sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Margarida Davim escreve no blog Pravda

 

Um defeito de pele que está nos nossos olhos
 Somos parte de uma engrenagem. Muitos dos nossos movimentos nasceram muito antes de nós. É preciso um esforço enorme para travar essa máquina e perceber como nos impele a triturar os outros.

  «Nós nascemos com uma deficiência”, disse-lhe o pai. “A deficiência é a nossa cor”. E, por isso, explicou, “temos de trabalhar mais, de nos esforçarmos mais”. Cresceu com essa certeza e com a marca de ser “do bairro”, de vir das barracas. Há demasiadas crianças a aprender cedo essa lição. A de que nascem com um defeito colado à pele, um problema que se manifesta nos lábios grossos, nos narizes achatados, nos cabelos crespos. Olham-nos de lado, as pessoas mudam de passeio quando se aproximam em ruas escuras, os seguranças perseguem-nos instintivamente nas lojas, as mulheres agarram-se às malas quando os veem. São suspeitos.
 Demorei demasiado tempo a percebê-lo. Para lá chegar, foram precisos muitos relatos como este sobre o que uma rapariga ouviu do pai, ainda criança. Histórias como esta esbarraram demasiadas vezes na minha incredulidade. Seria possível? Somos cegos ao que não sentimos. Para quem nasce branco, o racismo pode ser invisível. Porque o racismo é uma coisa que se sente na pele. Crava-nos as unhas sem deixar marcas que se possam ver.

  A discriminação faz-se num jogo de sombras. As coisas não são evidentes. O mundo tem demasiados matizes de cinzento. E das outras cores todas. “Não existe cor de pele”, corrijo pela enésima vez, enquanto o meu filho mais novo me pede um lápis bege. Uma e outra vez, é preciso corrigir o que nos parece natural, mas não é. Houve um momento em que aprendemos aquilo que repetimos sem pensar»

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