sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Quando o trabalhador já pensa que é um capitalista!

Temos muitos patrões. Mesmo que muitos deles sejam só o sr. José do café ou o sr. Manel da tabacaria, eles sentem que estão no mesmo barco da Jerónimo Martins ou da Sonae


 Não é por acaso que os funcionários públicos costumam ser os bombos de qualquer festa sob o mote “são todos uns malandros”. É que eles, mesmo que sejam professores que se esforçam por ensinar crianças, médicos que tentam salvar vidas, polícias que nos mantêm seguros, auxiliares que ajudam os doentes, administrativos que tratam de chatices, não são nem serão nunca patrões de si próprios. Logo, só podem ser uns grandes preguiçosos. E se têm horário de trabalho e direitos é porque não se esforçam nada. E não importa que quem o diga possa estar encostado a uma máquina de café das 11h à hora de almoço, perca eternidades em reuniões que não servem para nada ou tenha entrado na empresa por ser sobrinho do chefe. Não importa, porque foi tudo por mérito. O mérito não é só o que nos salva, é também o que nos faz acreditar que somos todas patroas, apesar de trabalharmos como costureiras. E se ao nosso lado está alguém que só subiu por ser um sacana que nem liga à família ou se chegou a chefe por ter um apelido sonante, é só um caso de exceção. Uma andorinha não faz a primavera. A não ser que seja um andorinhão da função pública, nesse caso basta que um seja um preguiçoso empedernido para que se esteja mesmo a ver que todos os outros são iguais. Farinha do mesmo saco.

 Sentirmo-nos no mesmo saco faz toda a diferença, mesmo que uns estejam por cima e os outros por baixo a sufocar. O generalíssimo Franco, que sabia destas coisas, percebeu isso bem. E arranjou uma maneira de pôr os espanhóis a acharem-se todos da classe proprietária, depois de uma greve no pagamento das rendas, que pôs o país de pantanas em 1931, quando 100 mil famílias se recusaram a pagar valores que consideravam ser especulativos e as deixavam na miséria e resistiam de tal forma aos despejos que em Barcelona a Guardia de Asalto republicana começou a deitar os móveis pelas janelas para impedir que os despejados regressassem a casa com os pertences intactos. A greve fez baixar as rendas em 50%.

“Queremos una sociedad de propietarios, no de proletarios”, disse José Luis Arrese, o primeiro ministro da Habitação da História de Espanha, numa altura em que uma profunda crise económica fazia os espanhóis migrarem do campo para as cidades, em busca de trabalho. Uma lei de 1954 permitiu que o Estado espanhol financiasse cerca de 60% do valor de casas a custos controlados, ao mesmo tempo que o franquismo desincentiva o mercado de arrendamento. O apoio ia para construtoras privadas, que entre 1961 e 1975 ergueram quatro milhões de fogos. Os construtores prosperaram e o Estado criou o Banco Hipotecario de España para dar os créditos que a banca privada temia conceder. As classes trabalhadoras continuaram a ser exploradas, mas podiam agora arrogar-se do privilégio de ser proprietárias, mesmo que à custa de pesadas dívidas.A ideia de dar a uma larga franja da população o direito de propriedade de uma casa pode parecer emancipadora. Mas a História de Espanha mostra como o investimento feito não produziu os efeitos positivos que tiveram os gastos em construção pública em países como a Áustria ou os Países Baixos. A bolha imobiliária espanhola de 2008 revelou os limites de um modelo especulativo, em que os imóveis deixam de ser casas para serem ativos, quando a população perde poder de compra. A emergência na Habitação, que tem feito os espanhóis saírem às ruas nos últimos meses, mostra como a falta de um mercado de arrendamento regulado está a deixar sem teto os filhos e os netos dos proprietários gerados pelo franquismo.

Se alguém se vê como proprietário de alguma coisa, mesmo que seja de um pequeno T2 na periferia, está mais disponível para se revoltar contra uma taxa criada para desincentivar o alojamento local. Vai pensar: “Podia ser comigo.” Mesmo que, na verdade, essa taxa só vá pesar realmente no bolso de fundos que multiplicam os AL em edifícios inteiros nos centros da cidade. Se pensarmos que, segundo o INE, cerca de 70% dos portugueses têm casa própria (ainda que uns 23% estejam a pagá-la ao banco), percebemos por que são impopulares medidas que podiam ajudar muitos a ter um teto.

 Há um pensamento idêntico que se produz quando estão em causa direitos de trabalho e que talvez se explique pelo facto de 99,9% das empresas em Portugal serem PME. Temos muitos patrões. Mesmo que muitos deles sejam só o sr. José do café ou o sr. Manel da tabacaria, eles sentem que estão no mesmo barco da Jerónimo Martins ou da Sonae, que no primeiro semestre deste ano bateram um recorde ao registarem vendas de 124 milhões de euros por dia. O sr. José, que acorda todos os dias às cinco da manhã, e o sr. Manel, que está farto de fazer contas à vida e não vê como se possa reformar, não entendem por que há de ser um problema assim tão grande se as empresas puderem começar a despedir só porque querem “renovar os quadros”, que os contratos a termo se eternizem ou que os sindicatos deixem de poder ter atividade em empresas onde não há ainda sindicalizados. E as filhas e as noras deles, que como 80% das mulheres portuguesas não puderam ou não quiseram dar de mamar até aos seis meses, também não percebem que drama há em andar a marcar idas ao centro de saúde para espremer as tetas à frente do médico e provar que se tem direito a sair duas horas mais cedo do trabalho.

Eles não percebem, mas eu posso tentar explicar. Se os jovens não tiverem segurança no emprego nem possibilidades de ter uma casa, não ficarão por cá a trabalhar e a fazer descontos que hão de ajudar a pagar as pensões e os impostos que sustentam os hospitais, as estradas e o policiamento. Se as mães e os pais não tiverem trabalhos que lhes permitam ficar com os filhos pequenos, se não puderem recusar trabalho ao fim de semana para cuidar deles, se não tiverem com quem os deixar, não terão filhos ou partirão rumo a paragens onde ter uma família e usufruir da infância dos filhos não seja um luxo. Por cá, ficarão os velhos e, se tivermos sorte, os imigrantes que tanto arrepiam alguns, mas que farão os trabalhos que mais ninguém quer pelos salários com que mais ninguém consegue viver. (Margarida Davim)

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