Dave Severance
Fuzileiros fincam abandeira dos EUA no Monte Suribachi, na Ilha de Iwo Jima. JoeRosenthal/AP
Este foi um ícone em vida, e
ainda novo, um capitão de
26 anos, mas o que fez foi
tão grande, tão imenso,
que a sua existência restante,
ademais muito longa, foi toda
passada à sombra daquela fotografia. Há o mito, claro, transposto até para o cinema e por
mais de uma vez, e a circunstância fortuita e feliz de um repórter andar ali por perto, e o seu
momento inspirado, mas nada
disso são coisas que invalidem
o sumo alcance, a um tempo
bélico e histórico, do gesto de
seis fuzileiros da marinha dos
EUA, que na manhã de 23 de
Fevereiro de 1945 subiram sob
fogo ao Monte Suribachi e lá no
cimo hastearam, eram 12h15
precisas, uma bandeira enorme de 2,5 por 1,4 metros, ainda
maior que a primeira. Estão
hoje as duas conservadas num
museu de guerra, e é caso para
isso, pois as bandeiras de Iwo
Jima, posto que diferentes no
tamanho e na petite histoire,
são memória e sinal maior de
que, havendo vontade e força,
sempre o bem tudo alcança.
Ao vê-las no alto, os soldados na praia regozijaram em
aplausos, ganhando ânimo para
a conquista daquele pedaço
vulcânico perdido no meio do
Pacífico, uma ilha de 21 quilómetros quadrados em forma de
costeleta de porco, como eles
lhe chamaram, que nem constava sequer do plano inicial de
operações. Contrariamente ao
que os comandos esperavam, a
batalha foi árdua e longa, cinco
semanas de sangue, e fez baixas
incomensuráveis: quase 7 mil
mortos e 20 mil feridos para
os americanos; mais de 18 mil
falecidos na facção nipónica.
A escalada dos 166 metros do
Monte Suribachi, um vulcão
adormecido no extremo sudoeste da ilha, foi das primeiras
acções levadas a cabo pelos invasores e a bandeira enorme
permaneceria aí, ondeada e impante, ao longo das várias semanas de carnificina. Entretanto,
a fotografia de Joe Rosenthal
chegara com uma velocidade
surpreendentemente rápida à
América e, ao vê-la reproduzida
nos jornais dos dias seguintes,
Roosevelt apercebeu-se do seu
potencial para apoio do sétimo empréstimo de guerra que o Tesouro iria lançar em breve. Em
Maio de 1945, um cartaz com a
foto inundou o país, a promover
um empréstimo que rendeu 26
biliões de dólares para o esforço
bélico, o mais bem-sucedido dos
oito que a América lançou entre
1942 e 1945. Rosenthal ganharia o Pulitzer, fizeram-se selos e
medalhas, uma estátua-memorial no cemitério de Arlington,
um filme com John Wayne, outro com Tony Curtis e dois mais
recentes de Clint Eastwood.
Nada disto seria possível sem
Dave Severance, partido aos 102
anos no passado 2 de Agosto,
com o posto de coronel, e em La
Jolla onde morava, na Califórnia. Nascera no Wisconsin, em
1919, mas cresceu no Colorado
e ainda chegou a frequentar por
um ano a Universidade de Washington, que abandonou por
falta de recursos. Inscreveu-se
nos fuzileiros e, com o deflagrar da guerra, foi enviado para o teatro do Pacífico, onde se destacou
por bravura na Campanha de
Bougainville. Depois, foi transferido para o Havai, gozou uma
breve licença em Pearl Harbor
e acabou mandado para o inferno de Iwo Jima. Capitaneava então a Easy Company do
28º regimento de Marines e foi
dos primeiros a desembarcar
na ilha, às 9h55 da manhã de
19 de Fevereiro de 1945. Um
dos pelotões sob seu comando
perdeu-se no areal ao fogo dos
japoneses, Severance teve de o
recuperar no meio de uma chacina terrível para, logo a seguir,
começar a ser atacado por fogo
amigo da aviação americana.
Apesar disso, conseguiria isolar
o Monte Suribachi do resto da
ilha, rasgando as linhas contrárias. A meio da manhã, quando o tenente-coronel Johnson
lhe ordenou que mandasse os
seus homens subirem ao cimo
do monte e colocarem lá uma
bandeira vinda do “USS Missouri”, Severance pensou que
iria mandá-los para uma morte
certa, segundo confessaria anos
depois. Mas foram, e venceram.
O secretário da Marinha, James Forrestal, que entretanto
desembarcara na praia liberta,
exclamou que a bandeira do Suribachi garantia que o Corpo de
Marines iria existir mais 500 anos e disse querer guardá-la
como souvenir da refrega. Pretendendo o troféu para o seu
batalhão, o tenente-coronel
Johnson ficou danado, praguejou na areia “The hell with that!”
e decerto impropérios piores,
e mandou que Severance enviasse novos homens lá acima,
com uma bandeira ainda maior,
mais vistosa. Foi esse punhado
de heróis que Rosenthal captou
com a sua Speed Graphic. Mais
tarde, disputou-se a identidade
dos retratados e, após três inquéritos exaustivos, em 1946,
2016 e 2019, soube-se que, dos
seis no retrato, três morreram
nas selvas de Iwo Jima, dias depois, esfacelados por morteiros,
alvejados por snipers, atingidos
por artilharia amiga disparada
da costa. Dos que restaram, o
mais famoso de todos, Ira Hayes,
índio da tribo pima, alcoólico
e desordeiro, ainda apareceu
fugazmente no filme de Wayne e foi encontrado morto em
1954, diz-se que por homicídio.
O tenente-coronel Johnson,
veterano da “Guerra das Bananas” da Nicarágua, foi morto
por estilhaços de bomba, em Iwo
Jima, e o secretário Forrestal, dilacerado por problemas mentais
derivados de rígida educação
católica, resignou em 1949, em
conflito com Truman, e acabou
por se suicidar no hospital naval
de Bethesda, no Maryland.
Dave Severance, o sobrevivente, tornou-se piloto de guerra,
fez 69 missões na Coreia, merecedoras de medalha, e ainda
esteve no Vietname, passando
à reserva em Maio de 1968 com
a patente de coronel. Fixou-se
na Califórnia, ao sol de La Jolla,
perto de San Diego, foi casado
duas vezes, era viúvo desde 2017
e tinha duas filhas lindas, muitos
netos e bisnetos. Dizia querer
ser lembrado como alguém que
esteve 30 anos nos fuzileiros
sem nunca ter sido preso.--António Araújo
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