O Estado moçambicano “está a mobilizar-se para condicionar a liberdade de imprensa”
[«Nomeadamente, fala numa “espécie de judicialização da actividade da imprensa”, referindo-se à forma como os tribunais são usados para intimidar os jornalistas.»]
Matias Guente, editor
executivo do Canal de
Moçambique recebeu um
dos prémios da liberdade
de imprensa do CPJ
É um dos quatro “corajosos” jornalistas a quem o Comité para a Protecção
dos Jornalistas (CPJ) entregou esta
madrugada o prémio da liberdade de
imprensa de 2021. Matias Guente,
editor executivo do jornal Canal de
Moçambique, não esteve em Nova
Iorque para receber o galardão —
devido às restrições impostas pela
pandemia —, mas tinha previsto discursar desde Maputo como a situação
da liberdade de imprensa se vem
deteriorando em Moçambique.
Guente e os outros três premiados,
a bielorrussa Katsiaryna Barysevich, a guatemalteca Anastasia Mejía e o
birmanês Aye Chan Naing, sabem o
que é sentir na pele as consequências
do seu jornalismo.
O jornalista
moçambicano escapou a um rapto
em 2019, mas não se livrou de ser
agredido, e viu a redacção do jornal
ser incendiada por desconhecidos em
2020 — processo que acabou “arquivado por falta de elementos”.
“Este prémio representa duas coisas”, afirma ao PÚBLICO, “a primeira,
que é fundamental, é que o jornalismo moçambicano é visto lá fora” e
que, mesmo “com todas as dificuldades que enfrenta”, é “um jornalismo
que tem sido feito com um padrão
internacional mínimo”. Depois,
“significa que o mundo não está alheio
às vicissitudes que o jornalismo e a
liberdade de imprensa têm passado
aqui em Moçambique”.
Entre 2019 e
2020, desceu quatro lugares na lista
mundial da liberdade de imprensa. No seu discurso, Matias Guente
referiu-se ao “momento que Moçambique atravessa” e à “questão da liberdade de imprensa”, bem como ao “significado” que o prémio tem para
ele, mas, acima de tudo, da “possibilidade de inspiração” que tem “para
os outros jovens jornalistas, tendo em
conta o ambiente que se vive aqui em
Moçambique”, um ambiente de “intimidação da imprensa”.
Nomeadamente, fala numa “espécie de judicialização da actividade da
imprensa”, referindo-se à forma
como os tribunais são usados para
intimidar os jornalistas.
Qualquer matéria por mais fundamentada que esteja pode ir parar à
barra dos tribunais, mesmo quando
não cumpre “o mínimo critério jurídico”. Aconteceu a Guente, quando
teve de responder na Procuradoria
de Maputo por alegada violação do
segredo de Estado por ter escrito
sobre contratos de segurança assinados em 2019 entre o Governo e a Anadarko, a empresa que na altura tinha
a concessão do gás natural em Cabo Delgado, no Norte de Moçambique.
“Curiosamente”, afirma o jornalista, “o processo de violação de segredo
de Estado foi arquivado depois do
incêndio na redacção”.
Esse crime não podia ter sido “assumido como um crime comum porque
é um crime que visa valores fundamentais”, trata-se de “um crime contra a democracia”. O facto de o incêndio na redacção ter sido assumido
como “delito comum” e arquivado é,
para Guente, “uma espécie de carta
branca que foi passada aos perpetradores desses actos”.
Guente diz que os tempos que aí
vêm não auguram nada de bom para
o jornalismo moçambicano se a nova
lei de imprensa for aprovada. “Aqueles documentos foram concebidos
numa esquadra de polícia” e mostram
que “o Estado está a mobilizar-se do
ponto de vista legislativo para condicionar a liberdade de imprensa.”-Jornal Público
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