A democracia não cria heróis. É iconoclasta, não deixa ninguém impune. Mesmo aqueles que deram a vida inteira não são reconhecidos. Não há estátuas para os democratas”
A literatura é um punho erguido contra Deus a
dizer: “Fala.”
A religião tradicional, mesmo na juventude, não lhe bastava? Não, não me bastou. E a pessoa que
me ajudou muito foi um homem que
aí está, que foi o meu mestre, para
quem há poucos dias escrevi um poema, que se chama Frei Bento Domingues. Porque vivi a questão do sentido
da vida quando era jovem com profundidade absoluta. Foi muito intenso e continua a ser. Queria que Deus
falasse, mas não fala. Vamos aos campos de concentração e perguntamos
porque é que Deus não falou. Neste momento, quando vemos cidades
inteiras destruídas, e pessoas a rir
à volta das mesas, a dizer que querem a paz, perguntamos: “Deus não
fala?” Deus não fala. E a literatura é
feita para isso. A arte é o nosso punho erguido a questionar: “Se existes, porque não falas? Porque é que
me deixas sozinho aqui com as palavras?” George Steiner tem páginas
brilhantes sobre este instrumento
que é a fala, a linguagem, que serve
para tudo. Mas que tem dois eixos:
um é que com ela dizemos tudo o
que queremos, mas ao mesmo tempo sabemos que não dizemos tudo o
que queremos. É essa dualidade, esse
paradoxo, que nos anima. A literatura é um punho erguido contra Deus a
dizer: “Fala.” Numa Escritaria, em Penafiel, falou
da sua avó materna, uma camponesa algarvia que antes de morrer lhe
passou o “novelo do feitiço”. O que é
que as mulheres nos dão?
A minha avó era uma mulher muito afoita, criativa, não acreditava em
Deus. Era uma pessoa extravagante
para o seu tempo. Mas era carinhosa e boa, e quando eu ia lá à casa tinha sempre uma prenda para me dar.
Dava-me dinheiro. Dizia: “Toma.” Eu
recebia, pronto. Acontece que a última vez que estive com ela, chamou-
-me e disse, “Lidinha, tenho uma
coisa para te dar.” E eu dei a mão e ela
fez o gesto, mas não pôs lá nada. Foi
a última vez que estivemos juntas. O
que as mulheres nos dão é a sabedoria acumulada de ficarem na sombra.
E de serem corpos que sangram e dão
leite e alimentam a vida. Damos tudo.
Tudo. A gente dá tudo. Até mente
para que os outros se sintam bem, e
às vezes, não os admirando, a gente
diz que admira para fazer o bem, para
salvar os outros. Acho que é isso.








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