quarta-feira, 16 de junho de 2021

Liberdade de expressão é questionar o inquestionável defende o jornalista Pedro Norton

 «O paradoxo do silenciamento»


Por Pedro Norton

A cultura de cancelamento é um perigoso regresso ao obscurantismo dogmático

 «Que a chamada “cultura de cancelamento” está a fazer o seu caminho em Portugal parece-me uma evidência. Basta frequentar – mesmo que como mero observador – as redes sociais para perceber a velocidade e a eficácia com que os novos censores de serviço reagem ao uso de qualquer palavra do seu índex (e sublinho “palavra” e não “ideia” porquanto as reações são, na maior parte das vezes, preguiçosas e pavlovianas, bastando-se com excertos e dispensando a leitura ou a análise mais trabalhosa de raciocínios ou de teses). Que ainda a procissão vai no adro é outra verdade de La Palice. Basta estar minimamente atento ao ambiente sufocante que se vive na sociedade e, em particular, na academia americana, para se perceber o que aí vem. Finalmente, que tudo isto resulta na deliberada generalização da autocensura, num enorme empobrecimento do discurso público, numa menorização do debate de ideias e, por consequência, na fragilização de uma democracia substantiva, eis o que devia ser não menos cristalino para qualquer alma menos embrutecida.   Em bom rigor, todas estas constatações deveriam ser já bastantes para que o fenómeno fosse olhado com seriedade por todos quantos se reveem na democracia liberal de que somos herdeiros e de que deveríamos ser curadores. Mas há mais um argumento que normalmente escapa a este tipo de discussão e que vale a pena enunciar. E o argumento, paradoxal, é este: sem uma ampla e quase irrestrita liberdade de expressão, absolutamente incompatível com as fogueiras censórias da cultura de cancelamento, muitas das ideias em nome das quais alegadamente se fazem estes modernos autos de fé jamais teriam sido discutidas e muito menos teriam triunfado nas nossas sociedades. Porque, embora justíssimas e hoje felizmente pacificamente aceites, a verdade é que muitas delas eram, para os padrões da época, absolutamente ofensivas e ameaçadoras para a moral vigente. Como bem lembra Mick Hume no seu Direito a Ofender, que já aqui citei, “o problema é que exigir o direito a não ser ofendido é negar a toda a gente a liberdade de ofender a ética e as opiniões aceites do tempo em que se vive. E, sem essa subversiva liberdade de questionar o inquestionável – o direito a ofender –, a sociedade talvez nunca tivesse sequer chegado ao ponto em que os direitos antirracistas e das lésbicas e dos gays, bissexuais e transgénero se tornaram aceitáveis no debate público”. O mesmo é dizer: nenhum destes direitos teria resistido a uma cultura de cancelamento erigida com base nos padrões morais vigentes à época. 
 Quis custodiet ipsos custodes? Quem guarda os guardiães? O dilema é tão velho como a História. As sociedades abertas, sem uma moral de Estado, sem um índex de palavras proibidas, sem autos de fé nem inquisições, sem lápis azuis nem linchamentos nas redes sociais, promovendo o debate livre de ideias como o único mecanismo aceitável para uma sempre imperfeita aproximação à Verdade, são a melhor resposta que encontrámos para lhe dar resposta. Seria bom que não regredíssemos nesta importante conquista da Liberdade. Mas a cultura de cancelamento é isso mesmo. Um perigoso regresso ao obscurantismo dogmático. Vale a pena levá-la a sério. Vale a pena combatê-la.»

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