Daniel Pires Bocage, o heterodoxo
Na Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
Daniel Pires, conhecido investigador da
cultura portuguesa, publicou, entre 2019 e
2023, dois livros absolutamente essenciais para a compreensão da vida e obra de
Bocage: Bocage ou o Elogio da Inquietude
(2019), a mais completa biografia do autor
sadino, e O Essencial sobre Manuel Maria
de Barbosa du Bocage (2023), para além
de, em 2015, ter publicado no Centro de Estudos Bocageanos, de que é
seu diretor, Bocage e o Livro na Época do Iluminismo. Neste momento, dirige a edição da Obra Completa de Bocage na Imprensa Nacional
– Casa da Moeda.
Na já longa interpretação-reconstrução
da obra de Bocage, não temos dúvida de
que estes três livros, bem como a edição da sua obra completa, de Desidério
Leão a Inocêncio Francisco da Silva, com
a publicação “clandestina” das Poesias
Eróticas, Burlescas e Satíricas, no século
XIX, a Teófilo Braga, Hernâni Cidade, no
século XX, e ao brasileiro Adelto Gonçalves,
no século XXI, constituirão um verdadeiro
momentum histórico. É um novo Bocage
que nos surge, menos o ridente e sarcástico, e mais o angustiado e sofredor, aquele
que, por mérito e destino próprios, esteve
sempre virado contra o conformismo social,
afinal, imagem universal e verdadeira do
poeta, de Camões a Al Berto.
A vida conflituosa e destemperada de
Manuel Maria du Bocage foi por si próprio
comparada à de Camões (“Camões, grande
Camões, quão semelhante / Acho teu fado
ao meu, quando os cotejo…”). Peregrino
do Império, Bocage, como Camões, parte
para Goa em 1786 como guarda-marinha
da Armada Real, logo depois para Damão, onde deserta, porventura
por amores adversos, arribando a Cantão e a Macau, donde regressa
a Lisboa em 1790. Neste mesmo ano, ingressa na “Nova Arcádia”, assembleia literária substituta da “Arcádia Lusitânia”, usando o pseudónimo de “Elmano Sadino”, da qual, por conflito com outros árcades “a
corja vil, aduladora, insana”,
nomeadamente José Agostinho
de Macedo, é expulso quatro
anos depois. Bocage passa
a frequentar a “Sociedade
da Rosa”, de D. Leonor de
Almeida, marquesa de Alorna,
até ser mandado prender, em
1797, pelo Intendente-Geral da
polícia, Pina Manique, acusado
de escrever “papéis sediciosos,
ímpios” e suspeito de livre-
-pensamento: Bocage teria
aplaudido a vitória de Napoleão
sobre os Estados Pontifícios,
crime de lesa-pátria em tempo
de “Viradeira” da D. Maria I.
Penitenciando o castigo com os
padres oratorianos, liberto em
1799, publica este ano Rimas
II e, em 1804, Rimas III, tendo publicado Rimas I em 1789, vivendo de traduções do latim e do francês
até ao ano da sua morte, assim fracamente se sustentando e a sua irmã.
CONSIDERADO POR JACINTO DO PRADO COELHO o mais importante poeta português do século XVIII, três características principais
singularizam a vida e poesia de Bocage:
1. – a de ser considerado um
“escritor maldito”, de vida desembaraçada, frequentadora de boticas,
tabernas e cafés, (avessa a costumes “senhoriais” ou fidalgos), onde o
verso repentista satírico fazia parelha com a briga e o impropério e o
insulto, que o tornará popularmente famoso no anedotário lisboeta,
expressão social do labéu de “escritor maldito” incapaz, por natureza
poética, de se integrar nas estruturas sociais normalizantes, sujeito
de paixões impetuosas, descontroladas, que tanto causam admiração quanto se tornam objeto de repulsa.
Neste sentido, o poema satírico e jocoso
de Bocage vincula-se à tradição medieval
portuguesa da cantiga de escárnio e maldizer e ao auto vicentino desmascarador da
vida cortesã. Já com uma visão romântica
do mundo, Bocage ergue a sua obra contra
as convenções sociais, expandindo um
individualismo de raiz, tendo por modelo
a vida de outros grandes poetas, como
Camões. Mesmo quando o poeta visa
domesticar os seus ímpetos conflituosos,
tem consciência de ser incapaz: o Fado, o
Destino, marcara-lhe a existência, votando-o ao desassombro de atitudes. Pertencente à “Nova Arcádia”, Bocage
faz abundante uso das regras poéticas
clássicas, utilizando uma prosódia racional
perfeita, possuindo a conceção da arte
poética como imitação estética da natureza, a utilização generalizada do panteão
da mitologia greco-romana, a aderência à
alegoria e à personificação grandiloquentes
como figuras estilísticas correntes e a prevalência de ideias e sentimentos pessoais com rarificação de acontecimentos sociais do quotidiano realista, que os comenta alegorizando-
-os.
É o legado da tradição da arcádia na sua poesia. Porém, como escritor pré-romântico, Bocage, mais do que todos os outros poetas coevos, transfigura a sua poesia num longo confessionário do eu individual, um eu mais existencial do que racional, mais vivencial e íntimo do que universal, um eu mais sentimental do que abstrato. A sua poesia circunda as mais comoventes sensações interiores, a todas abrigando como se, mais do que viver no mundo, Bocage vivesse numa casa chamada poesia, forçando a identificação exclusiva entre esta e a vida, renegando a restante existência. A poesia torna-se, assim, uma casa em que o eu narra as paixões fastas e nefastas da existência emotiva numa representação cénica cujo fito residem em última instância, na simultânea celebração sacralizante da vida e do eu, mesmo quando ambos são dominados pela desventura, que mais reforça esta dimensão romântica da vida. Eis toda a dor presente na sua poesia, sobretudo nos sonetos, que Bocage cultiva com a mestria de Camões e de Antero de Quental: saber-se maximamente poeta e, por esse motivo, possuir-se uma existência desditosa. Poeta individualista em tempo de negação poética do eu, não raro hiperbólico do eu sentimental, a sua obra tanto se aproxima quanto anuncia o romantismo. Finalmente, idêntica expressão do eu, a poesia de Bocage evidencia em matéria amorosa um erotismo lânguido, cuja sensualidade, dissolvente da razão, anuncia do mesmo modo o romantismo. Dois livros absolutamente essenciais para se conhecer a vida e a obra de Elmano, seu anagrama na Nova Arcádia.- (JL)
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