No mais alto pano cai a nódoa
juiz Clarence Thomas«Nos EUA tem vindo a
desenvolver-se uma curiosa e
esclarecedora novela sobre as
relações de alguns juízes do
Supremo Tribunal com
bilionários donos de empresas
com processos judiciais no Supremo
Tribunal.
A aura, não de infalibilidade, mas de
respeitabilidade e seriedade do Supremo
Tribunal norte-americano tem vindo a perder
brilho sobretudo a partir das revelações da
ProPública, uma organização de jornalistas
de investigação, sem fins lucrativos, sobre
dois dos juízes mais conservadores do
Supremo Tribunal e as suas vantajosas
relações com doadores bilionários. Ao longo
de 2023, a ProPública tem vindo a produzir
informação sobre a amizade de há dezenas de
anos do juiz Clarence Thomas com o magnata
do sector imobiliário Harlan Crow e as
vantagens dela decorrentes, bem como as
viagens de luxo do juiz Samuel Alito com o
bilionário Paul Singer.
Embora os visados
tenham procurado minimizar as revelações, a verdade é que o Supremo Tribunal já se viu
obrigado a abrir uma investigação e a
promulgar um opaco e seguramente pouco
eficaz código de conduta...
Enquanto do outro lado do Atlântico se vai
desenrolando esta emocionante investigação,
cá pelo Velho Continente, o Tribunal Europeu
dos Direitos Humanos (TEDH) viu-se obrigado
a pronunciar-se sobre uma queixa
apresentada pelo Sindicato Nacional dos
Jornalistas e outros sindicatos contra a França
por violação do direito a um julgamento justo
por um tribunal imparcial, devido à
participação, na decisão do recurso que
tinham apresentado, de três juízes do
Supremo Tribunal (Cour de Cassation) que os
queixosos afirmavam estarem ligados à parte
contrária.
Em causa estava uma reestruturação da
editora Wolters Kluwer France (WKF),
dedicada à informação e formação jurídica e
que, no âmbito do grupo empresarial a que
pertencia, contraíra um empréstimo interno
de 445 milhões de euros, avalizado por um
revisor oficial de contas, que tinha levado a
que os trabalhadores deixassem de receber
participações nos lucros da empresa. Os
trabalhadores tinham defendido, nos
tribunais franceses, que esta engenharia financeira e fiscal era uma operação
fraudulenta em prejuízo dos trabalhadores e,
no tribunal de recurso, tinham ganho a causa,
sendo decidido que deveria ser estabelecido,
por um revisor oficial, o montante da reserva
especial de participação que os assalariados da empresa deveriam receber relativamente
aos anos de 2007 a 2015.
A WKF recorreu para o Supremo Tribunal e
aí, num colectivo de seis juízes, teve a “sorte”
de encontrar três juízes que colaboravam com
a editora, nomeadamente fazendo formações
pagas a 1000 euros por dia ou 500 euros por
meio-dia. E a decisão foi... a revogação da
decisão do tribunal de recurso.
Curiosamente, embora os juízes do
Supremo dissessem que a sua decisão se
inscrevia numa jurisprudência constante de
não pôr em causa as operações avalizadas por
um revisor oficial de contas, diversos juristas
afirmaram que tal jurisprudência não era
seguida quando estavam em causa actuações
fraudulentas, como havia sido estabelecido
pelo tribunal de recurso.
Esta decisão causou algum alarido e o
Conselho Superior da Magistratura,
interpelado pelos sindicatos, chegou a pronunciar-se sobre o assunto, considerando
que os juízes se deveriam ter considerado
impedidos de julgar no processo, mas que
este desrespeito pelas normas deontológicas
não atingia “um nível de gravidade suscetível
de constituir uma infração disciplinar” (!).
E foi assim que o caso chegou ao TEDH,
que, no passado dia 14, por unanimidade,
embora sublinhando que “a contribuição dos
juízes para a divulgação do direito,
nomeadamente através de eventos
científicos, actividades pedagógicas e
publicações, faz parte natural das suas
funções”, considerou que as relações
profissionais dos juízes em causa com uma
das partes no processo eram “regulares,
estreitas e remuneradas”, o que era suficiente
para demonstrar que se deveriam ter
declarado impedidos e que os receios dos
queixosos quanto à sua falta de
imparcialidade estavam objetivamente
justificados. Considerou, assim, o TEDH que a
França tinha violado o direito a um processo
equitativo consagrado na Convenção –
“qualquer pessoa tem direito a que a sua
causa seja examinada, equitativa e
publicamente, num prazo razoável por um
tribunal independente e imparcial,
estabelecido pela lei ...” – mas as
consequências práticas para os trabalhadores
serão, muito provavelmente, poucas para
além da vergonha nacional que representa
para os juízes franceses esta decisão europeia.» (Público)
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