Ainda a conversa sobre o seu livro Nunca Dancei num Coreto não tinha começado e Maria Filomena Mónica já revelava que agora é vegetariana. E revelou muito mais: de que música gostava dos Beatles - que assistiu em direto quando vivia em Londres -, o que acha do físico de Mick Jagger, o que pensa dos hippies que iam fazer compras à lendária Carnaby Street, que fuminhos inalou, que garrafa tinha debaixo da cama, que homens seduziu e quem a seduziu, que filmes a fazem chorar, tudo o que a marcou, bem como a única coisa que lamenta não ter feito na vida.
Nunca Dancei num Coreto (Editora Relógio d'Água) é um título confessional, que surgiu no dia em que o médico lhe anunciou um cancro. Um volume que reúne muito das suas publicações jornalísticas desde 2011 e pelo qual passa tudo o que pensa em mais de 350 páginas que fogem frequentemente ao registo solene, mesmo que dê logo um abanão ao leitor nas duas primeiras páginas.
O prefácio é dos textos mais violentos que escreveu. Cito só uma passagem: "Não é cómodo escrever entre vómitos"...
Nunca tinha pensado que fosse violento... Se o leitor apanha logo com isto, se calhar nem lê o livro e não era o que eu queria que acontecesse. Fiz o prefácio muito rapidamente e hoje sei que se estou viva e com alguma energia vem do facto de não ter renunciado a escrever. Sobretudo jornalismo, que tem regras e periodicidade que, por muito mal que estivesse, sentia-me obrigada a respeitar com o que me tinha comprometido. Deve ter sido um dos legados da minha mãe, que era muito autoritária e obrigava-me a cumprir muitas regras.
Mas conseguia escrever durante os tratamentos?
Depois de saber que tinha o cancro estive dois meses sem escrever para o jornal e falhei quatro crónicas. Depois disse: não quero estar na cama a olhar para o teto. Durante a primeira quimioterapia, a que foi mais violenta, chegava a casa num estado lamentável depois de seis horas ligada a uns cateteres e com uns químicos que são veneno. Portanto, vomitava imenso e no intervalo dos vómitos escrevia... No entanto, não pensei que o prefácio fosse violento, foi o que me saiu - digo sempre o que penso.
Escolhe para título a crónica no dia em que soube que tinha a doença, situação que o leitor não imagina!
Foi o dia em que soube de uma coisa de que todos temos conhecimento inconscientemente: não era imortal e havia coisas na minha vida que eram agradáveis e outras não. Foi uma altura de balanço e, sobretudo, de perceção sobre o que tinha ficado por explorar e que já não tinha muitos anos de vida.
E o que a fez pensar isso?
Ver no Jardim da Estrela um casal a dançar no coreto. Foi comovente e alegre vê-los, porque eram jovens e bonitos, a música era agradável e o jardim estava belo. Eu nem estava particularmente triste, antes nostálgica, e pensei: o que é que deixei de fazer na vida? Houve coisas que senti pena de não ter feito na altura própria, como isso de dançar no coreto. O meu avô tinha uma quintarola para os lados de Tomar, onde passávamos o mês de agosto e uma parte de setembro, onde havia um coreto mesmo à frente de casa. Uma banda tocava frequentemente, vestiam-me com bibes de renda inglesa e tinha laçarotes no cabelo, e a minha mãe não me deixava dançar no coreto. Dizia: "Não te vais misturar com aqueles rapagões da aldeia, que são filhos de uns camponeses horrorosos. Não quero que te dês com eles." Eu olhava para o coreto e via os meninos da aldeia a divertirem-se uns com os outros, desde a varanda e com a minha irmã ao lado. Ela não tinha os mesmos desejos de aventuras que eu! Ao ver aquele par a dançar no coreto do Jardim da Estrela, ao olhar para a alegria daquelas pessoas a fazerem o que eu não podia, lembrei-me desse título. Principalmente porque não o pudera fazer em criança e agora, devido à idade, jamais iria dançar num coreto. Há coisas que ficam mesmo para trás.Refere numa das crónicas que se sente como o ator Burt Lancaster no filme O Leopardo a olhar para a Angelica e que se percebem as saudades dos dias da infância e as memórias da juventude. Contudo, acrescenta um pensamento inesperado: "E a recordação da sedução amorosa"... Porque escreveu isto?
Porque há muitos anos que já não seduzo ninguém. Houve alguns momentos na minha vida em que, mais do que ser eu a seduzir homens, eram eles que tentavam seduzir-me. Era um jogo agradável na maior parte dos casos, mas nos últimos anos não quero seduzir ninguém, e espero que o meu marido não tenha seduzido outras pessoas. Acho que estou bem casada, afinal tive 17 anos de namoro para ver se desta vez acertava. Já experimentei três tipos de casamento: pela Igreja, quando era menor e porque a minha mãe não toleraria um casamento pelo civil; de facto, com o Vasco [Pulido Valente], que considero um casamento, e com o António [Barreto], num casamento pelo civil. O que refleti nesse artigo era o facto de existirem coisas que ficaram irremediavelmente passadas.
Que o olhar de Burt Lancaster reflete na perfeição...
É uma parte muito bonita do filme e o Burt, não sendo um ator que admire muito, representa muito bem esse papel no baile.
Nestes tempos do Me Too,falar dessa questão de sedução entre o homem e a mulher não é muito perigoso?
[suspiro] Acho que é um movimento que tem razão de ser, mas é exagerado. Tornou-se politicamente correto e ao ficar assim irrita-me. Os homens podem ser muito violentos sobre as mulheres que os rodeiam quando estão em situação de poder, não tenho dúvida. Seja na universidade, na televisão ou em qualquer lugar. Assisti a muitos júris académicos, porque fui a primeira pessoa que se doutorou em Sociologia em Portugal - infelizmente, tinha o título extraordinário de a "decana", tinha de os presidir. O júri era composto por três pessoas e tinha ao meu lado dois homens. A conversa dos homens sempre me fascinou, pois entre si usam uma linguagem mais brutal, como se vê nas casas de banho - não é que tenha entrado em muitas casas de banho de homens, mas de vez em quando espreito. Estávamos a interrogar uma menina que era medíocre e sugeri dar-lhe um 13. Um deles pensava o mesmo, mas o outro disse logo que o seu colega estava a ser chato: "Dá-lhe um 16, não vês que eu vou para a cama com ela." Portanto, sei que o fenómeno existe, mas também que é possível dizer não e isso é o que muitas vezes as mulheres do Me Too não reconhecem. As mulheres também têm capacidade, não fisicamente, porque são mais fracas, de dizer não quero ir para a cama contigo. Estranhamente, ou não, nunca fui vítima de assédio sexual. Provavelmente por ser gelada, não sei. Será que devo ter complexos ou que sou uma infeliz?
Duvido que nunca tenha sido assediada!
Tentaram seduzir-me, mas nunca forçaram um ato sexual. Estive em Oxford em 1970, que era uma sociedade muito machista e na minha faculdade havia cerca de 90 homens e cinco ou seis raparigas e não se falava em assédio sexual, nem nenhum dos meus supervisores o tentou. Nem sequer um gesto ambíguo houve. Ou seja, ou há qualquer coisa exagerada ou terá que ver comigo. Será que os homens têm medo de mim? É verdade que quando fui para a faculdade em Portugal ninguém falava comigo no primeiro ano, exceto o José Medeiros Ferreira, que era todo galaró e atrevido. O fenómeno existe, não há dúvida, mais nas classes baixas - numa garagem ou numa fábrica existe massivamente -, contudo nas universidades a menina que vai para a cama com um professor não pode lavar dali as mãos porque - a não ser que o professor seja uma brasa de cair para o lado, mas também não há homens muito bonitos na universidade - está à espera de uma recompensa e oMe Too ignora essa questão. Há sempre a possibilidade de dizer não.
Acha que as mulheres atuais que beneficiaram das lutas pela emancipação agradecem às anteriores gerações?
Não valorizam e, pior, esquecem-se. Além de que para estas gerações mais novas os homens são muito menos importantes. Enquanto nós vivíamos em função do namorado e do casamento que íamos ter, elas estão-se um bocado nas tintas. Querem ter uma profissão que as satisfaça, viajam muitas vezes com amigas e no meio disto tudo casam-se.
Voltemos ao olhar nostálgico de Burt Lancaster. Quando foi viver para Londres estava-se no início da música pop. De quem gostava mais: dos Beatles ou dos Rolling Stones?
A minha geração pertence mais à era Beatles. O que me lembro melhor era de ouvir um grupo chamado The Doors, mais do que os Rolling Stones. No entanto, depois dos Beatles passei logo para a música clássica. Íamos de Oxford para Londres só para ir a concertos no Covent Garden, por exemplo. Em seguida, passei a gostar mais de ópera, mas desde que adoeci, curiosamente, não consigo ouvir este género. Gostava também muito de Verdi por causa da sua vitalidade e alegria, que agora chocam também com o facto de estar doente. Esta nostalgia que tenho, a que relaciono com a visão do coreto, não é depressiva, antes melancólica e casa-se muito melhor com Schubert, de quem ouço muitas sonatas e - não sendo crente - muitas vezes a Missa 490, Incarnates, que me consola bastante.
De que música dos Beatles é que gostava mais?
Não são eles que têm uma música chamada Revolution... Na altura ouvia e gostava, porque achava que era sobre uma revolução, contudo ouvindo agora a letra vejo que a mensagem era ao contrário: we don't want to make a revolution... Se algum disco neles é interessante, aponto esse.
Sabe que tem a mesma idade que o Mick Jagger...
Ele está muito bem, tem um corpo bonito e alguma graça, mas não tenho muito mais a dizer porque os Rolling Stones não me impressionavam assim tanto.
Lembra-se dos Pink Floyd?
Os Pink Floyd já são coisas do meu filho.
Até que ponto a música é importante para si?
É e foi muito importante, ao ponto de aos 24 anos ter ido para a Academia dos Amadores de Música porque queria aprender a tocar violoncelo. As freiras só davam canto coral e eu sou muito desafinada - elas só diziam ave ave, como as velhas que vão a Fátima. Em Oxford, o professor de violoncelo disse-me logo que eu não tinha ouvido: "Mude antes para piano, porque as notas já estão formadas."
Foi alguma vez a Carnaby Street comprar aquelas roupas da moda?
Sim, fui a Carnaby Street mas nunca comprei dessas roupas. Pela mesma razão que nunca me entusiasmei pelo Maio de 68. Provavelmente, pela minha trajetória de vida e por ter de trabalhar desde muito cedo porque o meu marido estava na tropa e era soldado raso - era eu que tinha de ganhar a vida para manter a casa. Comecei a trabalhar aos 19 anos e ao mesmo tempo estava na faculdade e picava o ponto no ministério. Era uma vida dura, mas não quis abdicar do curso. Aquela coisa das flores no cabelo dos hippies era uma espécie de luxo de meninos ricos. Não que fosse pobre, a minha família na altura ainda era bastante abastada, mas eu e o Carlos éramos rebeldes, tínhamos orgulho e não queríamos pedir dinheiro. Daí que o Maio de 68 e o início dos anos 1960 em Londres não me interessassem, fundamentalmente o que queria era aprender, conhecer-me melhor a mim e ao mundo.
Então, nunca foi seduzida pelas modas hippies?
Nada, até tinha um certo desprezo e achava aquilo tudo uma tontaria.
Na semana passada, o primeiro-ministro revelou que experimentou drogas. Ao menos nesses tempos de paz e amor fez como António Costa?
Nem na altura nem depois... Aliás, experimentei uma vez... Vou contar a história porque é tão estúpida que só a mim é que acontecem estas coisas. Em 1962 ainda não se fumava em Londres - só cigarros, haxixe não - e como eu vinha de uma família muito repressiva fui viver para um colégio interno de freiras em Londres. Ao fim de uma semana organizei uma greve à missa e como uma das colegas não queria participar disse-lhe que a atirava da varanda do segundo andar. Fui expulsa! O meu pai foi ver o que se passava e, como não era tão autoritário como a minha mãe, disse que podia continuar em Londres. Eu tinha feito tantos disparates em Portugal que a última coisa que queriam era ver-me de novo em Lisboa. Aluguei um quarto na periferia, muito barato, e portei-me lindamente - não havia fumos. Quando me deram a liberdade, não fiz nada de extraordinário: aprendi inglês, li Shakespeare, muito Evelyn Waugh, e o mais ligado à droga era ter debaixo da cama uma garrafinha de conhaque que tinha comprado no avião. Quando vieram os fuminhos em 1970 estava em Oxford, também não experimentei. Mesmo havendo vários alunos latino-americanos que recebiam pelo correio droga enviada pelos amigos, mas como eu tinha um enorme complexo de culpa por me ter separado e passar seis meses sem os meus filhos achava que a vida não estava para fuminhos ou diversão mas para aprender.
E a experiência com droga... Vamos saber?
Nos anos 1990 surge uma personagem muito importante da política portuguesa, que já tinha sido ministro, e com um irmão que vivia na Holanda que lhe mandava erva. Ele disse: "Não queres experimentar?" Ele era bem-apessoado, usava colete, era muito imponente, e achei que não ia aproveitar-se de mim sexualmente. Aceitei experimentar um pouco e disse-lhe enrola aí um cigarro. Ele enrolou, fumou e começou a ficar muito calmo e eu na mesma que antes, até que reparou que eu não engolia o fumo. "Não estás boa da cabeça, não engoles o fumo." Essa foi a minha única experiência com drogas de fumo. Depois habituei-me a beber um vodca gelado num copo pequeno às sete da tarde, mas fui proibida pelo médico e é um dos desgostos que tenho. Ele dizia-me: "Só um copinho de vinho branco ou tinto ao fim de semana", mas disso não gosto.
Quando se lê este livro com as suas crónicas é preciso fazer muito esforço para não se o ver como biográfico e uma espécie de continuação das suas memórias em Bilhete de Identidade. Concorda?
Sim, não o planeei desse modo mas era inevitável acontecer porque um dos tipos possíveis de crónica é fazê-la sob a forma egocêntrica e eu sou muito assim. Não sou egoísta, até dizem que sou relativamente generosa, mesmo que seja preciso baterem-me à porta porque olho demasiado para o meu umbigo e não reparo em muita coisa. Não me interessa a peripécia política, passava-me ao lado, e o que aprecio é ir contando o que gosto e não gosto. Acabei por adotar um estilo muito centrado no que ia acontecendo naquela quinzena em que escrevia.
Numa das crónicas fala de Eça de Queirós. Surpreendeu quando disse recentemente não se importar se Os Maias são ou não leitura obrigatória!
A resposta foi provocatória, mas, como penso que deve haver apenas uns 5% dos alunos que leram Os Maias de ponta a ponta - e estou a ser otimista -, considero que é de uma enorme hipocrisia da parte do Ministério da Educação, dos professores e do público em geral pensar que hoje, com toda a panóplia informática que os miúdos têm à disposição, se iriam pôr a ler um livro daquela dimensão. Não é um livro simples, é uma obra-prima tão importante na literatura mundial quanto a Madame Bovary do Flaubert ou Guerra e Paz do Tolstói. É a esse nível que coloco o romance do Eça, daí que gostasse que fosse lido. Ainda por cima, entre os professores, os alunos e a obra-prima intervêm uma série de especialistas queirosianos que fazem, consciente ou inconscientemente, que aquela obra seja uma maçada, como no meu tempo eram Os Lusíadas. Eu vi uns artigos da Isabel Pires de Lima e do Carlos Reis que falam daquilo como se fosse um peixe, uma obra que se tem de dissecar e ver onde está o narrador e o objeto narrativo. É uma cirurgia que faz que os jovens não tenham prazer na leitura. Está ligado ao facto de os exames terem perguntas totalmente absurdas que obrigam os professores a dar Os Maias de uma forma que afasta os leitores. Leiam O Crime do Padre Amaro, que é uma obra de raiva juvenil do autor, a única escrita ainda ele estava em Portugal, onde se nota o ódio que tem à província e à sociedade portuguesa fechada e beata.
Quem aparece muito nestas crónicas, mais do que esperava, é Camilo Castelo Branco. Porquê?
A relação entre um leitor e uma obra é misteriosa. O Camilo Castelo Branco é um grande escritor, provavelmente tão bom como o Eça. Acontece que não tenho empatia com ele. No outro dia comprei as Obras Completas dele para o ler de uma ponta à outra. São 18 volumes em que há qualquer coisa naquele mundo rural, naquelas paixões, na época e no vocabulário que me afastam dele. É ainda muito vernáculo no português, ao passo que o Eça é o primeiro romancista que usa a língua moderna que nós utilizamos. Confesso que tenho dificuldade em entrar nos romances do Camilo.
Sei que quando comprou essas obras completas as enfiou junto à sua lingerie. Foi para erotizar o Camilo?
Ele não precisa dessa erotização, era mais para ver se arrumava os livros e diminuía a minha lingerie - que nunca foi o meu forte, devo dizer. Agora, já não está junto à lingerie, porque houve uma deslocação de estantes e ficou mais perto do Garrett, enquanto a lingerie está com as meias e T-shirts, deixando o Camilo decentemente arrumado.
Falando de indecências, tem uma crónica em que questiona por que não levar a irmã Lúcia para o panteão. Concorda com a proposta de colocar lá Mário Soares?
Até eu mereço ir para o panteão, porque não? Não há mulheres, vou eu. Em França há esta discussão também por causa das quotas. Como em geral sou contra as quotas e não tenho paciência para os franceses, devido à sua antipatia e a uma gastronomia que não vale nada, esse debate deu-me vontade de rir. É como outra discussão verdadeiramente francesa, a de estabelecer quotas nas novas estações da nova rede de metropolitano de Paris com nome de mulheres. Tornou-se arbitrário quem vai para o panteão e é uma discussão sem sentido.
Não vê interesse em Soares e na ida de Sá Carneiro para o panteão?
A discussão está politizada, até já li que o PCP não quer lá o Álvaro Cunhal. Para que as pessoas sejam tornadas heróis e se mantenha a dignidade dos sítios sagrados é necessário passarem décadas sobre a sua morte. As pessoas da minha geração não podem ter essa honraria, deixem-nos estar sossegados.
Quem falta no Panteão?
Não me lembro de ninguém, até terá gente a mais.
Quando viveu em Inglaterra nunca imaginou que a Grã-Bretanha votasse a favor do brexit?
Nunca me preocupou e nem imaginei que fosse possível votar a favor do brexit. Agora, se rebobinar a cabeça, percebo algumas das razões, principalmente as ligadas à tradição que eles têm de liberdade e de um sistema de justiça diferente do europeu, melhor. Tudo o resto no brexit é detestável, como o medo dos imigrantes. Se fosse inglesa teria votado remain, agora vê-se a baralhada em que estão metidos, além de que a saída da Inglaterra faz mal à Europa.
Afirma que ter vivido em Inglaterra a fez apaixonar-se pela civilização europeia. Qual o lugar para Portugal?
Infelizmente, não é famoso. O Eça dizia que Portugal era um país talhado para a ditadura e também acho que os portugueses prezam pouco a liberdade - que para mim é um valor supremo. Ter nascido e vivido tantos anos sob um regime daqueles marcou-me, e não é por acaso que o regime sobreviveu tantos anos: 80% do povo era composto por camponeses muito pobres e havia um senhor manhoso que era um provinciano inteligente capaz de dominar e atabafar o país. De certa maneira, não fomos nós que conquistámos a liberdade, foram os capitães que queriam acabar com a guerra em África, o que é diferente: a liberdade foi-nos outorgada. Enquanto portugueses e cidadãos nunca lutámos pelas liberdades e isso faz-me sofrer. É um país que tem muitos fatores que o levam à ditadura, tanto assim que pedimos a adesão à CEE mas nunca referendámos este processo.
É a favor de referendos?
Sou contra, porque se no aborto é fácil decidir sim ou não, há situações que não devem ser referendadas. A grande aspiração dos portugueses era a de receberem fundos e não liberdade, cidadania e melhores governantes. Vieram os fundos e um colega que conhecia plantava e arrancava videiras consecutivamente e nada era ilegal. Fazia parte de um país que pedia esmola à Europa e que viveu muito bem nos anos 1990. Se houver outra crise, as novas gerações ainda nos irão pedir justificações sobre o que fizemos ao dinheiro que veio da Europa. Especialmente com estes bonitos exemplos de Salgado e de Sócrates. O que as novas gerações veem é um país corrupto.
Numa das crónicas diz que sempre votou no PS. Isso acabou após Sócrates?
Eu deixei de votar por razões de repúdio da lei eleitoral.
Já não vota?
Anulo o voto. É-me impossível não votar porque gosto tanto da ideia de que o cidadão vota que não sou capaz de me abster. Vou lá e risco o boletim. A atual lei eleitoral faz que ninguém vigie os governos, ou seja, são os secretários-gerais que escolhem os deputados e estes são bonecos que se levantam e se sentam obedientes, como vemos na televisão. Até bastava ter lá cinco bonecos, um por partido, e ficava muito mais barato. O nosso Parlamento não funciona como "polícia" dos governos e essa seria a sua função.
Acha que o país vai sobreviver ao ritmo de Marcelo Rebelo de Sousa?
Se tomar bastantes vitaminas para aguentar aquele ritmo, sobreviverá. Veja-se o caso da namorada dele, a Rita, que se andasse com o Marcelo nesta velocidade pelo país inteiro já teria morrido há um ano. Quanto a Portugal, o país tem uma vantagem: são oito séculos de história, por isso não é fácil destruí-lo.
Falando de destruições, o anterior ministro da Educação, Nuno Crato, prometeu a implosão do Ministério da Educação. Ficou desiludida por o não ter feito?
Muito desiludida. Conhecia-o mal, mas tinha respeito por ele. No entanto, enquanto ministro fez uma série de disparates. É claro que havia a troika e poucos recursos, mas quase tudo o que disse antes de ser ministro não foi capaz de pôr em prática.
A sua primeira crónica até diz que em "Portugal não há universidades". É mesmo assim?
Não existem mesmo, há uns barracões, uns mais horrendos do que os outros, como é o caso da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas ali na Avenida de Berna, que mais parece uma prisão com grades espetadas para empalar os alunos que queiram fugir. Uma universidade é uma comunidade, e aí sou obsoleta porque defendo o espírito da universidade que vem da Idade Média: onde acontece uma conversa entre pessoas que se interessam pela cultura e pelo saber, independentemente do mercado. As universidades são tidas em todo o mundo como escolas profissionais em que os estudos clássicos são marginalizados, quando esses, bem como a História, são fundamentais para as pessoas olharem o mundo e saberem tomar decisões. Tanto um engenheiro como um ministro têm de saber o que pensaram os gregos para se comportarem e agirem melhor, o que não está a acontecer. Além dessas deficiências próprias da universidade, na portuguesa existe um enorme compadrio e o nepotismo é muito grande, basta olhar para os apelidos dos professores que se sucedem na Faculdade de Direito de Lisboa, ou na de Economia da Universidade de Coimbra, que é dominada pelo Boaventura de Sousa Santos, pessoa que tem uma ideia peculiar do que é ensinar: apregoar princípios políticos e ideológicos. Algumas faculdades estão transformadas em salas evangelistas de propaganda filosófico-política.
(Diário de Notícias)
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