domingo, 7 de novembro de 2021

“Angoche”, anatomia de um mistério

 A 24 de abril de 1971, em plena Guerra Colonial, um cargueiro português era encontrado à deriva ao largo de Moçambique, em chamas e sem ninguém vivo a bordo, tirando um gato e um cão, testemunhas silenciosas de uma tragédia que, 50 anos depois, continua por explicar

É um mistério digno do Triângulo das Bermudas mas ocorrido com mar calmo e a 30 milhas da costa. O comandante do “Angoche” era experiente: Adolfo Manuel Bernardino tinha 16 anos de mar, três dos quais nestas paragens e fazia a sua última viagem antes de regressar ao território continental português. O barco era moderno, estava em perfeito estado e percorria uma rota sobejamente conhecida, não havendo precedentes de ataques à navegação naquelas águas, de resto vigiadas por aviões e navios de guerra, não só portugueses como britânicos. Isto acontecia devido à declaração de independência unilateral branca da então Rodésia do Sul (hoje Zimbabwe) em 1965 e ao subsequente bloqueio naval inglês ao porto da Beira. Outros olhares atentos por ali haveria, a começar pelos sul-africanos e quem sabe que outros, ou não estivéssemos em plena Guerra Fria. Foi, portanto, no mais improvável dos cenários que o navio motor “Angoche” deixou de comunicar por rádio, coisa que inicialmente não levantou suspeitas de maior. Partira do cais de Lourenço Marques, hoje Maputo, a 6 de abril de 1971 para a sua 266ª viagem. Esta seguia o padrão habitual: navegação de cabotagem ao longo da costa moçambicana, com paragens em diversos portos para cargas e descargas, tendo como destino final Mocímboa da Praia, já perto da fronteira da Tanzânia, país onde os guerrilheiros da Frelimo tinham bases logísticas. Esta mesma Mocímboa, muito tem dado que falar já nos nossos dias devido a ataques de grupos jiadistas. A bordo do “Angoche”, uma tripulação de 23 pessoas, entre oficiais, marinheiros e criados. Depois de aportarem a António Enes (hoje Angoche), fizeram o mesmo em Moma, Quelimane, Beira ou Nacala, porto onde chegaram a 22 de abril de 1971, já de tarde. O navio recebeu mais uma pessoa, José António, funcionário dos caminhos de ferro, a caminho de Porto Amélia (atual Pemba), cuja via tura, um Peugeot 404, foi carregada para bordo. Nos porões, uma carga diversificada: açúcar, farinha e gasóleo, aos quais se tinha passado a juntar algum material de guerra: uma centena de bombas de 50 kg destinadas à Força Aérea Portuguesa, bem como pó utilizado para fabricar o gel incendiá rio que nos habituámos a conhecer como napalm. Às 17h de 23 de abril, sexta-feira, o “Angoche” abandonou Nacala e rumou para norte, não voltando a ser visto nem a comunicar via rádio. O drama começava e com este um mistério que dura até hoje

TRÊS DIAS SEM NOTÍCIAS 

Como se meteu o fim de semana, o atraso na chegada a Porto Amélia terá passado relativamente despercebido, mas segunda-feira depois de almoço os armadores alertavam o Comando Naval de Moçambique e iniciavam-se operações de busca com navios e aeronaves que se revelam infrutíferas. Apenas na terça-feira se soube através de uma comunicação rádio que o “Angoche” fora encontrado por um petroleiro, à deriva, em chamas, fora da sua rota e sem sinais dos tripulantes. No diário de bordo do “Esso Port Dickson”, navio-tanque de 20 mil toneladas com bandeira de conveniência panamiana, a navegar do Golfo Pérsico para o Cabo da Boa Esperança, ficou registada a seguinte informação: avistado na madrugada de sábado 24 de abril o clarão de um incêndio; feita a aproximação, constatou-se que se tratava do cargueiro português “Angoche”, adornado e a arder, no ponto com coordenadas 15° 27’ sul e 40° 56’ norte. Ou seja, a sul (em vez de norte) do porto de Nacala e 30 milhas ao largo deste. Da versão dos acontecimentos mais tarde apresentada pelo comandante do petroleiro e mais ou menos refletida nos registos de bordo, o italiano Aurelio Aquini, resulta que a tripulação do petroleiro terá tentado prestar socorros e apagar o fogo, operação que terá demorado à volta de um dia, ou seja durou até domingo dia 25. Durante esse perío do, tripulantes do “Esso Port Dickson” terão ido a bordo do navio sinistrado para passar cabos de reboque e avaliar a situação. Terão, porventura, feito mais que isso, uma vez que mais tarde as autoridades portuguesas encontrarão o cofre arrombado, bem como gavetas e armários remexidos, além de sinais de o navio ter sido revolvido. Se tinha havido crime a bordo, o local desse possível crime ficou adulterado, complicando a recolha de provas e indícios. Aquini reconheceu, apenas, terem trazido para bordo grades de cerveja Laurentina, conservas e cabos de nylon.

PETROLEIRO DEIXA DE COMUNICAR

 O que vem a seguir complica ainda mais a leitura dos acontecimentos. Com o “Angoche” estabilizado(o que, segundo o diário de bordo do petroleiro, implicou tirar carga do porão de estibordo), iniciou- -se o reboque. Contudo, após a comunicação rádio de terça-feira 27 de abril referindo a ocorrência, o “Esso Port Dickson” deixa de comunicar com as autoridades portuguesas e inicia uma secreta viagem para sul, rebocando o “Angoche” a baixa velocidade (cerca de 10 nós). Quinta-feira 29 de abril já navegava no Canal de Moçambique, entre Inhambane e Lourenço Marques e, apesar da grelha das buscas ter sido estendida, só viria a ser descoberto na segunda-feira 3 de maio. Só nessa altura os cabos de reboque serão passados para o rebocador alemão “Baltic”, já à vista da fragata “Hermenegildo Capelo”. O petroleiro seguiu para Durban e o “Angoche”, a reboque, para Lourenço Marques. Anos mais tarde, em maio de 1993, o comandante Aquini em declarações ao Expresso, registadas por António Alfaiate, tentará explicar o silêncio rádio, as mudanças de rumo e o jogo do gato e do rato com as autoridades portugueses, dizendo que se tratava apenas de ganhar tempo até receber instruções do armador sobre a forma de tirar partido do direito marítimo e tentar reivindicar a posse do navio sinistrado ou, pelo menos, as recompensas possíveis. Aquini não o disse, mas, caso estivesse a tentar esconder provas físicas ou baralhar pistas sobre o que verdadeiramente sucedera a bordo do “Angoche”, também não teria feito outra coisa... A verdade é que se houve interrogatório de Aquini em Durban por parte da PIDE ou das entidades consulares portuguesas além, como é óbvio, das sul-africanas, tal documentação, a ter existido, desapareceu nos alçapões da história. A peritagem ao navio, uma vez chegado ao porto de Lourenço Marques, acabou por ser feita, não por quem tinha competência técnica para tal, ou seja, pelas autoridades navais, mas pela polícia política, a PIDE/DGS, cujo histórico de relações com os militares tanto incluía colaboração como atritos. Isto num clima de cortar à faca entre o governador-geral Arantes e Oliveira e o comandante militar Kaúlza de Arriaga. Partilhavam duas coisas: a circunstância de serem engenheiros militares e uma solene antipatia um pelo outro que levava a que praticamente não se falassem.

 O CÃO, O GATO E O AUTOMÓVEL 

Ficou, portanto, a faltar informação credível sobre o tipo de explosivos usados e sobre a respetiva assinatura, porque a PIDE não fez exames laboratoriais. A ideia mais tarde veiculada de que o incêndio a bordo teria atingido temperaturas extremas, capazes de incinerar corpos e outros vestígios fica abalada quando se sabe que a bordo tinham sido encontrados um gato e um cão de perfeita saúde. E que o Peugeot, amarrado no convés, também estava inteiro. É verdade que faltavam algumas das armas de defesa existentes a bordo (uma das pistolas-metralhadoras FBP e algumas pistolas), mas não havia impactos de balas, nem sangue, nem vestígios de luta. A antena de rádio apresentava-se sabotada, faltando saber se isso ocorrera antes ou depois dos acontecimentos a bordo. Não eram boas notícias para o regime de Marcello Caetano, uma vez que provavam que a navegação no Canal de Moçambique e nas proximidades da costa, vital para o esforço de guerra português e para os fluxos comerciais num território com 2700 km de comprimento no sentido norte-sul, não era, afinal, tão segura como se queria fazer crer. E que elementos hostis, fossem estes quem fossem, tinham evidenciado gritante capacidade de a perturbar. A máquina de propaganda da ditadura iniciou o seu trabalho, começando a agência ANI por plantar nos jornais a informação de que tudo resultara da infiltração de elementos hostis a bordo, os quais teriam amotinado parte da tripulação negra contra os oficiais brancos. Na sua edição de 8 de maio de 1971, o “Diário Popular” titulava: “O ‘Angoche’ largou para a sua última viagem já com terroristas a bordo; terroristas escondidos num dos porões teriam ajudado a dominar a tripulação quando da abordagem”. Abordagem feita por quem e com que meios é coisa que o vespertino lisboeta não explicava. Antes, a 6 de maio, o “Diário de Notícias”, citando as emissões em língua portuguesa da Rádio Pequim, escrevia que o “Angoche” fora abordado por um submarino chinês que obrigara a tripulação a abandonar o navio, ainda que sem explicar em que circunstâncias. Fá-lo-ia dois dias depois, citando agora estações de rádio sul-africanas, para referir que os tripulantes tinham desembarcado na Tanzânia, onde se encontravam detidos. Contudo, na mesma altura, a Secretaria de Estado da Informação e Turismo declarava numa conferência de imprensa que as hipóteses de abordagem do navio e rapto da tripulação eram “destituídas de fundamento”.

COMIDOS PELOS TUBARÕES 

 Um verdadeiro labirinto de contradições. Ainda mais adensado por um comunicado governamental, do qual o próprio primeiro-ministro Marcello Caetano se faria eco a 15 de junho de 1971 numa “Conversa em Família” (intervenção periódica na RTP), segundo o qual, “a única hipótese possível era a de os tripulantes [sobreviventes] se terem lançado ao mar e sido devorados pelos tubarões”. Depois dos chineses eram os esqualos do Índico a ter costas largas.

Ainda que em Moçambique houvesse alguma tradição de jornalismo, ilustrada pela circunstância de os primeiros a terem avistado o “Angoche” e o “Esso Port Dickson” terem sido jornalistas do “Notícias da Beira” a bordo de uma aeronave civil, vivia-se em ditadura, em tempo de guerra e havia censura. E o mesmo sucedia em Portugal continental, facto agravado pela distância e pela dificuldade em recolher informação em primeira mão. Nem a queda da ditadura nem o posterior acesso de Moçambique à independência vieram ajudar a desvendar o mistério. Houve trocas de prisioneiros entre a Frelimo e as forças portuguesas, mas estas nunca envolveram nenhum tripulante do “Angoche” ou apresentado como tal. Houve duas comissões de inquérito no pós-25 de Abril, uma nomeada por Vasco Gonçalves a 12 de junho de 1975, na sequência de uma manifestação à porta do Conselho de Ministros, e outra por Mário Soares, empossada em abril de 1977, e que, tendo embora um horizonte de 30 dias para produzir conclusões, acabaria por ser extinta sem produzir nada de relevante. A partir desta altura há alguma exploração do caso pela extrema-direita, tanto civil como militar e com algum eco entre os retornados das ex-colónias. Apresenta-se o caso “Angoche” como estando na linha do “abandono do Ultramar aos comunistas”, do suposto conluio das novas autoridades portuguesas com os ex-guerrilheiros agora no poder e da indiferença pela sorte dos tripulantes, esquecidos nas masmorras da Tanzânia. Foi o caso de um trabalho publicado a 18 de fevereiro de 1978 no semanário “O Diabo” por Metzer Leone que se gabava de ter deslindado em cinco meses um caso que as autoridades não tinham conseguido resolver em sete anos. A versão dos acontecimentos apresentada por Leone era, basicamente, a de uma abordagem em alto mar, com a conivência [por razões não explicadas] do capitão, levada a cabo por um navio transportando comandos chineses e o transporte para Dar-es-Salam (Tanzânia) da tripulação aprisionada e posteriormente para um campo de prisioneiros em Moçambique em 1976. Era um enredo homogéneo mas para o qual não se citavam fontes, documentos ou testemunhos sólidos, a não ser referências do tipo “ouvi dizer” sobre a sorte dos tripulantes, uma vez aprisionados. 


CINCO CENÁRIOS 

 Vale, então, a pena enumerar as hipóteses até hoje avançadas, bem como as suas virtualidades e fragilidades. Frelimo — O movimento armado moçambicano era o suspeito mais óbvio e o mais interessado em capitalizar politicamente a operação. Contudo, nunca o fez, nem antes nem depois do 25 de Abril. Chegou a haver uma reivindicação a partir de Paris, depois desmentida pela própria Frelimo e reiterada mais tarde por Joaquim Chissano, ministro dos Negócios Estrangeiros e sucessor de Samora Machel como Presidente (após 1986). A Frelimo não possuía meios navais, nomeadamente lanchas rápidas nem submarinos, tal como, de resto, a sua aliada e apoiante logística, a Tanzânia. China — A China de Mao apoiava a Tanzânia e a Frelimo mas, mesmo que tivesse submarinos naquelas águas (ideia difícil de aceitar dado o grau de vigilância português, britânico e sul-africano), à época só possuía modelos antigos, derivados dos soviéticos e com uma tripulação da ordem das duas dezenas de homens, logo com muito pouco espaço a bordo para acomodar duas dúzias de prisioneiros, quanto mais um grupo de comandos. Motim — A ideia de um golpe de mão a bordo, levado a cabo por elementos infiltrados e com o apoio de parte da tripulação negra, esbarra em duas dificuldades. Não foram encontrados sinais de luta no “Angoche”. E, uma vez dominado o navio, teria sido preciso um outro para transportar prisioneiros e atacantes para terra (coisa que teria que ser feita fora do território controlado pelas forças portuguesas, logo muito para norte do local do ataque), barco este que dificilmente não se teria cruzado com o “Esso Port Dickson”. E a chegada deste hipotético meio naval à Tanzânia não teria passado despercebida. Atentado — Sabendo-se que havia precedentes de ações armadas contra o esforço de guerra português levadas a cabo na metrópole pela ARA (ligada ao PCP) ou pelas Brigadas Revolucionárias, respetivamente desde 1970 contra o cargueiro “Cunene” em Lisboa ou em 1971 visando as instalações da NATO na Fonte da Telha, admitiu-se a hipótese de uma extensão dessas operações a Moçambique. Este cenário, contudo, fraqueja a dois níveis. Implicava a existência de uma rede extensa de apoios locais (esconderijos, armas, casas seguras, etc.) que nunca existiu. E fugia ao padrão de atividade seguido até 1974 por ambas as organizações armadas: visar unicamente instalações e material e nunca pessoas físicas. Retaliação — Durante os anos de guerra em Moçambique multiplicaram-se operações irregulares de portugueses, sul-africanos ou rodesianos, visando alvos da guerrilha mesmo além-fronteiras, com transporte de grupos de combate por via aérea ou naval, neste último caso em lanchas rápidas ou submarinos. Poderia alguma destas operações ter ‘tropeçado’ em pescadores ou marinheiros tanzanianos, liquidados a sangue-frio para não darem o alarme ou testemunharem coisas politicamente incómodas? A ser assim, o ataque ao “Angoche” teria sido uma vingança por este hipotético massacre, mas a sua execução implicava meios navais que, como se disse, nem a Tanzânia nem a Frelimo possuíam. O principal defensor desta tese, conforme se fazia eco o Expresso em 1993, foi Orlando Cristina, adjunto do engenheiro Jorge Jardim. Este era defensor de uma independência unilateral e multirracial de Moçambique e por isso mesmo em frequente rota de colisão com Marcello Caetano (pela primeira daquelas razões) ou com os sul-africanos (pela segunda). Cristina, um operacional experimentado, saberia seguramente alguma coisa mas o que sabia levou- -o consigo, ao ser baleado mortalmente a norte de Pretória, na África do Sul, em abril de 1983. Era na altura secretário-geral da Renamo e ainda não se tinha ouvido falar de Afonso Dhlakama. Provocação — Entre 1970 e 1974 vigoraram acordos secretos entre Portugal e os regimes brancos da África do Sul e da Rodésia, designados como “Exercício Alcora”. Era uma aliança não formalizada abertamente para combater os movimentos de guerrilha e que punha o Estado português numa posição difícil: por um lado precisava do apoio militar, logístico e financeiro desses vizinhos; por outro, a associação pública a regimes de apartheid, não só era diplomaticamente incómoda como punha em causa a pretendida multirracialidade das então chamadas províncias ultramarinas. A fação mais radical das autoridades militares e políticas da África do Sul pretendia um maior envolvimento português contra a Tanzânia, visando eventualmente o derrube do regime esquerdista de Julius Nyerere e a sua substituição por um governo fantoche. Era algo que um legalista como Marcello Caetano nunca avalizaria. A menos que uma ação sangrenta contra interesses portugueses, por exemplo um navio de carga, o pudesse fazer mudar de ideias... Na África do Sul de então, os serviços secretos, a famigerada Boss, dirigidos pelo general bóer Lang Hendrik, eram um estado dentro do Estado e possuíam um longo braço armado, o Z-Squad, capaz de fazer todo o tipo de operações encobertas, mais ou menos sangrentas sem quaisquer estados de alma. Esta hipótese explicaria o papel dúbio do “Esso Port Dickson” e o desaparecimento da tripulação do “Angoche”, nesta hipótese sumariamente liquidada por profissionais treinados em não deixar vestígios. Tudo isto também tem lógica à luz do posterior papel tortuoso do regime pária da África do Sul, pronto a, se necessário fosse, deixar cair Moçambique ou a própria Rodésia para se manter à tona. Contudo, as fontes, documentos e testemunhos que o poderiam provar ficaram enterrados para sempre na comissão de verdade e reconciliação criada por Mandela em 1994 para assegurar uma transição pacífica do apartheid para a Nação Arco-Íris. Prisioneiros — A sorte dos sobreviventes do “Angoche”, se é que os houve, é o elo fraco de algumas das tentativas de explicação dos acontecimentos. Estávamos nos anos 70 e, tal como os sequestradores de aviões e outros grupos armados bem sabiam e melhor praticavam, a melhor operação de relações públicas desses tempos era a exibição pública de reféns e a exigência de resgates, libertações de prisioneiros, etc. Nestas circunstâncias não se percebe por que razão a Frelimo ou o Governo da Tanzânia perderiam a oportunidade de fazer chicana política com o caso “Angoche”. Mais tarde, no quadro da normalização das relações entre Maputo e Lisboa, expressas por exemplo nos encontros entre os Presidentes Ramalho Eanes e Samora Machel, que melhor oportunidade haveria para enterrar de vez o caso “Angoche” que a libertação de eventuais sobreviventes ou, no mínimo, a indicação do local onde as vítimas tivessem sido sepultadas? Carlos Matos Gomes, oficial durante a guerra colonial e autor de diversos livros sobre este conflito e a quem adiante voltaremos, sublinha que houve ao longo da guerra alguma tradição de trocas de prisioneiros entre as forças portuguesas e a guerrilha, com intermediação da Cruz Vermelha ou do Crescente Vermelho. Cita a propósito uma carta enviada por Amílcar Cabral à família de um soldado luso morto na Guiné, informando-a de que, sabendo tratar-se de um católico, tinham sido feitas diligências para um padre acompanhar a cerimónia fúnebre. Logo, por que razão nada de parecido aconteceu no caso do “Angoche”? Carlos Matos Gomes que, como oficial dos Comandos, participou na Operação Nó Górdio, delineada em 1970 por Kaúlza de Arriaga para impor uma derrota decisiva à Frelimo (coisa que não só não acontecerá como terá o efeito perverso de deslocar o teatro de operações mais para sul), conheceu bem Moçambique e algumas das figuras atrás referidas. Em declarações ao Expresso, Matos Gomes disse que, sendo autor juntamente com o seu camarada Aniceto Afonso, de diversos livros sobre a guerra colonial, uma das hipóteses teria sido tratar a esse nível o caso “Angoche”. Contudo, revestindo-se este de tanto mistério e tanta situação inverosímil, preferiu tratá-lo num registo de ficção, escrevendo (mais) um romance com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz. 

OS “DOIDOS DO IMPÉRIO”

 Foi assim que surgiu “Angoche, os Fantasmas do Império” (Porto Editora, maio de 2021). A personagem central é um oficial dos serviços de informações navais, cuja vida vai ser abalada pelo caso do cargueiro. Ao tentar investigar a verdade, vai chocar-se com aquilo a que o autor chama a confraria dos “doidos do império”. Ou seja, aqueles que, não tendo aceitado “a existência do movimento da História”, se tornaram “heróis do absurdo e também longa manus — assim designavam os romanos os executores de ordens, incluindo as de cometer crimes premeditados por outros, meros instrumentos”. Numa narrativa por onde passam personagens ficcionais mas também figuras bem conhecidas, de Jorge Jardim a Orlando Cristina e de Arantes e Oliveira a Kaúlza de Arriaga, alguns dos “doidos do império” têm nome. É o caso do comandante Alpoim Calvão, promotor do raide de novembro de 1970 a Conacri (Operação Mar Verde) e associado depois do 25 de Abril a formações armadas de extrema-direita como o ELP; ou do inspetor da PIDE Casimiro Monteiro deslocado para Moçambique após o assassínio em 1965 de Humberto Delgado e Arajaryr Campos perto de Badajoz (seria condenado à revelia pelo crime em Portugal e Espanha e morreria na África do Sul em 1983). Casimiro é ainda suspeito de envolvimento no atentado bombista que, em 1969, matou Eduardo Mondlane, primeiro líder da Frelimo. Nem o Z-Squad nem os “doidos do império” — narra o romance — terão sido estranhos ao drama do “Angoche”, apanhado nas engrenagens de uma maquinação infernal e cujos tripulantes tiveram o azar de estar no sítio errado à hora errada. Mas, como diz o comandante Dionísio, protagonista do romance, se todos os povos “convivem com lembranças proibidas, com factos indizíveis ou vergonhosos e superam-nos, temos de os superar também. (...) Mas não silenciando-os, ou pior, glorificando-os. A glória das pátrias ergue-se com justiça!”.

- RUI CARDOSO jornalista do EXPRESSO

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