Proferem as sentenças mais escabrosas e injustas protegem os maiores ladrões da actualidade os agentes de execução.
"Licença para roubar"
Faltam milhões de euros nas contas-cliente de alguns agentes de execução. Esses valores foram desviados das penhoras que fizeram de salários, pensões e até subsídios de desemprego, no âmbito de processos executivos, para as suas contas pessoais ou de empresas que controlam. Direção Alexandra Borges. Este conteúdo é da total responsabilidade do GRI - Grande Reportagem e Investigação
Maria João Marques foi a última agente de execução a ser acusada recentemente pelo Ministério Público de Sintra de peculato, branqueamento de capitais, falsidade informática e falsificação de documentos. A terceira secção do Departamento de Investigação e Ação Penal do Ministério Público do Tribunal de Sintra considerou que, desde 2007, a arguida terá delineado um plano com o marido para se apropriarem das quantias das penhoras.Entre 2007 e 5 de setembro de 2014, altura em que foi suspensa, Maria João Marques, o marido, Rui Marques, e Ana Cristina, uma funcionária do escritório também arguida, terão desviado um total de 351 729,16 euros das penhoras de processos de ação executiva que a antiga agente de execução tinha à sua responsabilidade.
Segundo a acusação, o dinheiro das penhoras, que devia ter entrado nas 13 contas-cliente de Maria João Marques, terá sido transferido para as suas contas pessoais, do marido e de uma empresa que constituíram na Madeira - a Oceanflowers, SA - e que não tinha nem empregados, nem atividade, apenas contas bancárias, numa tentativa de branquear o rasto do dinheiro desviado.Foram oito anos de investigação num processo que conta com 22 volumes, 78 apensos e 60 testemunhas de acusação, algumas ouvidas através de cartas rogatórias enviadas para setes países.
No entanto, o GRiDigital (www.GRidigital.pt) concluiu que a acusação analisou apenas uma pequena amostra e detetou este valor desviado em apenas 12 dos mais de 23 mil processos da antiga agente de execução.
Patrícia Duarte, agente de execução substituta de Maria João Marques, foi obrigada a liquidar os valores movimentados em cada um dos processos da antiga colega. Oito anos depois, já conseguiu ver à lupa 6 500 dos nove mil processos e garante que faltam mais de dois milhões de euros provenientes de penhoras nas 13 contas-cliente da antiga agente de execução. Um valor muito superior aos 351 mil de que a arguida foi acusada de desviar ilicitamente.
"Isso quer dizer que o crime compensa. Eu posso roubar aquilo que quiser, mas só sou acusada de uma pequena parte", ironiza. "Não acredito que, de dois milhões e poucos euros, a dra. Maria João não tenha 350 mil para repor", observa Patrícia Duarte, ao ser confrontada com o baixo valor que consta da acusação.
António Marinho Pinto, ex-bastonário da Ordem dos Advogados, corrobora a mesma ideia: "Na ação executiva em Portugal, o crime compensa". Durante anos, Maria João Marques e o seu marido terão prejudicado milhares de pessoas - executados que terão pagado e exequentes que não terão recebido. "O criminoso nunca sai a perder, e era importante que fosse o contrário, que quem comete um crime saísse a perder. Não só com o que locupletou indevidamente, mas também com uma parte do seu próprio património para ter um efeito dissuasor de futuras práticas idênticas", acrescenta o antigo bastonário.
Maria Rego garante ser uma das vítimas desta antiga agente de execução. Em 2003, comprou uma televisão a prestações no El Corte Inglês e assegura que pagou cada tostão. No entanto, a financeira da empresa considerou que não terá pagado quatro prestações e, em 2008, mandou a agente de execução Maria João Marques penhorá-la. "Fui ao escritório da Parede e disse que tinha todos os recibos para mostrar, mas viraram-se para mim e disseram que há muita gente que diz que pagou e depois fica sem as casas, porque não pagou", relata indignada, enquanto mostra os recibos já envelhecidos pelo tempo.
À conversa com as vizinhas, Maria Rego desabafa sobre o "inferno" em que se tornou a sua vida. "Vizinha, eu estou aqui por causa de uma televisão que comprei há 20 anos, mas eu tenho aqui os recibos todos", conta, exasperada. Há mais de duas décadas que guarda num baú em casa os papéis que comprovam os pagamentos do aparelho televisivo. "Se me procurarem a mim, eu não tenho recibos nenhuns", confessa a vizinha de Maria, espelhando a realidade da maioria dos executados.Maria João Marques nunca terá entregado os valores penhorados ao credor. Anos mais tarde, a financeira do El Corte Inglês - a maior lesada da agente de execução agora acusada - vendeu parte desses créditos à Intrum, empresa de gestão de cobranças, que, agora, voltou a penhorar Maria Rego. "Hoje, vêm uns e põe-me um papel na porta. Amanhã já são outros. Para o ano, se for preciso, vêm outros de outro lado e eu nunca mais me vejo livre disto. Mostro os recibos, penso que acabou o pesadelo e, no ano seguinte, está outro pesadelo à porta", remata revoltada.Patrícia Duarte garante que herdou os problemas da antiga colega. É ela quem recebe os telefonemas das vítimas no seu escritório onde está inundada por mais de 11 mil processos de Maria João Marques. "Eu não posso fazer mais. Se o dinheiro foi desviado e não entrou nas contas, o exequente não o recebeu, a dívida subsiste e nós temos de prosseguir com a penhora", reconhece, impotente. "No limite, o executado é penhorado duas vezes e fica revoltado, mas paga novamente para se ver livre da dívida".
Maria Rego já tem uma televisão nova que comprou a pronto, porque se recusa, desde essa altura, a contrair mais créditos. "Sou pobre, mas séria. Sempre paguei as minhas dívidas. Devia arranjar os dentes, mas não tenho dinheiro", desabafa. "O dentista veio falar-me num crédito. Deus me livre, não quero mais créditos! Ainda hoje, passados mais de 20 anos, não me vejo livre deste pesadelo!".
Pagar duas vezes a mesma dívida
Impotente também é como se sente Eugénia, que, em 2007, aceitou ser fiadora da empresa informática para a qual trabalhava na contração de um crédito de 25 mil euros à Cofidis para comprar um carro. Em 2010, a empresa deixou de conseguir pagar a prestação e resolveram vender o automóvel para acabar com o crédito. "Nós íamos conseguir vender o carro por 15 mil e eles venderam por dez. Ou seja, em vez de ficarmos a dever só cinco mil, ficámos a dever dez mil", relata. "O contacto que tínhamos não nos atendia e, às tantas, entrou essa senhora agente de execução". A agente de execução a quem se refere é Aurora Boaventura, que foi expulsa e condenada a sete anos de cadeia por peculato. Saiu antes do tempo, em abril de 2020, na sequência da pandemia. Hoje, está novamente no banco dos réus por causa de outras vítimas.
Aurora Boaventura penhorou o ordenado de Eugénia para pagar os 9 911 mil euros que esta ainda devia. Durante dois anos e meio, a empresa para a qual trabalhava descontou os valores diretamente do ordenado e depositou-os na conta-cliente desta agente de execução. Passaram-se oito anos sem que Eugénia fosse incomodada. Em julho de 2021, Carlos Madaleno, o agente de execução substituto, voltou a penhorá-la pela mesma dívida.
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