sábado, 30 de dezembro de 2023

“Tenho consciência da fragilidade absoluta dos regimes democráticos-diza escritora Lídia Jorge

 

Em Gaza?

 Na Ucrânia. Gaza é outra coisa. Aqui é uma guerra clássica, uma guerra do tipo medieval que continua. E a sensação que tenho é de que se vive uma tensão em que aquilo que parece a cobardia das nações é uma espécie de equilíbrio último antes de se desencadear um Holocausto global. Mas mês após mês eu vou mudando de opinião. Ainda hoje voltei a um texto que o Mario Vargas Llosa escreveu há mais de um ano, e em que reclamava que se avançasse para uma negociação de paz, abdicando de uma parte da Ucrânia; na altura fiz um comentário negativo, um bocado jocoso até, e de que agora tenho vergonha, porque desde há uns três meses que penso o mesmo. Ele viu muito antes de mim que isto se encaminha para se ver morrer o último ucraniano, e o que me custa imenso é perceber que não há possibilidade de justiça neste tipo de conflitos. Neste momento tenho a consciência da fragilidade absoluta dos regimes democráticos.

Que leitura faz deste momento? 

 Em relação à nossa casa, à nossa paróquia, oscilo entre duas posições: pensar que isto é uma democracia a funcionar ou que é a falência do sistema, um ataque por dentro, pelos próprios, ao sistema democrático. As grandes utopias do século XX falharam. Falhou o fascismo. Há utopias que a gente pensa que nunca foram utopias. Foram: o fascismo foi uma utopia que resultou numa tragédia. O comunismo foi uma utopia que resultou também numa tragédia. Sobejaram o socialismo democrático e as democracias liberais. E elas são feitas pelas pessoas que acreditam que ao meio há uma espécie de estado pacífico, entendimento, alianças, consensos. Neste momento, por erros civilizacionais, este meio, que é um meio de equilíbrio, que nunca aposta em saltos brutais, está falhando. É uma implosão. E nós, neste domínio — é uma tristeza —, somos mais um caso na Europa. Acirramos o quê? O desejo de experimentar o desconhecido, mesmo que tenha um rosto horrível. É o que está acontecer, e está a dar espaço à extrema-direita e a criar as “democracias iliberais”, como a de Orbán [na Hungria], que da última vez ganhou de maneira tão estrondosa que disse: “A minha vitória vê-se da Lua.” As democracias estão a ser assaltadas no mundo inteiro por estas pessoas.

Até na Segunda Guerra Mundial, sobre o cadáver de tanta gente, houve futuro. Custa muito crer nisto, mas a História é uma catástrofe contínua, com intervalos.

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, como alguém que se coloca de fora e se vê como um juiz puro. Não é isso. O ponto de partida é a consciência de que todos nós falhamos, todos erramos, mas isso não pode ser a base de uma incriminação generalizada, senão dá-se a ironia de ver pessoas que sabemos corruptas escreverem nas paredes “nós queremos lavar a cara da política portuguesa”. Estamos perante este paradoxo: aqueles que propõem políticas que são a porta aberta para a corrupção, para o mundo discricionário, são os que dizem que vão lavar a cara da política portuguesa. E isto atrai pessoas. 




 

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