sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Repitam comigo: Não somos bilionários e nunca seremos

 

 A obsessão pelas marcas e pelos sinais de luxo faz parte desta ideologia que nos distancia da nossa própria condição social. No caso dos mais pobres pode ser um IPhone, para os remediados uma viagem a Punta Cana, para alguém um pouco mais desafogado uma refeição num restaurante com estrelas Michelin.

 Livrem-se daquela linha artificial e vejam como fica”. Donald Trump fala como um agente imobiliário que entra pela casa enquanto nos convida a imaginar como ficaria melhor a sala se derrubássemos aquela parede que tira tanta luz. No caso, está a falar da fronteira do Canadá e, claro, apressa-se a explicar que não tenciona invadir o país vizinho, mas apenas usar “a força económica” para deitar abaixo o muro que o separa do norte, porque só são para manter as paredes viradas a sul. Esta ideia que Trump nos está a vender parece uma piada distópica, uma aberração, mais uma ilustração grotesca do ponto a que chegou o mundo, mas é mais do que isso: é o enunciado de uma nova era.

 Donald Trump não podia ser mais claro. “Como Presidente, rejeitei as abordagens falhadas do passado e estou orgulhosamente a pôr a América primeiro, tal como vocês deviam fazer nos vossos países. Isso está certo. É isso que devíamos estar a fazer”. A frase resume um programa político e está longe de ser apenas sobre geopolítica. É sobre cada um de nós.

  Trump e todas as suas derivações pelo mundo querem apenas uma coisa: que nos concentremos apenas em nós próprios, cada um por si. A lei da selva é a que mais lhes convém, por uma razão muito simples: numa sociedade dividida, serão sempre eles os mais fortes.

 A política é um jogo de poder e o poder sempre esteve distribuído de forma muito desigual. Não há novidade nenhuma nisso. Durante as últimas décadas, os sistemas democráticos ajudaram a equilibrar um pouco as coisas, obrigando os muito poderosos em recursos a aceitar as regras que os menos poderosos mas muito numerosos lhes podiam impor. Claro que estes sistemas nunca foram perfeitos e claro que houve sempre formas de os perverter, mas há uma consequência clara e um dado novo nesta ascensão da ultradireita libertária.

 A consequência clara é o fim das barreiras, o fim da vergonha, o fim da decência, o fim do limite aos que têm mais poder. E não é por acaso que Mark Zuckerberg aproveita a onda para deixar cair qualquer tipo de verificação de factos nas redes sociais da Meta. As barragens estão abertas e a partir daqui é mesmo cada um por si, como Trump quer.

 A novidade é que desta vez essa entidade abstrata chamada “povo”, que a novilíngua diz serem “as pessoas”, está agora disposta a embarcar nesta voragem suicida. Os mais pobres acreditam que são os seus próprios empresários, felizes por encontrarem formas de “monetizar” a sua vida, crentes na próxima raspadinha ou criptomoeda, indiferentes ao sofrimento dos outros, que são demasiado preguiçosos para prosperar ou que os impedem de atingir os píncaros da riqueza simplesmente por existirem como falhados que dependem de apoios sociais (que muitas vezes não chegam sequer para sobreviver).

  Há muito quem se escandalize por ver pobres de IPhone e até já ouvi uma autarca socialista defender que esse telefone era um sinal exterior de riqueza que devia ser usado para aferir quem pode ou não ter acesso a apoios sociais. Quem acha que ter uns ténis de marca ou telemóvel caro significa estar fora da pobreza não percebeu nada do que se anda a passar há décadas na cultura ocidental.

 A obsessão pelas marcas e pelos sinais de luxo faz parte desta ideologia que nos distancia da nossa própria condição social. No caso dos mais pobres pode ser um IPhone, para os remediados uma viagem a Punta Cana, para alguém um pouco mais desafogado uma refeição num restaurante com estrelas Michelin.

 Somos precários, comemos de pé de um tupperware à porta do frigorífico, fazemos horas extra e biscates, não sabemos por quanto tempo teremos teto, deixamos de ter vida social e amealhamos para conseguir alguma coisa que nos faça sentir melhor, um objeto de desejo que não vai mudar materialmente nada nas nossas vidas, mas que servirá como um símbolo de que também nós conseguimos chegar lá.

 É mentira. Ninguém passa à condição de rico por ter um objeto de luxo. Muitas vezes o que se compra é uma espécie de luxo para pobres que as grandes marcas criam para satisfazer essa procura e que não é aquele que vendem a quem realmente tem dinheiro, outras não está em causa sequer o luxo mas a possibilidade de comprar de forma automática e aditiva que é dada pelas marcas de produtos baratos e descartáveis.

 “Shop like a billionaire”, diz o anúncio da gigante chinesa Temu que passou no intervalo da Super Bowl nos Estados Unidos (o espaço comercial mais apetecido do mundo), onde se via uma rapariga de animação com ar de gata borralheira a ser transformada em Cinderela graças à magia das compras online, ao som de uma música de ressonância pop com o refrão “Now I belive I can have it”.

 Esta mentira permite manter uma alienação que é o terreno mais fértil para que estes poderosos da ultradireita passem a manipular o sistema, descartando qualquer tipo de escrutínio ou constrangimento. Nós acreditamos que podemos ser como eles e, por isso, não os combatemos.

 A palavra “liberdade” ganhou uma votação da Porto Editora para o título de palavra do ano, com 22% dos votos, numa disputa que a notícia do Público dizia ter sido “renhida” com as palavras “conflitos” (21,3%) e “imigração” (21,2%). Só podemos especular sobre aquilo em que estaria a pensar quem votou em cada uma delas. Mas há uma coisa que sei: a palavra “liberdade” está em mutação e não quer hoje dizer o mesmo que há 50 anos. Esta “liberdade” que agora as redes sociais anunciam com o fim da verificação de factos é parte integrante de uma narrativa do caos, que privilegia os de sempre.

 A todos os que se encantam com essa liberdade, aos que endeusam os ultramilionários, aos que seguem os gurus e anseiam pela vitória das máquinas sobre os humanos, quero apenas recordar que é sobre os vossos despojos que se construirão os impérios deles.

 Agora, repitam comigo: Não somos bilionários e nunca seremos. 

Margarida Davim também escreve no Blog Pravda ilhéu.

3 comentários:

  1. Margarida Davim bem vinda à equipa de redação do Pravda Ilhéu.

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