«O paradoxo do silenciamento»
A cultura de cancelamento é um perigoso regresso ao obscurantismo dogmático
«Que a chamada “cultura de
cancelamento” está a fazer
o seu caminho em Portugal
parece-me uma evidência.
Basta frequentar – mesmo
que como mero observador
– as redes sociais para perceber a velocidade e a eficácia com que os novos censores de
serviço reagem ao uso de qualquer
palavra do seu índex (e sublinho
“palavra” e não “ideia” porquanto
as reações são, na maior parte das
vezes, preguiçosas e pavlovianas,
bastando-se com excertos e dispensando a leitura ou a análise mais
trabalhosa de raciocínios ou de
teses). Que ainda a procissão vai no
adro é outra verdade de La Palice.
Basta estar minimamente atento ao
ambiente sufocante que se vive na
sociedade e, em particular, na academia americana,
para se perceber o
que aí vem. Finalmente, que tudo isto
resulta na deliberada generalização da
autocensura, num
enorme empobrecimento do discurso
público, numa menorização do debate
de ideias e, por consequência, na
fragilização de uma democracia
substantiva, eis o que devia ser não
menos cristalino para qualquer
alma menos embrutecida. Em bom rigor, todas estas constatações deveriam ser já bastantes
para que o fenómeno fosse olhado
com seriedade por todos quantos se
reveem na democracia liberal de que
somos herdeiros e de que deveríamos ser curadores. Mas há mais
um argumento que normalmente
escapa a este tipo de discussão e
que vale a pena enunciar. E o argumento, paradoxal, é este: sem uma
ampla e quase irrestrita liberdade de
expressão, absolutamente incompatível com as fogueiras censórias da
cultura de cancelamento, muitas das
ideias em nome das quais alegadamente se fazem estes modernos
autos de fé jamais teriam sido discutidas e muito menos teriam triunfado nas nossas sociedades. Porque,
embora justíssimas e hoje felizmente pacificamente aceites, a verdade
é que muitas delas eram, para os
padrões da época, absolutamente
ofensivas e ameaçadoras para a moral vigente. Como bem lembra Mick
Hume no seu Direito a Ofender,
que já aqui citei, “o problema é que
exigir o direito a não ser ofendido é
negar a toda a gente a liberdade de
ofender a ética e as opiniões aceites
do tempo em que se vive. E, sem
essa subversiva liberdade de questionar o inquestionável – o direito a
ofender –, a sociedade talvez nunca
tivesse sequer chegado ao ponto
em que os direitos antirracistas e
das lésbicas e dos gays, bissexuais
e transgénero se
tornaram aceitáveis
no debate público”.
O mesmo é dizer: nenhum destes direitos
teria resistido a uma
cultura de cancelamento erigida com
base nos padrões
morais vigentes à
época.
Quis custodiet ipsos custodes?
Quem guarda os guardiães? O dilema é tão velho como a História.
As sociedades abertas, sem uma
moral de Estado, sem um índex
de palavras proibidas, sem autos
de fé nem inquisições, sem lápis
azuis nem linchamentos nas redes
sociais, promovendo o debate livre
de ideias como o único mecanismo
aceitável para uma sempre imperfeita aproximação à Verdade, são
a melhor resposta que encontrámos para lhe dar resposta. Seria
bom que não regredíssemos nesta
importante conquista da Liberdade.
Mas a cultura de cancelamento é
isso mesmo. Um perigoso regresso
ao obscurantismo dogmático. Vale
a pena levá-la a sério. Vale a pena
combatê-la.»
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