Gil Canha
Quando vi no facebook o vídeo do advogado António Franco Fernandes a perorar sobre a quarentena imposta aos viajantes que chegam ao nosso aeroporto e que são compulsivamente encaminhados para a Quinta do Lord, que ele denominou de “Campo de Concentração Nazi”, não liguei lá muito, pois conheço muito bem a exuberância extravagante e pomposa do nosso advogado, conhecido no nosso meio, pelo seu enervado e entroviscado caráter. Contudo, comecei a receber vários telefonemas de pessoas amigas (algumas até divertidas com o vídeo, nomeadamente na parte final, onde o nosso causídico cria um pequeno e aflitivo tremor-de-terra na sua secretária) informando-me que o vídeo estava a ter muitas visualizações. E então, para desfazer certos equívocos e inverdades que possam baralhar e confundir a opinião pública, resolvi pegar na minha pena eletrónica para falar um pouco dos surtos epidémicos e suas consequências ao longo da história, tendo sempre como pano de fundo, a figura embaciada do Dr. Franco Fernandes.
A postura revoltada e individualista de Franco Fernandes não é nova nem é única. Ao longo da história e das epidemias que apoquentaram a humanidade sempre houve um intenso e acalorado debate sobre as medidas a tomar para fazer frente às “pestilências” pandémicas. Umas demasiadamente cruéis, outras desumanas, umas benéficas, outras ainda completamente ineficazes e aloucadas.
Quando no século XIV, mais propriamente em 1347, os barcos genoveses chegaram ao porto de Messina (Sicília) fugidos ao cerco dos Mongóis em Caffa (cidade costeira do Mar Negro), vinham as suas tripulações completamente infetadas e debilitadas com a denominada “Morte Negra”. As autoridades do porto sabiam que vinha doença a bordo, pois os mesmos barcos já tinham infetado a cidade de Constantinopla, mas como eram de certa forma conterrâneos deixaram os barcos aportar. Quando se aperceberam do que vinha a bordo, ordenaram que ninguém saía dos barcos nem entrava, só que, durante a noite, as ratazanas negras escapuliram-se pelos cabos da amarração e suas pulgas trataram de levar a maior e a mais devastadora pandemia da história da humanidade por toda a Europa, causando a morte a 20 milhões de pessoas, dizimando quase 1/3 da população do Continente (a nível global morreram cerca de 200 milhões de pessoas).
Como havia poucos conhecimentos sobre este flagelo e como curá-lo, as pessoas interiorizaram que a terrível doença tinha sido enviada por Deus para castigá-los dos seus pecados, e então andavam grupos de homens (do tipo do Dr. Franco Fernandes) pelas cidades e vilas, se auto-torturando, para redimir os pecados da humanidade. Além destes grupos de flagelantes, perseguiram-se certas pessoas, acusando-as de envenenarem fontes, de serem heréticas, de praticarem feitiçaria, ou de se terem aliado ao demónio para atormentar os crentes. E, como não podia deixar de ser, os judeus foram logo acusados de serem os principais responsáveis pela disseminação da epidemia, e em muitas cidades europeias muitos deles foram massacrados e outros queimados vivos em enormes fogueiras.
Estes métodos de “contenção”, aloucados e insanos, também foram acompanhados pelas primeiras medidas de salubridade, de isolamento e quarentena, impostas a cidades, vilas, portos e até entre nações.
Muitos dos sobreviventes ganharam imunidade à Peste Bubónica, mas como as gerações seguintes não adquiriram essa característica genética, periodicamente o continente Europeu sofreu terríveis surtos desta pestilência, incluindo Portugal, o que levou os nossos reis a impor duras medidas para travar estes ressurgimentos, reflexos estes que também chegaram à Madeira, logo no final do século XV. (Se o Primeiro-Ministro Inglês Boris Johnson soubesse deste pequeno/grande pormenor não teria tido a brilhante ideia de deixar a população se infetar com o Covid-19 para ganhar imunidade)
Segundo o Doutor Alberto Vieira, as disposições régias determinavam que todos os navios que aportassem o porto do Funchal, vindos de portos suspeitos de possuírem a doença, eram obrigados a verificações sanitárias e quarentenas complementares, realizadas pelos chamados Guardas da Saúde (agentes fiscalizadores suportados pelo município, graças à taxa sobre a carne) e sendo as tripulações encaminhadas e isoladas para umas cabanas cobertas de palha, que existiam no alto de Santa Catarina. Posteriormente, com o crescimento da nossa cidade para oeste, esta espécie de “lazareto”, foi transferido para o cabo do Calhau, na Praia Formosa e Ribeira dos Socorridos. (Se o Dr. Franco Fernandes vivesse nesse tempo, o que ele não diria, se a sua augusta pessoa fosse convidada a fazer quarentena nuns barracos, onde hoje, possivelmente, está localizado o laguinho dos patos, no Parque de Santa Catarina)
Os vários surtos de peste que nos apoquentaram no final do Sec. XV e ao longo do Séc. XVI exigiam esforços redobrados das nossas autoridades que, procurando conter a doença causavam sérios entraves ao movimento comercial da cidade e à privação da liberdade das pessoas, e que originaram imensas queixas, desde o Deão da Sé até aos comerciantes da urbe, que viam os seus negócios comprometidos e arruinados com estas medidas sanitárias. Os Guardas da Saúde eram os primeiros a subir aos navios e dependia deles a autorização para a descarga ou envio das tripulações para quarentena, que variava desde 4 dias de isolamento até 50 dias (o Dr. Franco Fernandes enlouqueceria com isto…) sendo o período mais longo para embarcações vindas de portos onde grassava a peste. Segundo Alberto Vieira, muitas tripulações chegaram a fazer quarentena nas ilhas Desertas, tal era o pavor da doença.
A peste bubónica não era bem uma brincadeira, os principais indícios da doença, eram uns inchaços nas virilhas e debaixo dos braços, os chamados “bubões”, daí o nome da enfermidade, e o aparecimento de uns furúnculos negros.. (não vou descrever em pormenor, porque não quero impressionar as pessoas neste inquietante período em que vivemos) e causava uma mortalidade acima dos 60%. Por estas razões terríveis, em Maio de 1521, o povo da cidade do Funchal fez um voto a S. Santiago Menor, entregando nas mãos do Santo a saúde da cidade, na esperança deste aplacar a terrível epidemia, que lavrou na ilha até 1538.
Nos séculos seguintes, e como em toda a Europa, sofremos vários surtos de doenças altamente contagiosas que causaram imensa mortandade na ilha, como a Varíola, a Cólera, a Tísica (Tuberculose, também chamada Peste Branca), o Tifo, e a terrível Gripe Espanhola ou Gripe Pneumónica (1918), pandemia causada pelo famigerado vírus H1N1, que só em Portugal matou cerca de 135 mil pessoas, e que na Madeira e por causa dela, levaram muitos dos nossos bisavós e avós, à fome, à miséria e à dor, pela perda dos seus entes queridos.
Por causa destas terríveis doenças, ao longo do Século XIX e inícios do Século XX vimos as entidades públicas a desenvolverem esforços para prevenir, conter, e circunscrever estas epidemias com cordões sanitários, muitos deles militarizados e com quarentenas rigorosas. Obviamente, que estas medidas draconianas enfureciam muitas vezes as populações, que levadas por sentimentos irracionais tentavam libertar das instalações do Lazareto (se fosse hoje, o Dr. Franco Fernandes certamente chamaria de Auschwitz) os pacientes ali internados ou faziam esperas aos Médicos ou às equipas sanitárias, para os injuriar e apedrejar, sendo por vezes necessário pedir a intervenção da força armada para os acalmar. E atrás destes instintos meio animalescos, vinham por vezes alguns comerciantes espertalhões queixando-se que as medias sanitárias lhes estragavam os negócios (!)
Peço antecipadamente desculpa por maçar os leitores com estas coisas, mas o tal vídeo meio baboso e rezingão do Dr. Franco Fernandes merece mais uma linhas, para avivar o espírito de certa gente que pensa que a história não se repete e que as terríveis pandemias só apareceram em 2020.
Nos surtos de Cólera-morbo na Cidade do Porto (1855 a 1857) que causaram 20 mil mortos, impôs-se quarentena aos navios, proibição de circulação de pessoas e fecho de mercados e feiras. As medidas altamente restritivas foram vistas como desnecessárias e excessivas pelos franco fernandes da altura, e a controvérsia dominou a imprensa da época. No Congresso Sanitário de 1857, os especialistas confirmaram que as medidas tinham salvado vidas apesar dos protestos dos anticontagionistas, que defendiam que a liberdade do indivíduo e do comércio estava acima de tudo.
Logo em 1885, a Espanha é atacada por um novo surto de Cólera. O governo português, pela mão do Ministro do Reino, Barjona de Freitas, manda tropa para a fronteira e não deixa sair nem entrar ninguém. Foram proibidas feiras, mercados, touradas e são impostos cordões sanitários. Quem chegava, era enfiado no lazareto de Elvas, e inclusivamente, o Infante D. Augusto, que se tinha deslocado a Madrid em representação do irmão, o Rei D. Luís, nas exéquias de Afonso XII, ficou retido na vinda, no lazareto de Marvão, para a obrigatória quarentena (as autoridades tiveram sorte porque o príncipe não era o nosso Dr. Franco Fernandes, que iria acusar logo Marvão de ser um campo de extermínio)
Como Borjona de Freitas insistia no rigoroso controlo dos cordões sanitários, no fecho da fronteira, e defendia o uso de armas e da cavalaria para dispersar as pessoas que teimavam em fazer feiras que tinham sido canceladas, e como tinha montado na capital um barracão/hospital de campanha para receber os potenciais doentes, ordenando que os cirurgiões e médicos militares não podiam gozar dispensas de serviço, foi chamado à Câmara dos Deputados para se explicar. No meio de impropérios de certos deputados da oposição (outros franco fernandes) acusou-os de manipular a opinião pública contra as medidas tomadas, e disse: “estou a evitar que o país siga o exemplo de Espanha, que já hoje está convertida num hospital e parece tender a converter-se num cemitério”. (Isto é de tal maneira profético que até arrepia).
Nesse ano de 1885, a Cólera terá matado cerca de 120 mil pessoas em Espanha, mas graças às medidas restritivas da mobilidade dos cidadãos de Borjona Freitas, o surto não se disseminou em Portugal.
No final do século, a 24 de Agosto de 1899, a cidade do Porto sofre uma terrível epidemia de Peste Bubónica, diagnosticada pelo famoso médico Ricardo Jorge. É estabelecido um cordão sanitário à volta da cidade vigiado por militares. No interior, são impostas medidas altamente restritivas da mobilidade dos cidadãos e da circulação de mercadorias e impôs-se medidas higiénicas para combater os agentes transmissores da doença (a rataria e respetivas pulgas). Suprimiram-se os comboios, as feiras, as romarias, e outros ajuntamentos. Ricardo Jorge, como médico municipal, isolou os doentes e tomou medidas radicais para delimitar o contágio. Agentes sanitários, acompanhados pela polícia, faziam visitas ao domicílio e se encontravam um doente, era logo isolado, queimadas as suas roupas e forçado o seu internamento compulsivo e de todos os seus familiares e vizinhos. Todas estas ações provocaram grande revolta popular, originando cenas de autêntica guerra civil. Apedrejaram as casas dos médicos, as forças da ordem ripostaram com dureza e até bombas se lançaram contra a guarda municipal e forças da infantaria. O presidente da Câmara (da mesma linha do Dr. Franco Fernandes) apresentou a demissão, em protesto contra o cordão sanitário, que limitava a circulação de mercadorias e a liberdade dos comerciantes, que ele considerava uma ingerência do governo central de Lisboa com o propósito de aniquilar a vida local.
Concluindo, o cordão sanitário à volta da cidade e as medidas severas do ilustre Ricardo Jorge salvaram o país do terrível contágio, e dos 326 casos declarados na cidade do Porto, somente 111 pessoas morreram da epidemia.
Para finalizar de dar ao teclado como louco em período de quarentena, é preciso não esquecer que a Varíola, levada para as Américas pelos Europeus, dizimou ao longo dos últimos séculos milhões de ameríndios que não tinham qualquer imunidade para a doença, havendo comunidades indígenas que foram completamente extintas. Nas ilhas do Hawaii (ex Sandwich Islands), na segunda metade do Séc. XIX, a comunidade madeirense ali estabelecida assistiu às medidas mais cruéis e brutais que se fizeram na época, para conter a Hanseníase (lepra), que afetava maioritariamente os povos autóctones do arquipélago que não tinham imunidade ao flagelo. Os ilhéus nativos que tinham sinais da doença eram arrancados do seio familiar e eram enviados para sempre para a ilha de Molokai, onde existia uma colónia de leprosos quase abandonada à sua sorte. A fim de dar apoio a esses leprosos, o padre belga Damião de Veuster mais alguns voluntários religiosos, mesmo sem terem a doença, ofereceram-se para ajudar e dar alguma dignidade aos enfermos segregados, acabando o padre Damião por contrair a terrível enfermidade.
Outro grande exemplo de abnegação e respeito pela lei (na altura o Hawaii era um reino) foi de Bill Ragsdale, que sendo um exímio tradutor, editor, jornalista, e membro duma rica e ilustre família mestiça do arquipélago, mal contraiu a doença, apresentou-se voluntariamente às autoridades sanitárias, para ser enviado para o cruel isolamento na ilha de Molokai, e assim não contaminar os seus concidadãos, conforme ditava a impiedosa lei.
Este exemplo final de grande altruísmo, não é bem para o Dr. Franco Fernandes, pois comparar a Quinta do Lord com um Campo Nazi é precisamente a mesma distância física e temporal que separa um honorável Bill Ragsdale de um presunçoso jurista resmungão enfiado com a mamã num habitáculo em Oeiras, aos murros em cima duma pobre secretária. (ver FÉNIX)
Aliás a estupidez vê-se todos os dias no Correio da Madeira.
ResponderEliminareste extenso texto, por si inútil, pois vais buscar exemplos de mil oito e mil nove e troca o passo, são de facto um grand e GRAVE indicio de ausência analítica e estupidez enraizada.
ResponderEliminar