quinta-feira, 29 de junho de 2017

João Vasconcelos-Costa fala do 27 de Maio de 1977 em Luanda e critica "Esquerda net"

O 27 de maio em Angola

Numa convergência bizarra, o Expresso e o Bloco de Esquerda, através do seu portal esquerda.net, estão a dar grande destaque, visivelmente elogioso, aos acontecimentos de 27 de maio de 1977 em Angola. Compreende-se o Expresso, por questões empresariais bem conhecidas, mas que também revelam o que é a “independência” da comunicação social. o BE é mais difícil de perceber, embora isto se enquadre numa oposição persistente ao governo angolano e ao MPLA, inclusive com coisas publicadas por Louçã.
Devo começar por declarações de interesses. Tendo vivido a luta antifascista e anticolonialista, durante o salazar-fascismo, o MPLA era para mim e para muitos outros uma referência. Assim se manteve durante todo o período da descolonização e concordei inteiramente, até em benefício dos colonos brancos, com o apoio prestado ao MPLA, de outra forma talvez em grande risco perante os outros movimentos bem armados por interesses estrangeiros.
Muito mais tarde, com a guerra civil, fui tentando compreender atitudes do MPLA e do seu governo, em termos de “real politik”, embora já não conseguisse ver nada do ímpeto libertador e revolucionário.
Depois, até com testemunho indiscutível (e também confissões amarguradas de velhos amigos do MPLA), convenço-me de que a máquina do poder, a corrupção, o oportunismo político, acabaram definitivamente com o “meu adotivo” MPLA. Mas creio manter objetividade em relação a isso.
Por via de funções que desempenhava no PCP na época do 27 de maio, segui bem os acontecimentos e creio que com boa informação. Foi também um episódio muito difícil para o PCP e as suas relações com o MPLA. Agostinho Neto e outros quadros eminentes, ao que consta, foram membros do PCP.  Mas é redutoramente linear que isto signifique uma relação para a vida. Novos empenhos, compromissos, conhecimentos diversos das situações reais, impõem um respeito absoluto pelos percursos que se vão fazendo. Até entre nós; estou a escrever isto e a lembrar-me do meu querido amigo José Tengarrinha e do corte do MDP com o PCP, e ele quer era um antigo quadro comunista.
Nunca conheci os principais envolvidos no 27 de maio. Só, indiretamente mas creio que bem, Cita Vales (agora chamada neste processo mediático atual de Sita Vales, o que revela alguma coisa de desconhecimento). Por funções que exercia no conjunto político do ensino superior, eu tinha estreito conhecimento do que se passava na UEC. Cita era uma militante muito ativa e dedicada, mas pouco elaborada intelectualmente e principalmente muito sectária e “partidista”, como tanta gente na altura (se calhar, até eu até certo ponto…). Também com algum romantismo ideológico. A sua ida para Angola, de cuja discussão tive bom conhecimento, foi vista com preocupação. Uma coisa à Che, já fiz aqui a revolução, agora vou ajudar os que precisam de mim (coitados!) para a fazerem. Mas ela foi bem prevenida dos riscos que decorriam desse voluntarismo e concordou em controlo-los, o que não fez. Subiu-lhe à cabeça ser a mentora da revolução angolana e ficar na História.
Não conheço bem a génese e comportamento dos chamados “fraccionistas”. Conheço é as “Treze teses em minha defesa”, de Nito Alves, dizem geralmente que de facto da autoria de Cita, que são uma coisa confrangedora, do mais rudimentar catecismo da “ideologia” soviética.
Houve muitas vítimas, incertos milhares, talvez dezenas de milhares, da repressão ao 27 de maio. Que fique bem claro que nem compreendo nem muito menos aceito o processo de repressão sem um mínimo de legalidade – mesmo legalidade revolucionária! – que até, como diria Talleyrand, foi pior do que um crime, foi um erro.
Mas daí a branquear a acção dos nitistas vai uma grande distância. Ao contrário do que agora dizem o Expresso e aesquerda.net, ou os seus entrevistados, não foi nada uma simples manifestação para dar apoio aos fraccionistas (principalmente Nito Alves, José van Dunem e Cita Vales), os dois primeiros demitidos dias antes dos seus cargos dirigentes no MPLA.
Foi, indiscutivelmente, um golpe de estado, com presos e mortos importantes de apoiantes da direção do MPLA. É hoje bem conhecida a rede de grupos de ação militar a coberto da mobilização civil, que começou com a tomada da Rádio Popular de Angola.
Não é que, pragmaticamente, eu condene a priori os golpes de estado. Tudo depende do que pretendem e da situação que se vive. Mas, fora as queixas pessoais, admito que justas, as motivações programáticas e políticas dos nitistas eram primárias, por exemplo as queixas contra convicções socias-democratas de Neto.
O que não podem fazer agora os nitistas ou a comunicação social que lhes dá cobertura é misturar a repressão feroz e condenável do golpe com uma inocência de simples manifestação popular que ele teria tido.
Só lamento é que a vitória da linha mais coerente e realista do MPLA, na altura, tenha derivado até hoje para um regime de autoritarismo, corrupto e clientelista, com a emergência de uma nova burguesia escandalosa e ostensivamente rica, marginalizando um grande povo que não usufrui minimamente dos seus recursos nacionais, para a sua saúde (coisa que conheço muito bem), a sua educação (idem) e o seu desenvolvimento e vida digna. 
Também ainda uma nota para a perfídia da política internacional. Nito Alves e os seus amigos estavam convencidos de terem apoio da URSS. As relações dos soviéticos com o MPLA sempre foram ambíguas. Se não fosse o apoio das forças armadas portugueses e da Jugoslávia quando o MPLA era fraquíssimo perante os seus adversários armados pelos EUA e África do Sul (provavelmente também China), Angola e os colonos portugueses teriam ficar entregues ao racismo da FNLA e da Unita, com aparente indiferença da URSS. Ora, no 27.5, os nitistas foram traídos pelos seus amigos soviéticos. Os cubanos, antes de se comprometerem com o apoio decisivo dos seus tanques a Neto, consultaram a URSS, que lhes deu luz verde.
Nota pessoal final. Estive em Angola, entre 1970 e 1972, como médico miliciano da marinha, na guerra colonial. Conheci a floresta e o rio Zaire, a savana das terras do fim do mundo e muito de Luanda. Fiquei adotivo. Duplamente, na última década, pela minha mulher angolana. Tenho direito acrescido a criticar a Angola de hoje, porque também é minha. Mas detesto manipulações. (Fonte deste trabalho político)



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