Em 1974, o Exército criou uma Comissão de Verdade para investigar os crimes da PIDE/DGS em
Moçambique. Recolheu milhares de provas de violações dos direitos humanos e inquiriu centenas de
pessoas. Mas os trabalhos foram subitamente encerrados e a documentação remetida para Lisboa. Há
mais de 30 anos que estava perdida em 12 caixas na Torre do Tombo. O PÚBLICO revela-a agora pela
primeira vez numa investigação que durou meio ano e que será publicada em sete artigo.Investigação Os crimes da PIDE/DGS em Moçambique. 1964-1974
(VII) Na fortaleza-prisão na ilha do Ibo, no Norte de Moçambique, os
mortos eram inumados em valas comuns abertas junto à muralha
exterior ou incinerados na praia. Mais a norte, a ilha de Matemo era um
cárcere a céu aberto para onde foram deportados milhares de civis da
etnia maconde, sequestrados dos seus aldeamentos
Por Maria José Oliveira
“Os que
iam para
o Ibo eram
tidos como
já mortos"
João Tavares dos Santos só sabia
três coisas sobre a missão
“ultra-secreta” que o comandante
acabara de lhe comunicar: o dia, o
local e a hora. E desconhecia
também que o seu superior não
sabia muito mais do que isto.
Era Janeiro de 1974, o furriel
miliciano oriundo de Estarreja, com 23
anos, ia já na segunda comissão de serviço
da Companhia de Caçadores 4243/72, agora
destacada em Ancuabe, na província de
Cabo Delgado. Estivera em combate na zona
de Muidine, onde perdera cinco
companheiros e vira muitos mais serem
desmobilizados, feridos e enfermos com
doenças tropicais. Estava exausto quando
foi chamado pelo comandante interino da
companhia, Bernardino Cassiano, que tinha
apenas 24 anos.
Em breve, num dia estipulado, João e um
grupo de 30 homens armados deveriam
dirigir-se para Metoro, a poucos quilómetros
de Ancuabe, concretamente para um lugar
conhecido como “cruzamento da viúva”, de
onde partiam estradas em direcção a
Nampula, Montepuez, Ancuabe e Porto
Amélia (Pemba). Ali chegados deveriam
prevenir-se contra eventuais ataques de
guerrilheiros, formando círculos de
vigilância. Era apenas isto. Não valia a pena
fazer perguntas porque Bernardino não
podia responder (na verdade, não sabia o
que responder).
O furriel tinha recebido, uns dias antes,
uma encomenda especial: uma máquina de filmar com rolo que mandara comprar na
África do Sul. Ponderou levá-la para esta
operação, mas o “secretismo” dissuadiu-o.
No dia, local e hora determinadas, os
militares da companhia chegaram ao
“cruzamento da viúva”. O lugar estava
deserto, os homens tomaram as suas
posições defensivas. E esperaram.
Caiu a noite. João e os seus companheiros
continuavam à espera não sabiam de quê. Já
escurecera há algumas horas quando
começaram a ouvir o ruído de motores e
avistaram ao longe uma coluna de faróis. À
medida que se aproximava, era possível
distinguir nitidamente camionetas Berliet e
jipes. Junto ao cruzamento, pararam. João
aproximou-se e viu que no interior das
viaturas estavam civis e militares. A troca de
palavras foi breve e pouco esclarecedora. Os
homens da unidade de caçadores deviam
entrar numa das camionetas, disseram-lhes,
e eles obedeceram.
O cortejo seguiu em direcção a
Montepuez. Mas não fez qualquer paragem
nesta localidade. Continuou a marcha até
um aldeamento cercado por comandos.
Onde estavam?, quis saber o furriel. Um
graduado respondeu-lhe que devia
limitar-se a cumprir ordens e a não fazer
perguntas. Naquele momento a sua tarefa
era vigiar as viaturas estacionadas. O
aldeamento chamava-se Hirica, soube mais
tarde, e era uma povoação da etnia
maconde, situada entre Montepuez e
Balama.
Não muito depois, João e os seus
companheiros viram os habitantes desfilar
em direcção às Berliet e obrigados a
embarcar pelos militares e civis que o furriel
percebeu então serem elementos da PIDE/
DGS. A operação foi morosa porque
embarcaram toda a população: cerca de
duas mil pessoas. Quando a coluna de
viaturas regressou à estrada deixou atrás de
si uma aldeia completamente despovoada.
Dirigiu-se para leste, a caminho da costa,
e ao fim de 220 quilómetros parou em Porto
Amélia. João e os seus homens apearam-se
na cidade, cumprindo ordens dadas no
momento em que ali chegaram. As
camionetas e jipes seguiram para o porto
marítimo, onde os macondes de Hirica
subiram a bordo de várias embarcações e
zarparam com destino incógnito. A missão
“ultra-secreta” de João Santos tinha
terminado. Passaram dois meses antes que
ele a compreendesse.
O segredo decifrado
Bernardino Cassiano, hoje com 74 anos, fez
já várias pesquisas sobre a
operação de Janeiro de 1974.
Procurou nos espólios
documentais de
Caçadores 4243, do
Batalhão 14, do Comando do Sector B de Cabo Delgado e em
fundos do Arquivo Histórico-Militar. Nada
encontrou, contou ao P2 através do email
criado por esta série de investigação
(pidemocambique@publico.pt). Nos
relatórios quinzenais redigidos pela
subdelegação da PIDE em Porto Amélia, e
remetidos para a direcção-geral, em Lisboa,
também nada consta. Bernardino tomou
conhecimento a posteriori do “objectivo” da
missão, mas gostaria de saber mais.
Este a posteriori foi em Março de 1974, a
poucas semanas do golpe militar que
derrubaria o regime. No dia 18, João Santos
foi novamente chamado por Bernardino e
incumbido de preparar o seu grupo de
combate para embarcar com destino à ilha
de Matemo, onde iriam render uma outra
guarnição militar. Desta vez, o furriel levou
a sua câmara fotográfica. Matemo era uma
das dezenas de ilhas do arquipélago das
Quirimbas e situava-se a pouca distância da
ilha do Ibo, onde a PIDE mantinha uma
cadeia para presos políticos no interior de
uma fortaleza.
Quando desembarcou na ilha, alguns dias
depois, a unidade dirigiu-se para a zona sul,
onde existia um aldeamento indígena. Foi
quando ali chegou que o furriel
miliciano decifrou o segredo da
operação em que participara
dois meses antes —
reconheceu entre os
aldeões alguns dos
macondes de Hirica e não tardou a chegar a uma
conclusão: “Tinham sido aprisionados e
‘deportados’”, escreveu num depoimento
coligido num livro de um outro ex-furriel,
José Rui Ferraz.
Segundo João Santos, Matemo era uma
ilha “perfeita” para “manter fora de
circulação” os suspeitos e os nativos
sinalizados e considerados perigosos para a
polícia política. Não existia qualquer
hipótese de fuga, estava a cerca de meia
hora da ilha do Ibo (onde estavam sempre
destacados funcionários da PIDE, que ali se
podiam deslocar com facilidade) e bastavam
10 militares chefiados por um furriel para
fazer a vigilância da população desterrada.
A detenção e embarque dos deportados resultara de um trabalho conjunto das
autoridades administrativas, da PIDE e do
Exército, mas a tutela de Matemo enquanto
ilha-prisão cabia à polícia política,
nomeadamente aos dirigentes que estavam
na subdelegação de Porto Amélia.
Aparentemente não existem registos
escritos sobre este lugar de degredo
(também não há menções nos documentos
da comissão que investigou os crimes da
PIDE em Moçambique [Comissão de
apuramento de responsabilidades criminais
de elementos da PIDE/DGS], que temos
vindo a revelar desde 22 de Junho) e o
Comité Internacional da Cruz Vermelha
(CICR), que visitava com frequência as
cadeias geridas pela polícia, nunca soube da
sua existência.
À espera da morte junto ao “tambor do mijo”
Eram sete da manhã de 3 de Fevereiro de
1974 quando Alain Jaccoub, Nicolas de
Rougemont e Andreas Vischer entraram na
fortaleza de São João Baptista, uma de três
estruturas defensivas construídas no
último quartel do século XVIII na ilha do
Ibo, a norte de Moçambique. Era agora um
dos cárceres para presos políticos
administrados pela PIDE. No dia anterior,
os representantes do CICR tinham estado
nos calabouços na cidade portuária de
Porto Amélia, onde a polícia torturava e
matava civis detidos ilegalmente para
“averiguações”. Mas a visita tinha sido
preventivamente planeada pela PIDE, pelo
que os três elementos da organização
internacional humanitária viram apenas o
que lhes foi dado a observar: ficaram
impressionados com o “excesso de limpeza” e “se tivessem de estar
detidos escolheriam Porto
Amélia”, relatou para Lisboa
Fernando Pereira de Castro,
director da PIDE na antiga
colónia. Naquela manhã de
Fevereiro, acompanhados por
Ataíde Lobo, delegado de Saúde
em Porto Amélia, os
representantes do CICR
conversaram “a sós” com alguns
presos, registaram notas e
assistiram ao almoço,
“apreciando o menu”. Saíram e
decidiram que não era
necessário regressar à tarde.
Antes de embarcar rumo a Porto
Amélia passearam pela vila e
compraram artesanato local.
Segundo Pereira de Castro,
nenhum dos detidos se queixara
de “maus tratos” e “todos”
afirmaram que ali tinham “bom
trato, vestuário e medicamentos”.
Os inspectores do CICR tinham,
portanto, ficado “satisfeitos” com
o “aspecto agradável” daquilo que
“lhes fora dado observar”. E o que
lhes foi “dado observar” existia
somente durante as visitas
institucionais. Uns dias antes da
visita dos elementos do CICR tudo
foi limpo e cerca de 200 presos
foram retirados da cadeia e
deslocados para uma zona de mato, onde
foram mantidos até à saída do CICR da ilha.
Um deles era Cassamo Abdul Carimo, detido
em Nampula em 1972, transferido para
Porto Amélia, onde foi torturado, e depois
levado para o Ibo, onde os pides
continuaram as sevícias durante os
interrogatórios. Carimo tinha demasiadas
sequelas para ser visto pelos delegados da
Cruz Vermelha.
Pela fortaleza-prisão do Ibo passaram
milhares de presos, oriundos de todo o país
e muitas vezes em trânsito para lugares de
detenção e trabalhos forçados no sul
(Machava, Catembe e Mabalane). Era uma
das cadeias políticas mais temidas em
Moçambique. “Os que iam ao Ibo eram tidos
como já mortos”, afirmou Sambi Adamo,
um agricultor de 67 anos, ali preso em
Março de 1974.
A sobrelotação era permanente, até
porque a estrutura, em forma de estrela
pentagonal, tinha precárias condições de
alojamento (as casernas do antigo quartel
tinham pequenas dimensões). Quando já
não cabia mais ninguém nas celas (55
homens em espaços com 10 por 15 metros
quadrados), os reclusos ficavam no pátio
interior da fortificação. Ali comiam,
dormiam ao relento (“quando chovia
ninguém dormia”, contou Fernando
Domingos Salvador à comissão de
investigação dos crimes cometidos pela
PIDE entre 1964 e 1974) e usavam um
tambor para as necessidades. Os
prisioneiros chamavam a estes depósitos os
“tambores do mijo” — alguns tinham
capacidade para 200 litros e eram levados
diariamente para a praia pelos presos, ao
nascer do sol, e vazados no mar. Enchiam
depois estes recipientes com água salgada,
sendo obrigados a bebê-la para matar a
sede. Outros, em desespero, bebiam urina e
suor.
O mar era o único lugar onde os presos
podiam lavar-se, mas nem a todos isso era
permitido e a ida até à praia obedecia a um ritual violento: durante a madrugada ou ao
raiar do dia, uma dúzia de reclusos eram
despidos e no trajecto até ao mar tinham
de passar por entre duas fileiras de pides
que lhes batiam “tanto à ida como à volta”,
contou Pedro Dias Uagire. As agressões
mais violentas eram sobretudo exercidas
sobre os “assimilados”, os “elementos mais
civilizados”, denunciou Pedro Armando
Jemusse, que fora intérprete no posto
administrativo de Balama.
Jemusse, que esteve no Ibo de 1966 a 1968,
antes de ser trasladado para a Machava,
disse aos instrutores militares da comissão
que as epidemias e as doenças pulmonares
eram frequentes e não existiam cuidados
médicos ou de enfermagem. O delegado de
saúde visitava a cadeia uma vez por mês,
por vezes nem isso, e os presos eram
abandonados ao sofrimento e à morte.
Começavam por ter paralisias súbitas,
inÇamações, elefantíase e diarreias. Os pides
dispunham-nos em torno dos “tambores do
mijo” e não eram dali removidos nem
quando os dejectos começavam a
transbordar dos bidões.
Quando morriam eram inumados em
valas abertas pelos reclusos ao longo do
muro exterior do forte. Antigos presos
declararam à comissão que, quando os
mortos ascendiam a dezenas, os cadáveres
não ficavam inteiramente cobertos de terra
e isso atraía matilhas de cães vadios, que
acabavam por comer os corpos. Inglês
Abchir contou a 29 de Agosto de 1974 que
viu morrer 30 prisioneiros em apenas um
dia, doentes e sem qualquer tipo de
assistência (“evacuavam sangue”), e por
volta das seis da manhã entrou um tractor
no pátio, os mortos foram carregados para o
veículo e depois inumados junto aos pés da
muralha. Quando a vala comum começou a
ser insuÆciente para a mortandade no Ibo,
passaram a incinerar os cadáveres. E
recorriam aos presos para fazê-lo.
Luís Simba explicou que Manuel José
Bolinhas, guarda prisional, e um recluso da sua confiança levavam o tractor
com os mortos para a praia. Os
presos abriram vários buracos na
areia, não muito profundos, mais
ou menos pela altura do joelho.
Os corpos sem roupa eram para
ali atirados, Bolinhas cobria-os
com sacos de serapilheira e
ateava fogo. “Depois de
carbonizados eram levados de
tractor para o cemitério ‘político’
lá ao lado da fortaleza.”
A comida era invariavelmente
farinha de mandioca, por vezes
podre e com bichos, sempre
extremamente salgada. Aos
domingos, davam peixe seco
(pescado pelos reclusos). Algumas vítimas relataram ainda que em
algumas ocasiões os pides
misturavam sabão na farinha, o que
provocada disenterias. Simoni
Camorai chegou a pagar, durante os
dois primeiros meses de
encarceramento, 30 escudos por dia a
um guarda para ter acesso às
refeições dos pides. Outros recorriam
às famílias que ali deixavam
diariamente cestos com alimentos,
mas nem sempre os géneros eram
entregues. “Em vez de me darem
entornavam ou davam aos auxiliares e
reclusos mais antigos”, disse Luís
Guedes da Costa Ferreira, que ali esteve
preso durante um ano.
“Pura vingança”, alegou
o inspector Borges
Os actos criminosos executados pela PIDE
na fortaleza do Ibo começavam logo à
entrada dos presos, durante as revistas. Os
funcionários retiravam-lhes bens — relógios, fios e correntes de ouro, dinheiro, sapatos e
camisas — e nunca mais os restituíram.
A exiguidade das instalações, também
guardadas por militares, convertia uma das
divisões, a secretaria, em sala de
interrogatórios sob tortura. Os pides
(guardas prisionais, agentes, chefes de
brigada e inspectores) eram em número
reduzido e familiares aos reclusos que já
tinham passado pela subdelegação de
Porto Amélia. Nesta cidade e no Ibo quem
cheÆava os homens da PIDE era o inspector
Eduardo Avelino Borges, um transmontano
de Vinhais nascido em 1928, cuja actuação
criminosa levou a comissão a indiciá-lo em
Agosto por crimes de ofensas corporais,
apenas. Mas Borges foi também
responsável por um número incalculável
de mortos e desaparecidos e pelos delitos
de roubo, extorsão e mesmo peculato.
Arlindo Casimiro Langa, que trabalhava
na Secretaria dos Serviços da Administração
Civil em Mocímboa da Praia, garantiu aos
instrutores que o inspector, “pelo menos
desde Julho de 1973 a Maio de 1974” (a
libertação dos presos do Ibo foi a 21 desse
mês), requisitava às autoridades provinciais
dezenas de quilos de arroz alegando que
serviam para a alimentação dos
prisioneiros. “Depois vendia-o em Porto
Amélia ao senhor Quinaz Pires por preço
que ignora, adquirindo para os reclusos
farinha de mandioca de qualidade inferior e
imprópria para consumo”, Æcou registado
num auto de inquérito em Junho de 1974.
Avelino Borges, que quando entrou na
PIDE tinha cadastro criminal pelo crime de especulação de preços em
PenaÆel, foi inquirido pela comissão por
diversas vezes entre Julho e Agosto,
enquanto estava detido preventivamente na
cadeia da Machava, em Maputo, mas nunca
foi confrontado com outros actos
criminosos que não os espancamentos e as
torturas aos reclusos da PIDE.
Previsivelmente, negou sempre o uso da
violência e de trabalhos forçados e
qualificou as inúmeras acusações contra si
recolhidas pela comissão como um “conluio
que outro signiÆcado não tem que o de uma
pura vingança contra os elementos da
extinta Direcção-Geral de Segurança”.
Como a brigada de pides no Ibo era
pequena, a polícia recorria a reclusos com
resistência física para agredirem e
torturarem os seus companheiros de
cárcere. “Batia nos presos com um pneu
[tira de borracha] tendo sido obrigado a
fazê-lo várias vezes que se o não fizesse o
ex-agente da DGS João de Almeida lhe batia
a ele”, lê-se no auto de perguntas a Ângelo
Xavier Mecânico. Idêntico depoimento foi
prestado por Pedro Maria Mendes, que
serviu também como intérprete. Saide
Dade, preso no Ibo a 7 de Março de 1974,
disse ter sido espancado por Almeida e por
um recluso chamado Félix. A comissão
ouviu este último a 15 de Julho — admitiu
que “era obrigado” pelo agente a “agredir os
interrogados (…) pois se não o fizesse seria
ele o agredido.”
Manuel Mussa Rendra expôs ainda um
caso em que viu um recluso ser morto pelos
companheiros de cela — foi na número
quatro, onde estavam cerca de 40 presos de
etnia maconde a quem a PIDE assegurou
que seriam libertados se o régulo Megama
“confessasse” as suspeitas. O homem
começou a ser maltratado pelos outros
prisioneiros. Bateram-lhe, pisavam-no,
urinavam sobre ele. Os guardas nada fizeram e ele acabou por morrer.
“Não existe ser humano neste globo…”
Valentim Gonçalo João Almeida chegou ao
Ibo a 23 de Março de 1973: “No meu interrogatório sofri muita porrada. O chefe
foi o senhor Almeida que foi um leão para
mim e para muitos presos também com dois
africanos que serviam de intérpretes
chamados Mecânico e Pedro Maria Mendes.
Os dois com borrachas e o chefe Almeida
com uma cadeira, até fui ferido na cabeça.
Três dias de interrogatório, apanhando
sempre, até obrar nas calças e perder os
sentidos. Uma semana a urinar sangue e
sem tratamento algum. [A] trabalhar como
machambeiro durante oito meses e fui pago
nada. Dormia mal, comia pior todos os
dias.”
Em todo o país, os militares responsáveis
pelo grande inquérito à actuação da PIDE
em Moçambique ouviram queixas sobre
João de Almeida. Uma mulher detida em
Mueda em 1972, acusada de “fornecer
roupas para as gentes do mato”, foi levada
clandestinamente para o Ibo e ali espancada
pelo agente; Guiga Alimomade, preso em
1971 em Mucojo, pagou 11 dos 15 contos
exigidos por Almeida para sair da cadeia; a
Inzé Abdala, de etnia macua, espetou-lhe
um prego no braço esquerdo.
João de Almeida tinha 38 anos em 1974, foi
capturado na Operação Zebra (acção militar
que resultou na detenção de meio milhar de
pides, a 8 de Junho) e inquirido por diversas
vezes pela comissão na Machava. Sobre as
denúncias e acusações respondia
consistirem em “pura vingança, em
represália à DGS que lutava contra a
Frelimo”. António Sousa Moreira, chefe de
brigada, disse o mesmo quando interrogado
também na cadeia da capital. Quando foi
ouvido, a 12 de Julho, recusou defensor:
“Que tanto ordens escritas como verbais era
de não exercer quaisquer sevícias sobre os
detidos e que eram cumpridas
rigorosamente as instruções recebidas. (…)
Os interrogatórios [eram] inteligentemente
orientados de maneira que o detido viesse a
confessar sem dar por isso”, lê-se no auto.
Num depoimento prestado em Montepuez
a 18 de Junho, Camiranha Caraco, 48 anos,
explicou que não era possível resistir à violência exercida para obter autos de
conÆssão: “Não existe ser humano neste
globo que, depois de lhe serem infligidos os
maus tratos em uso naquela prisão, pudesse
resistir e não aceitasse qualquer acusação
que lhe fizessem.”
Quase um mês depois do 25 de Abril, a 21
de Maio, os últimos presos do Ibo foram
libertados. Estavam doentes, estropiados,
tinham sequelas crónicas devido às sevícias
e às condições de aprisionamento. Muitos ficaram inválidos e inabilitados para
trabalhar. No mesmo dia embarcaram num
navio da Marinha portuguesa que os levou
até Porto Amélia e retornaram depois para
as suas terras. No interior da fortaleza da
ilha permaneceram os funcionários da
PIDE; e na vila, as suas famílias.
Pides detidos nos seus calabouços
Notícias da Revolução de Abril na
“metrópole” chegaram à ilha de Matemo
nos primeiros dias de Maio. João Tavares
dos Santos, que ali chegara em Março,
juntamente com um pequeno contingente
militar de Caçadores 4243, recebeu então
uma ordem bastante diferente daquelas que
ouvia desde 1972: devia concentrar os
desterrados na praia. Em poucas horas ali
aportaria uma fragata da Marinha que os
transportaria para Porto Amélia. A partir
dali seriam cidadãos livres.
João Santos fez o que lhe mandaram e
levou consigo a sua câmara fotográfica.
Algumas dessas imagens em que se
observam os civis e os seus bens, à espera
do barco na praia de Matemo (em cima,
nestas páginas), são agora publicadas pela
primeira vez no P2. Em meados de Junho, o
furriel e os seus companheiros saíram da
ilha e foram para Porto Amélia. A guerra
ainda não tinha terminado.
Precisamente em Junho, Bernardino
Cassiano continuava a exercer as funções
de comandante interino da companhia de
caçadores em Ancuabe. Nos primeiros dias
do mês, fora incumbido de mais uma operação militar secreta: no dia 8, a partir
das dez e meia da manhã deveria dar
ordem de prisão a todos os elementos da
PIDE/DGS, exceptuando as agentes
femininas e os funcionários que tinham
entrado no quadro de pessoal depois de 1
de Março. A captura dos pides pelo
Exército (Operação Zebra) decorreu em
todo o país. Bernardino desarmou e
prendeu a brigada que actuava em Ancuabe
e na fortaleza-prisão do Ibo. Todos foram
encarcerados nos calabouços da
subdelegação da polícia em Porto Amélia,
onde umas semanas antes violentavam os
reclusos. “Deveria ser muito estranho para
os agentes daquela organização verem
invertida a situação que ainda há pouco
tempo viviam, isto é, de carcereiros
impiedosos nas suas próprias masmorras”,
escreveu sobre aquele dia um furriel de
Caçadores 4243, Manuel Carriço Amaro.
Nas vésperas da Operação Zebra restava
uma dezena de pides no Ibo, então
chefiados pelo agente João Joaquim Magro,
um homem acusado frequentemente por
antigos prisioneiros da fortaleza porque
tinha uma preferência especial no catálogo
de torturas: obrigava os presos a estar
durante muitas horas de pé, braços abertos
e uma perna encolhida. Se o torturado
vacilasse, sem forças, era espancado com
uma vergasta de borracha. Chamavam a esta
sevícia “estope”.
A brigada que estava no Ibo foi
transportada em dois helicópteros para
Porto Amélia, onde se reuniu a outros
elementos da corporação que trabalhavam
nas instalações locais e que de vez em
quando prestavam serviço na
fortaleza-prisão. Mais tarde, a maioria seria
transferida para cadeias distantes das suas
áreas de serviço e residência, de forma a
tentar atenuar a ira popular. Muitos foram
para a Machava, como Eduardo Avelino
Borges e vários agentes de 1.ª e 2.ª classe.
Os militares que tinham ficado na ilha
ocuparam a fortificação e durante alguns
meses procuraram contrariar a “pasmaceira” do Ibo com o jipe Land Rover
que a PIDE ali deixara: uns aprenderam a
conduzir, outros aventuravam-se por toda a
extensão de terra. Tinham 200 litros de
gasóleo para usar.
51 anos depois, a justiça possível
Na madrugada de 9 de Setembro de 1974,
dois dias depois da eclosão da revolta
branca na capital, em contestação ao que
fora firmado nos acordos de Lusaca,
Bernardino Cassiano abriu algumas das
gavetas de um gabinete da subdelegação em
Porto Amélia. Encontrou apenas umas
cadernetas de guerrilheiros da Frelimo e um
documento sobre uma das bases daquela
organização. Não teve “visão histórica”,
disse ao P2, para revistar as instalações e
recolher o arquivo (ao longo desse mês, o
Exército destruiu todos os fundos
documentais da PIDE em Moçambique).
Na noite de 8 para 9 de Setembro, o
comandante interino de Caçadores 4243
estava no edifício da polícia política porque
as Forças Armadas tinham decidido
transferir os pides para Nampula. Da capital
chegara já a informação de que os
insurrectos tinham libertado e armado os
antigos funcionários da corporação
aprisionados na Machava e temia-se que a
intentona colonial alastrasse para norte. Não
alastrou. Mas um número indeterminado de
elementos policiais aproveitou para fugir de
Moçambique.
Em finais de Setembro, a cúpula militar
em Lisboa decretou o repatriamento dos
pides que ainda estavam no antigo território
ultramarino. Nesse mês, e mais tarde, em
Fevereiro de 1975, as Forças Armadas
fretaram aviões comerciais para transportar
os antigos policiais e as suas famílias.
Francisco Anselmo Dores, um furriel
miliciano de Caçadores 3554 que participara
na Operação Zebra, com a detenção de 83
funcionários em Milange, era então um dos
responsáveis pelo transporte de haveres dos
soldados nos porões dos navios que viajavam para Portugal. Vários agentes
interpelaram-no pedindo-lhe que
embarcasse bens de que eram proprietários,
mas mantendo os nomes dos soldados.
Muitos queriam enviar mobílias completas.
Nos primeiros dias de Setembro, os
trabalhos da comissão criada pelo Exército
para investigar os crimes e as violações de
direitos humanos cometidas pela PIDE/DGS
desde 1964 foram abruptamente
encerrados, sem que os instrutores tenham
registado qualquer justificação (escreveram
apenas estar a obedecer a uma “mensagem-
-relâmpago”). A partir de então, a existência
desta comissão de inquérito e das
investigações criminais e perícias que
desenvolveu ao longo do Verão de 1974
foram apagadas da historiografia política e
militar portuguesa e moçambicana. Fez-se
um silêncio de 51 anos, quebrado agora pelo
PÚBLICO com esta série de sete artigos
(iniciada a 22 de Junho) e um podcast
narrativo.
Dar e amplificar a voz das vítimas é a
justiça possível em 2025.
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