Julgamento de paróquia
nos 30 anos da Web
Amândio Madaleno (presidente do PTP), José Coelho e Ricardo Oliveira: os arguidos. A deputada Raquel Coelho segue o interessante julgamento.
Num tempo novo em que os senhores do universo cansam inutilmente as inteligentíssimas cabeças para neutralizar a má língua e as fake news que percorrem a net-Web à velocidade da luz, é curioso ver um tribunal perder meses de trabalho com processos de difamação política. Numa época fugidia em que Ricardo Salgado acompanha de sofá as histórias sobre lesados do BES, Carlos Costa se faz de novas dizendo que esteve nas reuniões da CGD para garantir o quorum e Sócrates continua impávido e sereno a gozar com o MP e os juízes, não deixa de ter piada o afã com que a justiça se agarra a processos de má-língua e do chamado abuso de liberdade de imprensa.
É o que se vê cá na Tabanca: julgamento de declarações disparadas por José Manuel Coelho ao abrigo da sua mais do que conhecida cruzada política contra os "fascistas", os "ladrões" e os "corruptos" que, diz ele, deram cartas na Madeira Nova e continuam hoje num bom pico de forma.
É verdade que o destravado dirigente do PTP utiliza um estilo que, alguém querendo, pode ser considerado exagerado, demasiado incisivo. Mas é como tudo na política: a bandarilha entra a 100, sai a 200 e amanhã já se fala de outra coisa. Muitas alarvidades permanecem na net? É o resultado do constante devir. Eu que o diga. E não ando a batalhar contra moinhos de vento.
O matreiro Mário Soares, depois de chamar "caloteiro" e "amantizado" a Sá Carneiro, explicou-se: são coisas que se dizem na excitação da campanha eleitoral.
Há poucas horas mesmo, Mário Nogueira da Fenprof acusou o governo de roubar os professores em mais de 6 anos e meio de trabalho. Primeiro-ministro e ministros ladrões? Roubaram? É para levar à letra?
Não. É o calor da luta.
O caso que corre no 2000 vai registando avanços e recuos. Primeiro, Coelho não quis um advogado oficioso por ser alguém da área do PSD-M. Seguiu-se outro advogado que, perante o panorama atípico à sua frente, tomou ele próprio a iniciativa de 'cavar'. Avançou uma advogada de turno, que, ao encontrar pela frente uns 30 calhamaços com declarações, recursos e mais diligências para estudar em duas ou três horas, foi ver se estava chovendo.
O julgamento será retomado dia 19, com José Manuel Coelho a contar desta vez com o advogado que escolheu no princípio, antes das divergências entre ambos agora sanadas.
Enfim, um julgamento com foros de caricato, sucedendo-se advogados nomeados que desertam, arrastando funcionários judiciais caixotes de processos para cá e para lá. Esta terça-feira, quase nada se assistia a um número de espectáculo 'à Coelho': declamação, em plena barra, da poesia de Ary dos Santos relativa à liberdade que o 25 de Abril devolveu a Portugal. O 'diseur' acabou por rasgar os versos e crer na eternidade para não esticar a corda: o seu plano fora denunciado e quatro polícias marcaram presença toda a manhã no tribunal, por conta do nosso inigualável contestatário.
Num dos 12 processos que o tribunal condensou num único, é co-arguido o director do Diário de Notícias. Crime: o DN reproduziu declarações de Coelho produzidas na campanha eleitoral de 2011 as quais desagradaram ao veterano social-democrata António Candelária. O assistente acha que o DN devia ficar caladinho e não ampliar o que considerou ofensa.
O engraçado é que os jornais devem reproduzir as declarações dos candidatos em campanha, sob pena de 'vergalhada' solene às mãos da CNE. Como resolver o imbróglio?
Neste ponto, confesso: entrei para o jornalismo, andei por lá mais de 40 anos e saí da luta sem chegar a perceber onde acaba o dever inalienável de informar e começa o direito ao bom nome que assiste ao protagonista da notícia. Talvez por isso me fossem instaurados em tribunal processos aos centos, sem exagero. Incapacidade minha: se me encolhesse na informação a divulgar, feria o código deontológico que manda informar; se transmitisse a notícia, ganhava uns dias bem passados no tribunal.
Dizem que a ciência está em controlar com rigor a linha que separa a informação do direito ao bom nome. Bem o tentei, mas não fui capaz.
Pedindo conselho a vultos da Justiça, só consegui fixar a lapalissada do "bom senso". Usar o "bom senso" resolve quando se quer saber até onde podemos ir, disseram-me.
O problema é quando o bom senso do juiz não coincide com o nosso.
Um dia, a RTP-M ouviu numa festa em Câmara de Lobos umas menores que pediram para falar e denunciar um sujeito que as teria tentado seduzir com dinheiro. Sujeito ali presente e que, seguido pela câmara, não quis comentar. A reportagem foi para o ar com as cautelas devidas, em termos de ocultar as identidades. Dias depois, recebo correspondência do tribunal. Era sobre Câmara de Lobos. Seriam as autoridades a pedir colaboração para investigar o caso grave a que os telespectadores assistiram, certamente. Mas qual quê! A cartinha do tribunal consistia num convite para que este vosso amigo e a equipa de reportagem da RTP fôssemos responder à acusação de difamação formulada pelo indivíduo apontado pelas menores. Ele dizia, faltando à verdade, que fora identificado na peça. E assim o suspeito de pedofilia, apontado ao vivo pelas crianças, se transformou de potencial predador em vítima. Lá andámos nós em bolandas naquelas sessões entretidas do tribunal. Nem mais: a Justiça esqueceu-se do assunto principal, o assédio denunciado, para tratar do nosso "bom senso".
Num dos 'n' casos em que, ao serviço do DN, fui processado por um antigo presidente da Madeira, o juiz diz-me a determinada altura: "Então acha que pelo facto de o sr. presidente o insultar e caluniar lhe dá direito a reagir tratando-o mal?"
Um caso no Tribuna, condenação pela juíza: "É tudo verdade o que está na reportagem, mas... a forma como é dito..." O advogado de acusação era Arnaldo de Matos. Ficou muito satisfeito com o peregrino veredicto.
Dois mil anos depois, o mensageiro ainda faz de mexilhão.
Lembro-me de ter desabafado nessa altura qualquer coisa contra a espécie de lei sem regras claras que julga os conflitos de liberdade de imprensa. Quem me ensinou a ser mais prático e a não me impressionar no meio do pântano foi o Dr. Edgar Aguiar, Administrador do Tribuna, quando desabafei com ele o caso de a reportagem estar bem feita, só que desagradava 'na forma', à juíza - e também ao Dr. Arnaldo de Matos. Para me levantar o moral, o Dr. Edgar, também ele advogado, citou o ditado: "De cabeça de juiz e de bumbum de bebé nunca se sabe o que vai sair nem quando vai sair."
Bom senso - é bom de dizer.
Bom senso - é bom de dizer.
Espero que os ilustres magistrados não levem a mal. Nas redes sociais é bem pior e não há nada a fazer. E a Web ainda agora fez 30 anos. (fénix do Atlântico)
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