«Nós temos uma ideia muito rica do tempo, mas isso não é física, isso é a memória»
«Nos tempos antigos, pensava-se que a Terra era plana. Depois veio alguém e disse, ‘isso está errado, a Terra é redonda’. Institui-se a ideia de que a Terra é redonda e que tudo se move em torno dela. Copérnico descobre que, afinal, ela gira à volta do sol. Mas continua a ser redonda, não se volta à ideia da Terra plana. Não se volta para trás»
Em março, no “Corriere della Sera”, escrevia: “Não podemos armar os pequenos para que continuem a guerra, por procuração, contra outras potências.”
«O que está a acontecer na Ucrânia é um confronto entre grandes poderes. O Ocidente, com os EUA à cabeça, querem diminuir o poder russo. A Rússia quer afastar o poder ocidental. E o resultado é que pessoas inocentes morrem, dos dois lados.
A Ucrânia está a ser usada para que, de novo, os dois blocos se confrontem?
« Sim. Mas durante a Guerra Fria havia razões ideológicas. Eram duas visões profundamente diferentes de como a Humanidade devia estar organizada. Agora nem sequer temos isso. Fala-se de democracia versus autoritarismo, mas esta é uma ideia vazia. O que realmente está a acontecer é um choque de poderes. A NATO, que se autodefine como uma aliança defensiva, tem vindo a atacar países fora dela e a ocupar território da antiga União Soviética. E a Rússia tem vindo a aceitar isso, até dizer: “Não, vocês estão demasiado perto.” Esse “não” é expresso com uma agressividade desmedida, que é a forma mais comum de os poderes se comportarem. É o modo como os EUA se comportaram com Cuba ou com qualquer outro país ocidental que se aproximasse do socialismo: ou invadir, ou fazer cair o governo. Há duas semanas, a Austrália ameaçou militarmente as Ilhas Salomão por se estarem a aproximar demasiado da China. São jogos de poder.»
A Ucrânia está a ser usada para que, de novo, os dois blocos se confrontem?
«Totalmente. A guerra foi iniciada por Putin. Mas estamos nesta estranha situação: somos uma turma de crianças onde o João bate regularmente noutros rapazes, e um dia um outro miúdo, o Paulo, bate em alguém. João fica indignado e diz: “Como é que alguém pode bater assim?” E põe a turma toda a bater no Paulo. O Paulo quebrou uma regra que o João se fartou de quebrar. A Rússia atacou um país soberano, sem ser provocada, o que não deveria acontecer. Mas a NATO atacou o Afeganistão e o Iraque sem ser provocada. Bombardeou a Líbia e Sarajevo sem ser provocada. Então, a hipocrisia é grande. Estamos abalados por esta guerra, mas se considerarmos a guerra como um horror quando outros a fazem e uma triste necessidade quando nos convém, algo de errado se passa. Recordemos que a Ucrânia não estava em paz antes desta invasão, havia uma guerra civil, instigada pela Rússia e pelos EUA. Trump foi impugnado por reter 400 milhões de dólares para apoio militar à Ucrânia, e para quê? Para alimentar a guerra civil»
Então, o tempo percebido e o tempo físico são diferentes.
«Nós temos uma ideia muito rica do tempo, mas isso não é física, isso é a memória. As rochas não têm memória do passado. As pedras não antecipam o futuro. Para um relógio, o tempo é diferente do que para nós. Para nós, o tempo é a narrativa do que aconteceu antes e o que esperamos ou queremos que aconteça.»
E nós temos.
Temos algumas ferramentas, não sabemos se serão suficientes. Há momentos em que sou muito pessimista.
Mas não parece.
«Temo uma escalada do conflito entre superpotências. Há armas nucleares envolvidas. Repare, a Rússia e a Ucrânia produzem para um quarto da Humanidade. Há uma imensa quantidade de trigo nesses países que não irá ser vendido ou não será cultivado. Vai morrer gente em África por isso. Se as coisas correrem mal, Putin usará a bomba nuclear — não é impossível, estamos perto disso. A sociedade não é estável, as civilizações colapsam. Em dez anos, isso pode acontecer connosco. Então, deveríamos já tomar outra direção. Essa direção é colaborar. Falar com os russos, com os chineses. Não deixar de falar. É assim que vejo o mundo.»
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