Foram obrigados a um exílio forçado na União Soviética enquanto os pais lutavam contra a ditadura. Doze crianças e uma professora viveram anos a fio a poderem contar apenas uns com os outros. A história destes “filhos da clandestinidade” chegou a livro.
Alberto Costa não existiu até aos seis anos. “Demoro um minuto e meio a contar-lhe a minha história”. E contou. Só foi registado antes de ser enviado para a União Soviética, a idade escolar foi o limite para não pôr em risco a segurança dos pais, que na clandestinidade combatiam a ditadura. Diz que com o tempo racionalizou tudo, que não se lembra bem dos sentimentos que teve. Os anos apagaram as más memórias, mas não as marcas. Diz que há "traumas" que ficaram e que a melhor maneira de viver com eles foi tornar tudo racional, tudo como sendo fruto de circunstâncias - essas que não dependiam dele, mas da luta dos pais.
Odete Rito é diferente. Sorri quando conta a sua história e conta-a com orgulho. Foi a primeira criança filha de comunistas clandestinos a ser enviada involuntariamente para Ivanovo, a 300 km de Moscovo, onde havia uma escola internacional que acolhia crianças comunistas exiladas de vários países. Chegou lá aos dez anos, sem nunca ter ido à escola, e viveu lá por mais dez, longe dos pais, da família. Aculturou-se, apaixonou-se, ficou a falar em russo, a sonhar em russo, a pensar em russo. Foi também a primeira, dos treze alunos portugueses que passaram pela escola, a voltar para Portugal ainda antes do 25 de Abril, para ser ela própria clandestina. Tal como os pais, combateu o fascismo na ilegalidade, com um “sotaquezinho esquisito” e a “desenrolar a língua” para falar sem suspeitas.
A decisão de seguirem para uma terra distante, sem os pais, não foi uma decisão voluntária. Nem tão pouco consciente. Não o poderia ser. Odete foi a primeira a ir e diz que tomou a decisão por si aos dez anos. Os mais de cinquenta anos de distância dão às memórias de infância destes alunos uma roupagem de racionalidade. Contam a história da vida deles como se fosse uma história de outro, na primeira pessoa, mas com entoação de terceira.
Alberto condensa as experiências da infância. Nasceu, viveu seis anos com os pais na clandestinidade e um dia o pai chega e diz-lhe: “Vais ter de ir para a escola. Aqui não podes, tens de ir embora”. Levou-o ao registo civil, acompanhado da irmã de dois anos registada no mesmo dia, deram-lhe um nome e obrigou-o a decorá-lo. “Só dizes o teu nome completo quando lá chegares, até lá… nada”, disse-lhe o pai Carlos Domingos. Preparou-se, foi entregue a Jaime Serra e com o filho deste, José Serra, e um casal de comunistas, “deu o salto”. Foi para Espanha de jangada, depois foi de carro até França, até à cidade luz, e lá viveu o Maio de 68. Melhor, não o viveu, passou-o. “Não convinha passarmos por zonas esquisitas”, conta. Chegou a Moscovo e de Moscovo foi para Ivanovo.
Milhares de quilómetros contados em poucas linhas. São uma história que resiste a contar. “Não me lembro. Não tenho memória de ter ficado perturbado com isso, com algum ressentimento, talvez. Uma criança de seis anos claro que fica com um trauma, mesmo que racionalize isso, mas isso é normal”, diz Alberto ao PÚBLICO. Fala dos seis anos que lá passou como se fosse um tempo normal, mas não uma infância feliz. “Outras pessoas não passaram por isto porque, mesmo não vivendo com os pais, viviam com os avós ou com tios, viviam em casas normais, nós dormíamos em quartos de dez pessoas. Tínhamos um horário e uma relação impessoal com a instituição”, conta.
Alberto Costa foi para a Internatzionalny Dom, em 1968 e faz parte do estudo de Adelino Cunha sobre os fluxos de exilados comunistas em vários países e a relação com o PCP, agora publicado em Os Filhos da Clandestinidade. Alberto foi dos mais novos a chegar à União Soviética, enviado por decisão dos pais - foi do último lote a lá chegar. Quando finalmente chegou à InterDom já tinha uma “família” montada. Encontrou lá Maria Armanda Serra, a professora dos alunos portugueses e irmã do companheiro de viagem de Alberto, e mais uma dezena de alunos, já aculturados por viverem na União Soviética há vários anos.
Foram crianças que viveram num contexto culturalmente diferente, com uma língua diferente, um clima diferente e com rotinas diferentes. Acordavam às sete, faziam ginástica nos corredores, comiam e faziam a higiene. Tinham aulas até à hora de almoço e as tardes eram para as várias actividades. Durante aqueles anos, participaram em comícios e colóquios, muitos deles sobre as lutas de comunistas em vários países. “Apesar de a decisão do exílio ter sido tomada pelos pais, as crianças foram integradas numa dinâmica eminentemente política e passaram a reconhecer-se como membros de um colectivo”, explica o historiador e jornalista Adelino Cunha no livro.
“Esta geração de crianças clandestinas ficou condenada à separação dos pais, convictos de lhes estarem a proporcionar melhores condições de vida e de educação”, escreve o historiador. Na verdade, havia uma construção identitária forte através da Internatzionalny Dom (o nome da escola também conhecida como Interdom), em Ivanovo, para onde foram mandados nos anos 60 os filhos de comunistas clandestinos, que não tinham nenhum familiar com quem ficar em Portugal. “Era-nos incutida a amizade. Era o principal elo de ligação entre nós todos”, conta Odete Rito. Mas era uma amizade feita de silêncios.Uma identidade desconhecida
“A Cecília [uma das alunas] é que me perguntou: ‘sabemos que não somos espanhóis. O que é que somos?’ Que eram portugueses não sabiam, eram muito crianças”, conta Maria Armanda Serra, a professora que foi para Moscovo estudar aos 17 anos e chegou a Ivanovo aos 19 a pedido e Álvaro Cunhal. Os mais velhos tinham memórias que não se perderam, mas “houve muitas destas pessoas que deixaram de falar português, de saber quem era o pai e a mãe”, explica o investigador, que recusa no entanto entrar na avaliação destas histórias, uma vez que a investigação em história se debruça sobre os exilados políticos, dos quais as crianças de Ivanovo formam um subgrupo, e não nas consequências sociológicas e psicológicas nestas crianças.
Havia perguntas, sobretudo fora do horário das aulas, mas havia poucas respostas. Um dia, uma professora na escola leu um manuscrito que falava de “um combatente com coragem de leão e disse que o filho desse grande homem estava na sala”, conta Maria Armanda. “E o meu irmão ficou espantado porque ele não sabia”. José Serra não sabia da importância do pai, Jaime Serra, na luta comunista.
Além do conhecimento muito reduzido sobre a própria identidade – e muitos viveram anos com nomes falsos por receios do PCP de que pudessem existir infiltrados da PIDE até na União Soviética –, havia um desconhecimento sobre os outros alunos. “Eu não sabia nada dos meus colegas, os meus colegas não sabiam quem eram os meus pais, só sabiam que estavam presos, mas nem sabiam os nomes”, conta Odete. Os que chegaram à InterDom depois de 1968 já mantiveram os nomes, foi o caso de Alberto, de José, de Helena Costa, de Cecília Costa e de Luís Costa (o mais novo a chegar à União Soviética com apenas três anos). Maria Armanda era Manuela Castro. É assim que ainda hoje é conhecida pelos amigos que fez em Ivanovo.
A culpa pela perda da consciência da identidade própria? Maria Armanda admite: “Eu culpo a clandestinidade”. “Eu não lhes fazia perguntas, porque não queria saber respostas que não pudesse ouvir. Podia puxar pela memória deles, da vida deles em Portugal, mas não sabia se podia fazer isso, porque no partido só sabíamos aquilo que era estritamente necessário para cumprirmos as nossas tarefas”. Odete resume de outra maneira: “Quanto mais soubermos, mais tarde o diremos”.
Jaime Serra, um dos combatentes comunistas mais conhecidos, conta no livro que “houve um certo exagero conspirativo” que o levou a não viver com os filhos, entre elas Maria Armanda, que depois de viver três anos na clandestinidade com os pais foi para Moscovo, e José, que se juntou à irmã em Ivanovo em 1968, com seis anos.
Foi esse estado de medo constante que viveram durante anos, numa idade definidora da personalidade.
Traumas escondidos
O medo aparecia sob a forma de um objecto: a tranca da porta de casa. “Era aquela sensação ‘vai entrar alguém’. Dentro da gente havia aquele medo”. Receio que levou Odete a não se aproximar das cortinas de casa até aos dez anos e só sair à rua nas férias da escola dos outros miúdos, uma vez que até ir para Moscovo nunca tinha ido à escola.
E através de uma acção: a mãe, num último acto de carinho antes da viagem, levou-a ao cabeleireiro. “Sei que a minha mãe me levou para arranjar o cabelo, tirar fotografias e sei que ia sair. Não sabia para onde ia, nem que ia estar tão longe. Mas eu já vivia nessa idade com a sensação de receio, de medo daquilo que me rodeava. Sabia que os 'homens maus' podiam chegar e que não se devia falar com ninguém sobre nada”. O relato é de Odete, que só se chama assim desde 1974. Na fotografia do passaporte falso chamava-se Isabel Amado - “nome escolhido por mim” – e na União soviética era conhecida por Helena Frutuoso.
Odete Sobra Rito foi a primeira criança a chegar a Ivanovo. Tinha dez anos e ia acompanhada de Manuel Silva, também ele uma criança forçada ao exílio. NUNO FERREIRA SANTOS
Identidades baralhadas, já desconstruídas pela distância, pela língua e pela cultura. Chegou a Ivanovo e não havia ninguém com quem falar em português a não ser Manuel Silva, - “o meu irmão adoptivo” –, diz a sorrir sobre o companheiro da primeira viagem de crianças clandestinas até Moscovo, em 1963. De Abril até ao Verão aprendeu a desenrascar-se em russo, o passo para ser bilingue deu-se em menos de nada. Depois, os dez anos de estudos em Ivanovo fizeram o seu trabalho e entraram-lhe pelo subconsciente e pelo consciente, mudando-lhe a forma de falar: “Tinha muitos pesadelos. As minhas colegas contavam que eu durante a noite gritava porque ainda tinha os tais [pesadelos] que alguém andava atrás de mim, a correr… os maus e essas coisas assim. Depois foi desaparecendo”, diz.
Mas moldou-lhe também a forma de pensar. Odete prosseguiu os estudos na escola de quadros intermédios ainda na União Soviética, fez parte da juventude comunista e decidiu “continuar a luta” dos pais em Portugal. Voltou em 1973, com o marido, para constituírem uma casa do partido. “Eu quis voltar a Portugal por causa de uma carta do meu pai - em que ele dizia 'se eu tombar, tu continuas a minha luta’. Foi o suficiente para eu dizer 'quero voltar, quero continuar a luta, deixando mesmo os estudos para trás’”, conta Odete.
Foi sol de pouca dura. Chegou em 1973, engravidou e pouco depois o 25 de Abril arrancou-a da clandestinidade em que tinha vivido mais de metade da curta vida.
Com a desagregação familiar que viveu na clandestinidade contrastou o facto de ter começado a sua própria família lá e a compensação dada pela união do grupo de Ivanovo. Essa desestruturação das famílias era remendada volta e meia pelas cartas (com atrasos de meses ou mesmo um ano) que recebiam dos pais. As de Odete eram especiais. Eram cartas em papel de tabaco de enrolar para poderem passar na prisão de Peniche (onde estava o pai, José Carlos) e de Caxias (onde estava a mãe, Olívia Sobral).
Era nessas alturas que Odete “desabava”. “Não sou torta, sabia que estava a cumprir alguma missão e nunca fui de chorar, de mostrar, principalmente de mostrar. [Depois] no meu cantinho eu lá descarregava para ninguém ver”. Porque chorava Odete? “Eram saudades. Quando ia ler as cartas, não tinha fotografias, mas tinha na memória as caras dos meus pais. Essa parte eu não esqueci”. Mas volta e meia a alegria de dançar, cantar, costurar, tudo actividades que aprendeu na escola, dava lugar ao choro na almofada. “Havia alturas em que ficava mesmo abatida. E depois toda a gente dizia que eu era muito sorridente, mas que os olhos estavam sempre tristes”.
As cartas faziam a ligação a Portugal, mas eram sempre pouco elaboradas. “A mim também me custava, não podia escrever nada sobre o que estava a fazer, não podia dar informações a ninguém. As cartas eram pró-formas: ‘estamos vivos’”, conta Maria Armanda.
Alberto sente que a desunião familiar aos seis anos deixou marcas, mas não foi o momento que mais o perturbou. “Comecei a perder muito tempo na biblioteca. Isolei-me um bocado. A ida dos meus pais lá - a única vez - mais ou menos dois anos depois, tenho impressão que me traumatizou mais”. Não reconheceu logo a mãe “que estava de pé, de braços abertos”. “Depois disso comecei a ter mais problemas de isolamento. Escondia-me em cantos... Devo ter feito o tal clique, sentido o tal sentimento de abandono que aos seis anos consegui ultrapassar, mas que se eles não tivessem ido, se calhar isso não tinha vindo ao de cima”, conta. Alberto sentiu as marcas do abandono aos oito anos, mais do que aos seis e acabou por ser internado num sanatório psiquiátrico, conta no livro. Mas mesmo assim, diz que “não sentia que as coisas estivessem desestruturadas”.
À semelhança de Maria Armanda, dois anos depois da quebra emocional, também Alberto iria ter companhia familiar em Ivanovo, a irmã Helena, quatro anos mais nova, a última criança exilada portuguesa a entrar na InterDom. “Era uma bonequinha”, conta Alberto. Não conhecia o irmão, apenas sabia que ele existia.
O regresso a um filme passado e desajustado
Antes da partida para Lisboa, em julho de 1974, os alunos e a professora fizeram um passeio por Ivanovo. Esta é uma das fotografias desta tarde. FOTO CEDIDA POR MARIA ARMANDA SERRA
Odete chegou a Portugal mais cedo para continuar na clandestinidade. Alberto aterrou com o resto do grupo de alunos de Ivanovo em Julho de 1974, com Maria Armanda. “Adormeceram todos, estavam muito cansados e estava com medo de deixar alguém”, uma vez que o avião continuava para o Brasil. “Quando chegámos eram tantos holofotes… vimos tanta gente e parámos”, conta.
Mas o glamour mediático da chegada das crianças comunistas clandestinas escondia o que iria ser o seu futuro. A realidade do país era outra. A familiar também. “Para mim, foi mais complicado em termos sociais, não só porque dentro da mesma faixa etária o ambiente era outro. Lá, eu vivia numa instituição, cá com os pais. Aqui já há duas desadaptações. Não foram tempos simpáticos”, conta Alberto. Tanto não o foram que voltou para a Rússia para continuar a estudar e só regressou de vez para Portugal em 1987. Hoje, é bilingue e dedica-se a traduções técnicas.
Odete também sentiu o desajustamento da sociedade e da família, mas começou a preparação quando viu os pais em Moscovo pouco antes de regressar, dez anos depois de os ter visto pela última vez. “A única coisa que tivemos foi, com o tempo, um choque de sociedades, porque passaram muitos anos na prisão, não conheciam. Estavam em 70, mas a vivência deles era como se tivessem nos anos 50. As mulheres vão-se pintando, usando mini-saias e antes de os encontrar disseram-me: ‘Quando tiveres com os teus pais, tem cuidado não te pintes para não chocar’”. Assim fez, mas as consequências estavam lá: “Tínhamos dificuldade em falar”.
Apesar de a infância deles ser consequência de uma escolha dos pais têm dificuldade em atribuir-lhes a culpa. Chamam-lhe “circunstâncias”, falam de responsabilidade, mas não de culpa. Mas não foi assim com todos. “Não sei se não sou a única que nunca pus a questão”, diz Odete.
Maria Armanda tem sentimentos mistos. Foi para Moscovo por opção própria, com 17 anos, uma idade diferente das crianças que foram forçadas. A professora defende que os pais não podem ser culpados: “Não temos o direito de culpar os nossos pais (…). Eles acharam que era melhor assim (…). Eles podem culpar, mas eu acho que não, porque tiveram uma infância feliz, ao contrário de mim. Estavam todos juntos, eram todos iguais. Eles é que eram uma família”.
Mas quando desabafa, deixa transparecer que a diferença da infância não a tornou melhor, antes menos normal, menos feliz: “Porque é que não pudemos estar com os nossos pais? Somos todos infelizes. Não tivemos infância. Aquela infância em que se está com os pais, que nos contam histórias. Não tivemos isso”. (Público)
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