que Alberto João, o Bispo e a Polícia saíram finalmente e ao fim de anos de luta, derrotados nesta história. Ao povo da Ribeira Seca, Martins ensinou tudo, mas sobretudo ensinou a ousar pensar por si próprios. Ali, ainda hoje, as bordadeiras escrevem ideias claras para programas políticos, têm voz própria, os operários tocam música, empregadas de limpeza de hotel escrevem poesia, camponeses fazem teatro. Ali houve uma democracia real. Um exemplo eterno para os tempos que correm.
Tudo isto foi possível porque ele casou a fé com a utopia, o cristianismo com o marxismo - a teologia da libertação -, mas aqui, ao contrário do Brasil, foi mais longe porque esse encontro se deu na maior revolução da Europa do pós-guerra. Ele foi um Jesus histórico em acção concreta no século XX, não como um novo Messias, por favor, como ele odiava idolatrias, "veludos" e conclaves dos "corvos do Vaticano" - tinha um sentido de humor único. Não era Messias, não era salvador. Ele foi, até o fim, um educador e um organizador. É isso que faz um político, é isso que faz um revolucionário, é isso que faz quem tem esse poder - o conhecimento - e quer realmente transformar a vida do povo. Jesus e Antero de Quental eram a sua inspiração.
Nestes tempos em que essa característica fundamental dos políticos, líderes religiosos e culturais foi abandonada - organizar e educar para que as pessoas se possam autoemancipar -, e agora só temos políticos figuras públicas, especialistas em comunicação, ou gestores do país com delírios omnipotentes, o Padre Martins esteve cá a dizer, a vida toda - "é mais fácil rezar do que pensar", votar de 4 em 4 anos não chega, é preciso organizar, agir. A sua história é um manual anti fascista para os tempos que correm. Ele foi um encontro raro entre uma revolução e um indivíduo excepcional, entre a Idade Média e um mundo novo utópico, que Portugal, que sorte, viveu em 1974-1975.
Eterna saudade, meu querido amigo, dos nossos passeios nas levadas, das ponchas na venda da Natália, das nossas conversas onde se podia falar de tudo, com confiança, das piadas, dos piropos, das ironias, dos erros, dos desejos, do prazer de viver.
Tentei contar a vida dele no meu livro O Canto do Melro (Bertrand). A sessão em que íamos estar este Domingo em Grândola foi cancelada, claro. Mas estaremos na feira do livro, a falar sobre ele e homenageá-lo, dia 21 de Junho como estava previsto.
Quando eu e meu amor, o meu Beto, lhe pedimos para nos casar, já anos depois de estarmos juntos, disse-nos surpreso e indignado "Não precisam, já estão?!" . Pensei, será por sermos ateus? e respondi-lhe "Mas, Padre Martins, é na casa dos meus pais, no jardim, junto da família e amigos, é uma festa" - "Entendi! Se é com o jardim por chão e o céu azul por tecto, aceito". Rimos, abraçámo-nos. Envergava, quando nos deu as alianças, os paramentos bordados pelas bordadeiras da cooperativa, construída na revolução, que acabou com os intermediários, gestores e devolveu a elas o sentido do trabalho. Por isso, passaram a bordar flores e pássaros em vez de cruzes.»

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