sexta-feira, 4 de junho de 2021

A lei da rolha já chegou à internet a luta titânica pela liberdade de expressão num pais que sofreu 300 anos de Inquisição

 


«Sem qualquer dúvida, o artigo 6.º da Carta Portuguesa abre uma nova frente de combate para a liberdade de expressão no nosso país.»

  «A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, embora não seja o regresso da Inquisição ou da censura, é uma perigosa deriva legal no campo da liberdade de expressão, abrindo o caminho para injustificadas limitações à mesma, até porque alarga as competências fiscalizadoras e repressivas da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) que, já de si, se pode considerar uma lamentável deriva neste campo.

 A lei com este pomposo nome, para além de disposições louváveis ou inócuas, entra no campo minado da chamada desinformação (ex-fake news) com uma grande displicência. Nos termos do n.º 2 do já famigerado artigo 6.º, com a epígrafe “Direito à proteção contra a desinformação”, passa a ser considerada desinformação “toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos”. 

 Na verdade, esta genérica formulação, que parece englobar afirmações de factos e opiniões, conjugada com a atribuição à ERC de competência para apreciar queixas e sancionar os órgãos de comunicação social que publiquem esta “desinformação”, na senda do estudo por esta produzido A Desinformação — Contexto Europeu e Nacional, cuja leitura se recomenda, abre o caminho às mais variadas aberrações, permitindo interpretações gravemente lesivas da liberdade de expressão.

 Parece desnecessário lembrar que a ERC é uma instituição partidarizada e/ou governamentalizada que, nos casos politicamente relevantes, se tem revelado mais regulada do que reguladora, sendo habitualmente ocupada por comissários políticos. É certo que há recurso das decisões da ERC para os tribunais administrativos, mas também aí este novo conceito e instrumento legal da “desinformação” pode percorrer caminhos ínvios, apesar de este artigo 6.º não ter revogado a nossa Constituição nem a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), pelo que sempre terá de ser interpretada e aplicada à luz desta legislação hierarquicamente superior. Por outro lado, esta atribuição de competências sancionatórias à ERC quanto à prática de “desinformação” não será de muito fácil aplicação, já que a esta lei não parece criar novos crimes nem contra-ordenações e a lei da ERC só prevê sanções em casos de incumprimento das suas decisões relativas ao direito de resposta e quejandos, das obrigações inerentes ao licenciamento ou, ainda, da rectificação de sondagens ou de inquéritos de opinião. Acrescente-se, ainda, neste aspecto, que a ERC não tem competência para interferir nas redes sociais, pelo que esta lei não terá qualquer utilidade para, como foi aÆrmado publicamente pelo líder da oposição, combater “a desinformação, os insultos e a difamação que existem nas redes sociais e que não podem continuar”. 

 Outra disposição, deste mesmo artigo 6.º, que levanta naturais desconfianças é a que prevê a possibilidade de o Estado “apoiar a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados” e “incentivar a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”.Nada impede, antes se justifica, que o mundo da comunicação social se organize para desenvolver, implementar e divulgar indicadores de fiabilidade do jornalismo, como é o caso referido pelo provedor dos Leitores da Journalism Trust Initiative (JTI), operada pela Repórteres Sem Fronteiras (RSF) ou, a nível nacional, de projectos como o Polígrafo, mas a entrada do Estado neste tipo de iniciativas tem de ser tratada “com pinças”. Apesar de tais indicadores não terem qualquer valor vinculativo ou legal, limitando-se a ser opiniões de instituições que os produzem e que nos podem ajudar a navegar no cada vez mais complexo mundo da informação, a intervenção do Estado sob a forma de apoios pode, por exemplo, gerar inaceitáveis distorções à concorrência.

 Sem qualquer dúvida, o artigo 6.º da Carta Portuguesa, em particular com a intervenção repressiva da ERC, abre uma nova frente de combate para a liberdade de expressão no nosso país.»




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