Na Grã-Bretanha de hoje, a figura de Winston Churchill é praticamente deificada. O seu rosto adorna a nota de £ 5, onde olha severamente para os transeuntes, o único primeiro-ministro a ser honrado dessa forma; é um assunto perene para documentários da BBC e cine-biografias de alto orçamento, e até mesmo tem sua própria série de dramas radiofónicos, Doctor Who, onde ele costuma salvar o mundo de uma invasão alienígena. (Sim, na realidade!) Ouvindo o que diz o mainstream cultural, Churchill derrotou quase sozinho a Alemanha nazi com alguns discursos empolgantes, e permaneceu um farol da fortaleza britânica e do “espírito Blitz” ao longo de toda a sua vida pública. É uma imagem inegavelmente atraente, mas no novo livro Winston Churchill: His Times, His Crimes, Tariq Ali argumenta que é também uma cuidadosamente construída falsidade.
Uma das premissas centrais de Ali é que um “Culto de Churchill” se enraizou na sociedade britânica, empolando a memória do seu objecto para além de qualquer racionalidade e bloqueando bem merecidas críticas antes que possam ter início. Não podemos fazer nada melhor para testar esta afirmação do que examinar os escritos de Boris Johnson – o actual primeiro-ministro do Reino Unido e hoje provavelmente o principal acólito do Culto. Quando não está a vomitar insultos homofóbicos ou a dizer ao corpo de bombeiros para “ir bugiar”, Johnson também escreve não-ficção histórica, e no seu livro de 2014 The Churchill Factor: How One Man Made History, vai a extremos francamente embaraçosos para polir a imagem do seu antecessor:
Em todo o mundo - da Europa à Rússia, da África ao Médio Oriente - vemos vestígios da sua mente modeladora. Churchill importa hoje porque salvou a nossa civilização. E o ponto importante é que só ele o poderia ter feito. Ele é a retumbante refutação humana a todos os historiadores marxistas que pensam que a história é a história de vastas e impessoais forças económicas. O que é relevante no Factor Churchill é que um homem pode fazer toda a diferença.
Somos inclinados a lembrar a Johnson que Churchill está também morto e, portanto, imune à bajulação. Mas, apesar de toda a sua extravagância, a sua visão é bastante comum no Reino Unido e na Anglosfera em geral. Tal como os (assim chamados) Pais Americanos Fundadores, Churchill ascendeu a um nível de pura adoração ao herói, e mal é percebido como uma figura política, já para não dizer partidária. Quando os manifestantes em 2020 pintaram com spray as palavras “É UM RACISTA” – uma constatação francamente verdadeira, como veremos – sob a estátua de Churchill na Praça do Parlamento, a imprensa tabloide britânica ficou apoplética e multidões de contra-manifestantes vieram à rua para “ defender” a estátua, como se se tratasse de uma pessoa real. Há a sensação de que qualquer comentário negativo sobre o Grande Herói da Guerra, por mais leve que seja, está para além do que é aceitável.
Mas, como Ali aponta, o status de Churchill como um reverenciado ícone nacional é uma invenção bastante recente. Quando ele estava realmente no poder, o público britânico tinha muito menos paciência com o homem, e aqueles que marchavam sob o seu comando estavam entre os que exprimiam mais alto a sua desaprovação. No auge da Segunda Guerra Mundial, soldados do exército britânico estacionados no Egipto realizaram uma série de debates conhecidos como Parlamento das Forças do Cairo, culminando numa eleição simulada em Fevereiro de 1944 – e quando os seus votos foram contados, Churchill ficou em último. Mais tarde, quando a guerra foi vencida, Churchill viu-se acossado e vaiado por multidões em Walthamstow, que gritavam “We Want Labour!” enquanto o geralmente suave PM se tornava cada vez mais confuso. Finalmente, em 1945, foi eliminado de verdade, menos de dois meses após a rendição alemã que deveria ter sido sua maior conquista. Claramente, os contemporâneos de Churchill – embora muitos certamente o admirassem – viam-no como tudo menos um modelo intocável.
Então, de onde, afinal, vem o “Churchill Cult”? Como tantas outras más ideias, tem as suas raízes em Margaret Thatcher. Nos seus capítulos iniciais, Ali baseia-se na análise de Anthony Barnett, seu antigo colega na New Left Review, que em 1982 argumentou que o governo de Thatcher estava a rufar os tambores do “Churchillismo” para justificar a Guerra das Malvinas:
Todos os símbolos essenciais estavam lá: um povo insular, os mares cruéis, uma derrota britânica, a democracia anglo-saxónica desafiada por um ditador e, finalmente, a postura que rea a quinta essência Churchiliana — estávamos caídos, mas não estávamos arrumados. Os parlamentares de direita, esquerda e centro olharam através das brumas do tempo para as Malvinas e imaginaram-se como o Grande Velho. Eles eram, afinal, seus filhos políticos e também eles colocariam de novo o “Grande” na Grã-Bretanha.
Com este fim, os conservadores britânicos fizeram todo o possível para traçar paralelos entre eles e Churchill: da noite para o dia, as suas reuniões tornaram-se um “Gabinete de Guerra”, e aqueles que queriam ver um acordo diplomático pacífico com a Argentina foram acusados de “apaziguamento”. Da sua parte, Thatcher adquiriu o hábito de se referir a seu antecessor como “Winston”, implicando uma amizade pessoal que efectivamente nunca existiu – uma jogada irónica, já que Churchill era um veemente machista, e afirmava que “apenas a mais indesejável classe de mulheres” queria envolver-se na política. Desta forma, a campanha das Malvinas foi vendida com sucesso ao público britânico, e o “Churchillismo” integrou-se na ortodoxia política do país, onde permanece amplamente inquestionado.
As suposições mais básicas por detrás dessa narrativa são, no entanto, muito questionáveis, e nenhum o é mais do que a ideia de que Churchill era um ferrenho opositor do fascismo. Muito antes de prometer “lutar nas praias”, Churchill expressou uma perturbadora quantidade de simpatia pelo governo fascista da Itália, chamando em 1933 a Mussolini “o maior legislador entre os homens vivos” e elogiando a sua “magnífica coragem e audácia” até tão adiante como 1937 — mais de dez anos após a Marcha sobre Roma e a proibição de todos os partidos da oposição. Um monárquico toda a vida, Churchill ficou pessoalmente indignado com o sucesso da Revolução Russa e acreditava que o fascismo poderia servir como um necessário – embora desagradável – correctivo para a “pestilência” das revoltas dos trabalhadores; como disse a Mussolini: “Se eu fosse italiano, tenho certeza de que teria estado de todo o coração consigo do início ao fim em sua triunfante luta contra os bestiais apetites e paixões do leninismo”. Além disso, abraçou sem questionar muita da retórica antissemita do seu tempo, escrevendo sobre uma “sinistra confederação” de “judeus internacionais” no ensaio “Sionismo versus Bolchevismo”:
Em oposição violenta a toda esta esfera de esforço judaico emergem os esquemas dos judeus internacionais. Os adeptos desta sinistra confederação são na sua maioria homens criados entre as infelizes populações de países onde os judeus são perseguidos por causa da sua raça. A maioria, se não todos, abandonaram a fé dos seus antepassados, e divorciaram das suas mentes todas as esperanças espirituais do outro mundo. Este movimento entre os judeus não é novo. Dos dias de Spartacus-Weishaupt aos de Karl Marx, e até Trotsky (Rússia), Bela Kun (Hungria), Rosa Luxemburgo (Alemanha) e Emma Goldman (Estados Unidos), esta conspiração mundial para o derrube da civilização e pela reconstituição da sociedade com base em desenvolvimento estagnado, em invejosa malevolência e impossível igualdade, tem vindo continuamente a crescer. Ela desempenhou, como uma escritora moderna, a Sra. Webster, tão habilmente demonstrou, um papel definitivamente reconhecível na tragédia da Revolução Francesa. Foi a mola mestra de todos os movimentos subversivos durante o século XIX.
Apresentada sem autoria esta passagem, poderia perdoar-se o leitor médio se pensasse que provinha de Mein Kampf ou dos Protocolos dos Sábios de Sião, em vez de do homem creditado como o maior inimigo de Hitler. De facto, a “capaz” Sra Webster é principalmente conhecida pelas suas contribuições para The Cause of World Unrest, uma colecção de artigos comentando os Protocolos. Era essa, aparentemente, a escolha de material de leitura casual de Churchill!
Quando Churchill fez o seu famoso discurso na Câmara dos Comuns em Maio de 1940, instando o Parlamento a rejeitar as negociações com Hitler e lutar apesar da terrível situação em Dunquerque, não mencionou qualquer discordância fundamental com o fascismo ou o anti-semitismo. Na hora da verdade, não falava de “bestiais apetites” ou “invejosa malevolência”, como quando se referia aos socialistas. Em vez disso, a sua preocupação era simplesmente que “os alemães iriam exigir a nossa frota – isso seria chamado ‘desarmamento’” e que “deveríamos nos tornar um estado escravizado, embora fosse estabelecido sob Mosley ou alguma pessoa assim um governo britânico que seria um fantoche de Hitler.” Por outras palavras, não era realmente uma guerra antifascista que ele queria travar – ele havia defendido “a mais estrita neutralidade” na Guerra Civil Espanhola, apenas cinco anos antes – nem de nenhum modo uma guerra fortemente ideológica. Em vez disso, era simplesmente uma guerra para preservar o estatuto da Grã-Bretanha como superpotência soberana no cenário mundial. Era a noção de um império rival emergindo e superando a Grã-Bretanha que era intolerável – e foi dentro dessa lógica do imperialismo que foram tomadas todas as decisões mais importantes de Churchill, tanto em tempo de guerra como fora dele.
É em relação ao imperialismo, então, que realmente brilha Winston Churchill: His Times, His Crimes. Segundo a estimativa conservadora de Ali, existem hoje disponíveis mais de mil livros sobre Winston Churchill - mas na maioria, a esmagadora maioria da contagem de páginas é dedicada ao papel de Churchill na Segunda Guerra Mundial, enquanto muito menos atenção é dada às suas acções antes e depois dela. À primeira vista, isso pode parecer bastante razoável — afinal, a Segunda Guerra Mundial foi um muito grande acontecimento. Mas, sob outro ângulo, a guerra representa apenas um pedaço de sete anos na carreira de Churchill, que abrangeu pelo menos cinquenta anos e quatro continentes. Concentrar-se tão exclusivamente nesses sete anos comporta uma desconfortável implicação, sugerindo que conflito na Europa é inerentemente importante e interessante, enquanto África, Índia e Oriente Médio o são menos. (Para referência, este é o mesmo eurocentrismo arreigado que nos dá 24 horas por dia, 7 dias por semana, de cobertura da guerra na Ucrânia nos media, e praticamente nenhuma da igualmente horrível guerra no Iémen.) A coisa importante sobre o livro de Ali, mesmo depois de mil sobre o mesmo assunto, é que está principalmente interessado nos anos de Churchill ao serviço do imperialismo britânico, e apenas secundariamente interessado na Segunda Guerra Mundial, invertendo o habitual equilíbrio. É essa mudança de foco que permite que Ali coloque Churchill num contexto histórico mundial mais completo – e comece a tarefa de expor os seus específicos crimes.
Cronologicamente, pelo menos, o ponto de partida é o quarto capítulo de Ali, “The Irish Dimension”. Aqui, aprendemos que Churchill passou uma parte formativa da sua infância - dos três aos sete anos - vivendo em Dublin depois de seu pai, Lord Randolph Churchill, ser nomeado Lorde Tenente do governo de ocupação britânico. Como a maioria dos pais de classe alta de sua geração, Lord Randolph era, na melhor das hipóteses, distante, e o jovem Winston foi deixado semanas a fio ao cuidado de uma enfermeira inglesa chamada Sra. Everest. A partir desta formação, ele aprendeu a doutrina do imperialismo juntamente com o seu ABC, sendo informado de que os irlandeses eram “um povo muito ingrato” por querer a sua independência, e que os rebeldes fenianos eram “pessoas perversas, e não havia limite para o que eles fariam se levassem a sua avante.” Dessa forma, os combatentes da libertação nacional desempenharam para Churchill o mesmo papel que o bicho-papão desempenha para a maioria das crianças – e, correndo o risco de ser levianamente freudiano, esse facto explica muito sobre a sua vida posterior.
Quando adulto, a atitude de Churchill em relação à Irlanda era simples: era propriedade britânica, e qualquer movimento em direcção à independência era traição. Servindo como Secretário de Estado da Guerra em 1919, foi Churchill quem supervisionou o envio dos notórios esquadrões da morte “Black and Tan” para a Irlanda, destinados a esmagar o movimento republicano de uma vez por todas. Composto principalmente por ex-soldados da Primeira Guerra Mundial, os Black and Tans rapidamente se tornaram conhecidos como uma implacável força de ocupação, propensa a aleatoriamente espancar e atirar sobre civis irlandeses. Nas ordens do Coronel Gerald Smyth, podemos ver o tom casualmente assassino da política militar britânica:
Se a ordem ‘Mãos ao ar’ não for imediatamente obedecida, dispare e dispare com efectividade. Se as pessoas que se aproximam de uma patrulha levarem as mãos nos bolsos, ou parecerem de algum modo suspeitas, abata-as a tiro. Pode ocasionalmente cometer erros e podem ser baleadas pessoas inocentes, mas isso não pode ser evitado, e é possível que consiga acertar nos alvos certos algumas vezes. Quanto mais disparar, mais eu vou gostar de si, e garanto-lhe que nenhum policia lhe criará problemas por disparar seja contra quem for.
Por dar esta ordem, Smyth foi assassinado pelo IRA no verão de 1920 — mas Churchill foi a força motriz por trás dele, e cuja aprovação tácita se reflectia nas suas palavras. No Dezembro seguinte, as forças britânicas realizaram a Queima de Cork, incendiando mais de 300 casas e empresas em represália aos ataques do IRA – e disparando sobre os bombeiros quando estes tentaram ajudar. No seu relato, Ali traça uma linha clara entre a intervenção imperial de Churchill e a violência adicional dos Troubles que assolaram a Irlanda nas décadas seguintes, uma lançando as sementes da outra. Hoje, como as consequências do Brexit continuam a desestabilizar as relações entre a Irlanda e o Reino Unido, as consequências podem estar longe de ter terminado.
Esse padrão repete-se na Índia, onde se possível a retórica anti-independência de Churchill foi ainda mais estridente. Ele tinha uma aversão especial pelo Mahatma Gandhi, chamando ao líder indiano “fanático subversivo maligno” e um “advogado sedicioso do Middle Temple, agora posando como faquir de um tipo bem conhecido no oriente”; mesmo expressa nos termos mais não violentos, a ideia de que os indianos pudessem se governar sem supervisão britânica era um anátema para o seu orgulho imperial. Quando Gandhi anunciou em 1942 a greve “Quit India”, suspendendo a cooperação indiana com o esforço de guerra britânico para obter uma garantia de liberdade, Churchill foi expedito em mandar para a prisão toda a liderança do Congresso Nacional Indiano. Então, quando Gandhi fez uma greve de fome de 21 dias em protesto, ele zombou que “se ele morresse ficarámos livres de um homem mau e inimigo do Império”. Mais uma vez, Ali traça a conexão entre a insensibilidade do Churchill adulto e as suas experiências quando jovem. Enviado como soldado em 1897 a patrulhar a fronteira indiana/afegã – uma das muitas linhas puramente arbitrárias traçadas no mapa por diplomatas britânicos –, Churchill achou que os combatentes pashtun que ousaram resistir ao Império estavam “entre as criaturas mais miseráveis e brutais da Terra,” e escreveu longos e lamentosos registos no seu diário, lamentando-se que “na proporção em que estes vales são expurgados dos vermes perniciosos que os infestam, assim aumentará a felicidade da humanidade”. Para olhos modernos, esse sentimento casualmente genocida é horrível – mas formou uma parte central do pensamento de Churchill, e não deveria ter surpreendido ninguém quando mais tarde ele efectivamente supervisionou um genocídio na Índia.
A Fome de Bengala, como Ali aponta, é um assunto delicado para os historiadores ocidentais. Não aparece na história de seis volumes da Segunda Guerra Mundial de Churchill, que se tornou um best-seller internacional, nem na Oxford History of the Twentieth Century; certamente não encontrei menção dela no Churchill Factor de Johnson. E, no entanto, Ali revela que as acções e inacções de Churchill durante a guerra levaram directamente à morte de pelo menos 3 milhões de indianos – um preço que seria considerado imperdoável se fosse cobrado por qualquer outra pessoa, em qualquer outro lugar. Como o falecido Christopher Hitchens no seu subestimado livro The Trial of Henry Kissinger, Ali assume-se como acusador de Churchill e apresenta em ordem meticulosa as provas da sua cumplicidade na Fome, deixando pouco espaço para dúvidas. O resultado é uma convincente acusação histórica que, mesmo que o resto dos capítulos fossem enchimento, justificaria por si só a existência do livro.
Então, o que é que aconteceu exactamente? Em 1942, a região de Bengala tinha 60 milhões de habitantes, a maioria dos quais dependia de arroz e peixe para as suas refeições diárias. Como a primeira parte da Índia a ser colonizada pelos britânicos no século XVIII, estava sob particularmente firme controlo imperial, e “a palavra do administrador britânico era lei” em todos os assuntos, incluindo os da agricultura. A região era também propensa a ciclones severos e outros fenómenos climáticos, e a maioria dos relatos ocidentais culpa-os pela Fome. No entanto, como Ali rapidamente aponta, as colheitas de 1943 foram apenas 5% menores do que as de 1942, apesar de um tsunami que inundou grande parte do Delta do Ganges. “Não foi a falta de comida que matou milhões”, escreve; em vez disso, “sucedeu simplesmente que a comida se tornou inacessível por ordem dos mais altos níveis da burocracia imperial em Delhi, que estavam a cumprir instruções de Londres”.
Ao emitir essas instruções, Churchill priorizou explicitamente a sobrevivência dos europeus sobre a dos indianos, extraindo milhares de toneladas de grãos de Bengala para alimentar os soldados britânicos e ajudar uma fome que ocorria paralelamente na Grécia. Como até o bajulador Churchill Project do Hillsdale College é forçado a admitir, ele disse abertamente que “a fome de bengalis de qualquer modo subnutridos é menos séria do que a de gregos robustos”, uma declaração que dificilmente pode ser lida senão como homicidamente racista. (Considere, aqui, as conotações culturais: os gregos eram associados aos muito fetichizados clássicos que formavam a espinha dorsal da educação da elite britânica, enquanto os indianos ainda eram vistos como as “criaturas miseráveis e brutais” dos dias de Churchill como militar.) Mais tarde, quando parecia que o Japão imperial poderia capturar Bengala, uma segunda motivação foi acrescentada ao cálculo de Churchill, e sua política tornou-se de “negação”, despojando o campo de quaisquer recursos que pudesse fornecer para impedir que os japoneses os usassem. Segundo os números de Ali, 43.000 barcos de pesca foram apreendidos ou destruídos, e mais 123.000 toneladas de arroz foram levadas, deixando pouco ou nada para os bengalis subsistirem. As pessoas foram deslocadas das suas casas, sobrecarregando hospitais enquanto se deslocavam em massa; vendiam tudo o que possuíam por algumas tigelas de comida, tornavam-se presa de agiotas extorsionáros e recorriam ao roubo e até ao canibalismo simplesmente para sobreviver. É impossível imaginar verdadeiramente o inferno que a política britânica desencadeou na Índia Oriental, mas o relato de Ali aproxima o leitor o mais possível – e coloca as montanhas de cadáveres bem à porta de Churchill.
Os números exactos são difíceis de confirmar, mas pelas contas mais conservadoras, pelo menos 3 milhões de pessoas morreram na Fome de Bengala. Segundo o documentarista indiano Satyajit Ray, citado extensivamente por Ali, o número real pode estar mais próximo de 5 milhões, com muitos perecendo em aldeias distantes que nenhum recenseador do governo jamais alcançou. Porquê, então, Churchill não é considerado um monstro assassino da ordem de Stalin, que causou uma fome igualmente letal na Ucrânia? Como podemos castigar um homem, enquanto defendemos o outro como um herói? Infelizmente, a resposta é simplesmente racismo imperial. Ainda hoje, muitos historiadores – consciente ou inconscientemente – consideram as vidas indígenas menos valiosas do que as de nações mais próximas e mais brancas, e os incentivos financeiros da academia e das publicações reflectem esse preconceito. Livros e documentários sobre Churchill, o herói bombástico, vendem; relatos sombrios de fome em massa, bastante menos. Contra essa tendência dominante, o livro de Ali – junto com os de estudiosos bengalis como Janam e Madhusree Mukerjee – é um correctivo vital, embora ainda haja muito trabalho a ser feito.
Poderíamos continuar nessa linha para sempre, abordando atrocidades no Irão, Iraque, Sudão e Palestina, entre outros lugares. O livro de Ali não é exaustivo, mas simplesmente uma soma de momentos-chave; a história completa da violência imperial de Churchill levaria muitos volumes a ser contada, e grande parte dela foi perdida ou deliberadamente apagada. Juntamente com as secções sobre a Índia, um dos capítulos mais fortes do livro é “War Crimes in Kenya”, que ilumina uma parte particularmente bem suprimida da história colonial da Grã-Bretanha. Baseando-se fortemente na investigação da professora de Harvard Caroline Elkins, cujo livro de 2005 Britain’s Gulag expôs pela primeira vez muitos dos incidentes envolvidos, Ali relata como os britânicos construíram um elaborado sistema de apartheid no Quênia, no qual os quenianos indígenas não podiam possuir terras fora de certas “reservas” — que detinham o pior e menos fértil terreno—e não podia votar. Por sua parte, Churchill era um defensor entusiástico desse regime e observou em 1921 que “é absurdo ir dar aos selvagens nus dos Kikuyu e dos Kavirondo direitos eleitorais iguais, embora sejam seres humanos – isso não pode ser feito”. Mais uma vez, a mais branda exigência por parte dos povos indígenas – nem mesmo que os britânicos cessem a ocupação do Quênia, mas apenas que permitam um pingo de liberdade política dentro do seu domínio – obteve apenas inflexível desprezo.
Após décadas deste tratamento, os nacionalistas quenianos lançaram em 1952 o levantamento Mau Mau, logo após Churchill ter finalmente retornado ao poder em Inglaterra. Mal armados em comparação com as tropas britânicas e seus colaboradores, os rebeldes quenianos ainda conseguiram executar uma série de bem-sucedidos ataques de guerrilha em todo o país, matando 32 colonos. Em resposta, o governo de Churchill realizou uma loucamente desproporcionada repressão militar, prendendo mais de 80.000 quenianos suspeitos de simpatizar com o movimento de independência – ou que acontecia serem confundidos com outra pessoa, ou simplesmente que estavam no lugar errado na hora errada. Homens, mulheres e crianças foram levados para “campos de detenção” – na verdade campos de concentração – onde as condições de alimentação e higiene eram atrozes, e espancamentos e torturas eram rotina. (O slogan acima dos portões de Agathi, um local particularmente notório, dizia “Aquele que se ajuda a si próprio será também ajudado” – a uma minúscula distância do nazi Arbeit Macht Frei, numa ironia que aparentemente passou despercebida aos supervisores do campo.) Numa entrevista ao Times de Londres, a viúva de um prisioneiro refere os abusos que ele sofreu às mãos dos seus captores britânicos:
Os guardas africanos eram instruídos pelos soldados brancos a chicoteá-lo todas as manhãs e noites até que confessasse […] Ele disse que por vezes apertavam os seus testículos com hastes metálicas paralelas. Também furaram as suas unhas e nádegas com um alfinete afiado, com suas mãos e pernas amarradas com a cabeça voltada para baixo […] Foi então que percebemos que os britânicos realmente não eram amigos, mas sim inimigos.
E mesmo essa angustiante história poderia ter sido esquecida – se o nome do homem torturado não fosse Hussein Onyango Obama, e o seu neto não fosse o presidente dos Estados Unidos. Embora não fosse ele próprio estranho a crimes de guerra, Barack Obama removeu um grande busto de Churchill do Salão Oval como um de seus primeiros actos no poder – apenas para ser repreendido, com impressionante insensibilidade, por Boris Johnson pelo “desprezo à Grã-Bretanha”. Aparentemente, mesmo o sofrimento de parentes directos não permite qualquer sacrilégio contra a imagem consagrada de Churchill.
Quando falava de seu futuro legado, Winston Churchill tinha uma frase favorita, à qual muitas vezes voltava em formas ligeiramente diferentes. “Considero que se verificará ser muito melhor para todas as partes deixar o passado para a história”, disse, “especialmente porque me proponho escrever eu mesmo essa história”. Em vida, ele fez exactamente isso, publicando centenas de milhares de palavras sobre as suas próprias façanhas; na morte, parece ter tido um sucesso que vai além dos seus sonhos mais loucos, deixando atrás uma pós-imagem cultural que qualquer líder mundial poderia invejar. Os seus momentos de coragem e previsão foram polidos a um esplendor dourado, e a sua história muito mais sombria de imperialismo, supremacia branca e implacável violência foi minimizada – tanto sangue por debaixo da ponte. Mas ao permitir que essa imagem construída permaneça, cometemos uma grave injustiça, tanto para o passado como para o futuro. Quando damos o crédito pela vitória na Segunda Guerra Mundial a um racista, roubamo-lo ao povo trabalhador da Europa, que fez verdadeiramente surpreendentes sacrifícios enquanto Churchill estava sentado em segurança no seu bunker. E quando minimizamos o horror da violência colonial em todo o mundo e permitimos que um de seus principais perpetradores desfrute do estatuto de herói nacional, apenas incentivamos derramamento de sangue futuro. No seu Prefácio, Tariq Ali deixa claro que não apoia o derrube das estátuas de Churchill onde quer que estejam – mas antes uma mais profunda batalha no campo da historiografia, contra um consenso que “parece hegemónico, mas permanece vulnerável”. É este o contexto em que Winston Churchill: His Times, His Crimes é escrito – e no qual, se eu sou de algum modo capaz de ajuizar, tem um sucesso admirável. (diario info)
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