sábado, 22 de novembro de 2025

Os EUA sempre tiveram o melhor e o pior que há no mundo.

A voz ausente das vítimas

Jamal Khashoggi

 No dia 2 de outubro de 2018, o cidadão saudita e jornalista Jamal Khashoggi, com entrevista previamente marcada pelos serviços, entrou no consulado do Reino da Arábia Saudita em Istambul, para obter os documentos de que necessitava para celebrar o seu casamento com a sua noiva Hatice Cengiz. Já tinham comprado um apartamento em comum e acordado que a cerimónia seria feita no registo civil. Nessa mesma tarde, iriam comprar eletrodomésticos e jantar com amigos. Hatice ficou à porta do consulado à espera do seu noivo, mas Khashoggi, brutalmente assassinado e desmembrado por funcionários sauditas no interior do consulado, nunca regressaria.” O relatório, de 19 de Junho de 2019, da autoria de Agnès Callamard, relatora especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, é de uma enorme violência, relatando de uma forma pormenorizada como o Estado saudita organizou este bárbaro assassínio, tendo os 15 agentes diretamente envolvidos no assassinato e profanação do cadáver de Kashoggi, em quatro dias, viajado entre Riad e Istambul, em diversos aviões ligados ao Estado saudita, para prepararem a cilada e assassínio do jornalista. Uma complexa operação exigindo uma intervenção ativa de altos responsáveis do Estado saudita e absolutamente impensável sem a vontade do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman (M.B.S.). O que, de resto, o gabinete do diretor da Inteligência Nacional dos EUA aÆrmou explicitamente, em 11 de fevereiro de 2021: “Concluímos que o príncipe (...) Mohammed bin Salman, aprovou uma operação em Istambul, na Turquia, destinada a capturar ou matar o jornalista saudita Jamal Khashoggi.” Jamal Khashoggi foi a voz ausente da vítima na pantomina trágica que Donald Trump montou na Casa Branca em honra do assassino saudita, em que, no total amoralismo e desprezo pela verdade que são a sua marca de água, afirmou que Khashoggi era “extremamente controverso” (a ponto de dever ser serrado num consulado saudita?) e que “ele [M.B.S.] não sabia nada sobre isso, e podemos deixar o assunto assim!”. O papel interpretado por Cristiano Ronaldo nesta farsa foi, no mínimo, muito triste. Como afirmou um responsável da Dawn, uma organização sem fins lucrativos que apoia a democracia e os direitos humanos no Médio Oriente e Norte de África, “o Presidente Trump tem o sangue de Jamal Khashoggi nas mãos (...). Ao defender M.B.S. e ao mentir sobre as conclusões da comunidade de inteligência,

Trump tornou-se cúmplice de todas as execuções e prisões que M.B.S. ordenou desde então”. A outra vítima cuja voz esteve ausente esta semana, numa farsa orquestrada por Trump à volta da divulgação dos ficheiros de Jeffrey Epstein, foi Virginia Giuffre, uma das principais acusadoras de Epstein, que se suicidou com 41 anos de idade no passado dia 25 de Abril. Em 2019, Virginia divulgou publicamente que Epstein a tinha traficado e forçado a ter relações sexuais com os membros de uma rede de tráfico sexual de menores, incluindo o príncipe Andrew, quando ela tinha 17 anos. No seu livro póstumo, Nobody’s Girl, publicado no passado mês de Outubro e que o The Guardian caracterizou como “uma revelação devastadora sobre poder, corrupção e abuso”, Virgínia relata diversos episódios dos abusos sexuais e da violência a que foi submetida, ao longo da sua vida, pelo “casal” Jeffrey Epstein e Ghislaine Maxwell, nomeadamente, as relações sexuais, quando tinha 17 anos, que foi obrigada a ter com o príncipe Andrew e que este procurou negar, mas que uma fotografia — já icónica — em que aparece junto da jovem, não permitiu. “Nos meus anos com eles, emprestaram-me a dezenas de pessoas ricas e poderosas. Eu era habitualmente usada e humilhada — e, em alguns casos, sufocada, espancada e ensanguentada. Acreditava que poderia morrer como uma escrava sexual...” Virginia Giuffre foi a voz ausente da vítima agora que o sinistro Presidente dos EUA se viu obrigado a ordenar a divulgação pública dos ficheiros de Epstein em poder do Departamento de Justiça. Como sempre, teve de montar uma pantomina, dando instruções aos congressistas republicanos para aprovarem essa divulgação como se sempre tivesse estado de acordo, quando se opusera sistematicamente à divulgação. Este Presidente norte-americano dá-se melhor com criminosos do que com pessoas de bem e, ainda menos, com vítimas como Virginia Giuffre. Ghislaine Maxwell, condenada, em Junho de 2022, a 20 anos de prisão pelo seu papel no esquema de exploração sexual e abuso de menores que ao longo de uma década manteve com Jeffrey Epstein, será seguramente, e a curto prazo, agraciada por Trump, que já enviou um emissário à prisão para conferenciar... Os EUA sempre tiveram o melhor e o pior que há no mundo. Atualmente esmeram-se em brindar-nos, ao mais alto nível, com o que, em termos morais e éticos, há de mais baixo…
Jornal Público


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