A primeira edição de O Enigma Chinês, Capitalismo ou Socialismo, foi lançada em 1987. Ou seja, nove anos após os reajustamentos decorrentes da revolução cultural chinesa e da abertura da China aos investimentos estrangeiros, e sete anos após o início das reformas em seu sistema socialista. Talvez por essa proximidade temporal, tal ensaio tenha sido encarado com o mesmo ceticismo com que a China era vista naquele momento.
Muitos marxistas consideravam inconcebível que o socialismo comportasse a convivência da propriedade social com a propriedade privada para desenvolver as forças produtivas. E os ideólogos da burguesia não concebiam que tal convivência e tal dualidade continuassem sendo chamadas de socialismo.
Vinte e sete anos depois, com o lançamento da segunda edição de O Enigma Chinês pela Editora da Fundação Perseu Abramo, não se pode dizer que aquelas convivência e dualidade, aparentemente esdrúxulas, tenham sido superadas. Mas deve-se reconhecer que a China promoveu dois saltos até então desconhecidos na história. Elevou-se à condição de segunda potência econômica mundial, sem contar com qualquer exploração colonial e semicolonial complementar. E retirou 800 milhões de pessoas do nível de miséria e de pobreza.
Talvez bastasse isso para justificar a nova edição de O Enigma Chinês. Mas a comparação de suas previsões com o atual estágio de desenvolvimento da China, assim como a retomada da discussão sobre os problemas teóricos e práticos envolvidos em sua experiência de socialismo de mercado, provavelmente sejam úteis a todos aqueles que têm o socialismo como horizonte viável.
Afinal, a China iniciou suas reformas num momento de problemas e mudanças globais profundas. Ela acabara de sair da prolongada revolução cultural, através da qual tentara desenvolver as forças produtivas com a participação direta das grandes massas do povo. Osocialismo de tipo soviético apresentava sinais evidentes de fadiga. Derrotado no Vietnã, o imperialismo norte-americano realizavam reajustes em sua Guerra Fria contra o comunismo e, em conjunto com a Europa, propagavam seu ingresso numa suposta era pós-industrial e noconsenso neoliberal da globalização capitalista.
Ou seja, o capitalismo desenvolvido realizava um grande realinhamento estratégico e reestruturava seu processo produtivo, com a incorporação das ciências e tecnologias como novas forças produtivas, e a consequente queda da taxa média de lucro, que o empurrava à globalização, ou mundialização, prevista por Marx.
A China esgotara, na prática da luta social da revolução cultural, algumas das principais teorias em voga a respeito da construção socialista. Primeiro, a ideia de que seria possível realizar tal construção apenas com a participação de formas de propriedade estatais e coletivas. Segundo, a de que seria possível desenvolver as forças produtivas sem a necessidade do mercado. Terceiro, que seria possível implantar a igualdade desde o início.
O que a obrigava a uma nova retirada estratégica, na qual seria necessário realizar um projeto preliminar de reajustamentos econômicos e de abertura ao exterior. E, a seguir, passo a passo, um conjunto de reformas no seu socialismo, combinando planejamento e mercado. Tais reformas deveriam conformar, num prazo de 30 a 50 anos, uma civilização material e culturalmente elevada.
As condições básicas para isso eram: o PC e o Estado não se afastarem da perspectiva socialista; o PC não mudar sua natureza de classe e continuar tendo o marxismo-leninismo e o pensamento maozedong como instrumentos teóricos fundamentais; e o centralismo democrático ser mantido como principal instrumento de expansão da democracia.
Tal caminho levou grande parte dos teóricos marxistas, keynesianos, marginalistas e neoclássicos, por razões diversas, a alimentarem a visão de que a China regredira ao capitalismo e se subordinara às leis férreas das grandes corporações transnacionais. O Enigma Chinês se contrapôs a tais visões e não deixa de ser reconfortante que, 27 anos depois de ser escrito, grande parte de suas previsões tenham se materializado.
Sua releitura, portanto, pode contribuir para que a análise da emergência da China leve em conta as razões que embasaram o projeto de reformas e as confrontem com os fatos históricos. Isto é, aquela retirada estratégica considerou o socialismo como um sistema de transição prolongada para alcançar o modo de produção, circulação e distribuição totalmente social. Ou seja, um sistema em que convivem em cooperação e competição formas de produção sociais e capitalistas. E, no caso chinês, partindo do degrau primário, pelo atraso de suas forças produtivas.
A China, portanto, se tornou uma economia de mercado. No entanto, não idêntica àseconomias de mercado capitalista dos demais países da Ásia oriental, nem às dos países capitalistas ocidentais. A economia de mercado chinesa mantém uma série de características chinesas, que a diferenciam das economias de mercado puramente capitalistas. Neste sentido, o papel do Estado na China continua sendo diferente do papel do Estado nas demais economias de mercado existentes no mundo.
Esse papel não ocorre apenas na circulação e na distribuição das mercadorias e da renda, mas também, e fundamentalmente, na distribuição da propriedade dos meios de produção. O Estado chinês continua mantendo como propriedade social a maior parte do sistema financeiro e do sistema de desenvolvimento científico e tecnológico, assim como os ramos estratégicos da indústria e da infraestrutura.
Além disso, o Estado chinês continua interferindo na economia de mercado, seja economicamente, através de seus bancos, indústrias e fazendas estatais, seja administrativamente, através dos órgãos de governo. Interferência no sentido de direcionar o mercado para um desenvolvimento menos caótico e mais equilibrado das forças produtivas, e para corrigir seus desvarios em relação a preços e propriedades.
Portanto, o Estado chinês não interfere somente para implantar a infraestrutura física de funcionamento do Capital. Ou para apoiar um ou outro setor do Capital em suas constantes disputas nacionais e internacionais. Ou, ainda, para salvar o Capital das crises cíclicas em que se debate. O foco do Estado chinês continua sendo seu povo.
Sem comentários:
Enviar um comentário