sexta-feira, 13 de agosto de 2021

1919-2021 Morreu o fuzileiro norte-americano e um dos líderes da sangrenta batalha de Iwo Jima. Foi o seu pelotão que escalou o Monte Suribachi e lá ergueu a bandeira que entrou para a história

 Dave Severance


Fuzileiros fincam abandeira dos EUA no Monte Suribachi, na Ilha de Iwo Jima. JoeRosenthal/AP

 


 Este foi um ícone em vida, e ainda novo, um capitão de 26 anos, mas o que fez foi tão grande, tão imenso, que a sua existência restante, ademais muito longa, foi toda passada à sombra daquela fotografia. Há o mito, claro, transposto até para o cinema e por mais de uma vez, e a circunstância fortuita e feliz de um repórter andar ali por perto, e o seu momento inspirado, mas nada disso são coisas que invalidem o sumo alcance, a um tempo bélico e histórico, do gesto de seis fuzileiros da marinha dos EUA, que na manhã de 23 de Fevereiro de 1945 subiram sob fogo ao Monte Suribachi e lá no cimo hastearam, eram 12h15 precisas, uma bandeira enorme de 2,5 por 1,4 metros, ainda maior que a primeira. Estão hoje as duas conservadas num museu de guerra, e é caso para isso, pois as bandeiras de Iwo Jima, posto que diferentes no tamanho e na petite histoire, são memória e sinal maior de que, havendo vontade e força, sempre o bem tudo alcança. Ao vê-las no alto, os soldados na praia regozijaram em aplausos, ganhando ânimo para a conquista daquele pedaço vulcânico perdido no meio do Pacífico, uma ilha de 21 quilómetros quadrados em forma de costeleta de porco, como eles lhe chamaram, que nem constava sequer do plano inicial de operações. Contrariamente ao que os comandos esperavam, a batalha foi árdua e longa, cinco semanas de sangue, e fez baixas incomensuráveis: quase 7 mil mortos e 20 mil feridos para os americanos; mais de 18 mil falecidos na facção nipónica. A escalada dos 166 metros do Monte Suribachi, um vulcão adormecido no extremo sudoeste da ilha, foi das primeiras acções levadas a cabo pelos invasores e a bandeira enorme permaneceria aí, ondeada e impante, ao longo das várias semanas de carnificina. Entretanto, a fotografia de Joe Rosenthal chegara com uma velocidade surpreendentemente rápida à América e, ao vê-la reproduzida nos jornais dos dias seguintes, Roosevelt apercebeu-se do seu potencial para apoio do sétimo   empréstimo de guerra que o Tesouro iria lançar em breve. Em Maio de 1945, um cartaz com a foto inundou o país, a promover um empréstimo que rendeu 26 biliões de dólares para o esforço bélico, o mais bem-sucedido dos oito que a América lançou entre 1942 e 1945. Rosenthal ganharia o Pulitzer, fizeram-se selos e medalhas, uma estátua-memorial no cemitério de Arlington, um filme com John Wayne, outro com Tony Curtis e dois mais recentes de Clint Eastwood. Nada disto seria possível sem Dave Severance, partido aos 102 anos no passado 2 de Agosto, com o posto de coronel, e em La Jolla onde morava, na Califórnia. Nascera no Wisconsin, em 1919, mas cresceu no Colorado e ainda chegou a frequentar por um ano a Universidade de Washington, que abandonou por falta de recursos. Inscreveu-se nos fuzileiros e, com o deflagrar da guerra, foi enviado para o teatro do Pacífico, onde se destacou por bravura na Campanha de Bougainville. Depois, foi transferido para o Havai, gozou uma breve licença em Pearl Harbor e acabou mandado para o inferno de Iwo Jima. Capitaneava então a Easy Company do 28º regimento de Marines e foi dos primeiros a desembarcar na ilha, às 9h55 da manhã de 19 de Fevereiro de 1945. Um dos pelotões sob seu comando perdeu-se no areal ao fogo dos japoneses, Severance teve de o recuperar no meio de uma chacina terrível para, logo a seguir, começar a ser atacado por fogo amigo da aviação americana. Apesar disso, conseguiria isolar o Monte Suribachi do resto da ilha, rasgando as linhas contrárias. A meio da manhã, quando o tenente-coronel Johnson lhe ordenou que mandasse os seus homens subirem ao cimo do monte e colocarem lá uma bandeira vinda do “USS Missouri”, Severance pensou que iria mandá-los para uma morte certa, segundo confessaria anos depois. Mas foram, e venceram. O secretário da Marinha, James Forrestal, que entretanto desembarcara na praia liberta, exclamou que a bandeira do Suribachi garantia que o Corpo de Marines iria existir mais 500 anos e disse querer guardá-la como souvenir da refrega. Pretendendo o troféu para o seu batalhão, o tenente-coronel Johnson ficou danado, praguejou na areia “The hell with that!” e decerto impropérios piores, e mandou que Severance enviasse novos homens lá acima, com uma bandeira ainda maior, mais vistosa. Foi esse punhado de heróis que Rosenthal captou com a sua Speed Graphic. Mais tarde, disputou-se a identidade dos retratados e, após três inquéritos exaustivos, em 1946, 2016 e 2019, soube-se que, dos seis no retrato, três morreram nas selvas de Iwo Jima, dias depois, esfacelados por morteiros, alvejados por snipers, atingidos por artilharia amiga disparada da costa. Dos que restaram, o mais famoso de todos, Ira Hayes, índio da tribo pima, alcoólico e desordeiro, ainda apareceu fugazmente no filme de Wayne e foi encontrado morto em 1954, diz-se que por homicídio. O tenente-coronel Johnson, veterano da “Guerra das Bananas” da Nicarágua, foi morto por estilhaços de bomba, em Iwo Jima, e o secretário Forrestal, dilacerado por problemas mentais derivados de rígida educação católica, resignou em 1949, em conflito com Truman, e acabou por se suicidar no hospital naval de Bethesda, no Maryland. Dave Severance, o sobrevivente, tornou-se piloto de guerra, fez 69 missões na Coreia, merecedoras de medalha, e ainda esteve no Vietname, passando à reserva em Maio de 1968 com a patente de coronel. Fixou-se na Califórnia, ao sol de La Jolla, perto de San Diego, foi casado duas vezes, era viúvo desde 2017 e tinha duas filhas lindas, muitos netos e bisnetos. Dizia querer ser lembrado como alguém que esteve 30 anos nos fuzileiros sem nunca ter sido preso.--António Araújo


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