Miguel Sequeira diz que está em causa “a floresta Laurissilva, o nosso principal activo”
É uma apropriação aparentemente ilegítima de propriedade da Região consentida pela inexistência de um cadastro geométrico em São Vicente. Um empresário declarou-se, num Cartório Notarial, dono de um prédio rústico com uma área superior a 300 hectares que tem como confrontação a Estrada do Caramujo, acima das Ginjas. Na prática, o indivíduo apropriou-se de uma mancha que o Governo considera património da Região e parte integrante do perímetro da Floresta Laurissilva, classificada pela UNESCO como património mundial da Humanidade. O pretenso ‘roubo’ já foi detectado pela Direcção Regional das Florestas e Conservação da Natureza (DRACN) e denunciado ao Ministério Público.O prédio rústico situado por acima das Ginjas, nas serras de São Vicente, foi registado num Cartório Notarial por uma firma agrícola em nome individual, por um empresário que já havia feito uma outra inscrição matricial em nome pessoal daquele mesmo prédio que estava dividido em sete partes. Segundo o que o DIÁRIO apurou, em Junho de 2002, houve um primeiro registo em nome pessoal, no Cartório Notarial de São Vicente, de um prédio rústico que foi adquirido a outras pessoas, um dos quais com 250 mil m2. Cinco anos depois, em 2007, já no Cartório Notarial da Ponta do Sol, o mesmo indivíduo registou já em nome da firma agrícola da qual é proprietário, quase o dobro da área que detinha antes, alegando ter adquirido um prédio no valor de 50 mil euros. Apesar de ter demarcado 169 hectares - uma área já bastante assinalável - escriturou ao todo 323 hectares, apresentando as devidas confrontações do prédio onde surge, num dos pontos, a Estrada do Caramujo. Para termos uma ideia, 323 hectares são 323 campos de futebol. É um território que representa 4% de todo o concelho de São Vicente e se compararmos ao Funchal, suplanta a área de 284 hectares das freguesias de São Pedro e do Imaculado Coração de Maria juntas. Os notários estão privatizados, não há uma plataforma informática dos prédios rústicos que vão sendo declarados que possa ser partilhada pelos serviços que autenticam a respectiva titularidade e, no concelho de São Vicente, não há sequer um cadastro geométrico que permita aferir se a área declarada é sequer comportável, fisicamente, na própria geografia dos vários sítios do concelho, sem atropelar o direito de outrem. Precaver a usurpação de propriedade alheia está, assim, dependente do livre arbítrio. Foi neste vazio de instrumentos que o prédio rústico que confronta com a Estrada do Caramujo foi registado e seguiu os seus trâmites, sem nunca sofreu contestação.Apanhado num pedido de parecerO alarme soou muito recentemente, quando deu entrada na Direcção Regional das Florestas e Conservação da Natureza (DRFCN) um pedido de parecer para o licenciamento de uma actividade florestal, numa área que - pasmaram-se os Serviços Florestais - pertence à Região mas estava registado no nome de uma firma agrícola. Foi nesta fase que a DRFCN percebeu que alguém se apropriara inadvertidamente de património público, confirmou Miguel Sequeira, director regional das Florestas e Conservação da Natureza, contactado pelo DIÁRIO.“Nós administramos um espaço que é público e, simultaneamente temos de dar licenças para espaços privados. Se aquilo que é declarado como seu por um privado coincide com um espaço que nós temos como da Região, é evidente que tem de haver aí qualquer erro”, analisa. “Pode haver uma tentativa de licenciamento do projecto ou uma tentativa de financiamento europeu em que é preciso entregar uma determinada matriz”, explicou.“Nós acabamos por ter de fazer os pareceres sobre as actuações dentro da área florestal ainda que não seja perímetro”, referiu, lembrando que as autorizações para actividades florestais não são apenas para aquelas que decorrem em espaço público, mas são também para as que estão projectadas para domínio privado.“Como nós acabamos por centralizar os pedidos de parecer sobre a área, obviamente que acaba por ser inevitável contactar a DRFCN”, referiu Miguel Sequeira. “Não pode estar a acontecer um privado estar a pedir uma licença para um espaço que nós, como serviço, consideramos que é espaço da Região”, observa. E se existiu uma usurpação, intencional ou acidental, do património da Região, essa situação tem de ser esclarecida.Questionado pelo DIÁRIO sobre os procedimentos adoptados, o director regional das Florestas e Conservação da Natureza revelou que a DRFCN já apresentou queixa junto da Procuradoria-Geral da Comarca do Funchal, para que tudo seja esclarecido e para que sejam apuradas responsabilidades. “Estamos a falar de Floresta Laurissilva, património da Humanidade, estamos a falar do nosso principal activo e há que ter particular atenção nesse caso”, sublinhou Miguel Sequeira.Potencial turístico por explorarA Estrada do Caramujo é um caminho florestal em terra batida que foi aberto em 1984. É um acesso que liga a parta alta do sítio das Ginjas à mancha florestal das serras de São Vicente. É uma área de enorme valor paisagístico e natural, sendo considerado um futuro ‘ex-libris’ do concelho com potencial turístico associado e muita margem por explorar. Em São Vicente, há muito que se especula sobre a pavimentação daquela estrada florestal até ao Chão do Caramujo mas, por aquilo que o que o DIÁRIO apurou, a construção civil não é vista com bons olhos pelo actual Governo Regional, pois esbarra naquilo que são as naturais reservas ao nível do impacte ambiental e na conservação da fauna e flora.Por ali passam alguns dos percursos recomendados como a Levada Fajã do Rodrigues, o chamado Canal do Norte, ladeadas por floresta exótica e, mais no interior, pelo perímetro florestal indígena onde a Laurissilva se manifestar com esplendor e com vista para o enorme vale de São Vicente. Ao nível de imóveis, destacam-se a Casa do Levadeiro e a Casa do Chão do Caramujo - uma moradia senhorial, já dentro do perímetro florestal, mandada construir em 1912 pelo Visconde da Ribeira Brava, na qualidade de presidente da antiga Estação Agrícola da Madeira. É uma de várias casas que serviam de campo de ensaio, a partir de outras como as casas do Rabaçal, da Bica da Cana ou das Queimadas que, hoje, funcionam como casas de abrigo florestal com reconhecido valor histórico.A maior parte dessas casas, pertença do Governo Regional, não têm artigos urbanos registados e correm o risco de ser alvo de cobiça assim como de tentativas de apropriação como aconteceu em São Vicente. Pelo que o DIÁRIO apurou, a área de mais de 320 hectares de que se apropriou aquela firma agrícola, no expediente lavrado no Cartório Notarial, estende-se até ao Chão do Caramujo, onde está a casa senhorial. Além disso, tem como delimitação (confrontação) a Estrada do Caramujo, o que permitira ao proprietário tirar partido daquela acessibilidade. Em São Vicente, há quem veja neste ‘golpe’ contra a Região uma tentativa para viabilizar um projecto florestal que, por sua vez, abriria as portas a um futuro investimento turístico que passaria pela recuperação da casa do Caramujo. Uma versão que não tem suporte, desconhece-se a existência, sequer, de planos concretos para o local.“Por vezes vemos coisas incríveis”Da parte da DRFCN, pouco foi adiantado em relação ao projecto florestal que a firma agrícola tinha reservado para aquele local. Questionado pelo DIÁRIO sobre as motivações que estiveram na origem desta apropriação de património da Região, Miguel Sequeira, não esconde a perplexidade. “O que se passou pela cabeça das pessoas não sei, porque nós por vezes vemos coisas absolutamente ilícitas que são incríveis”, comentou. A única certeza que tem é sobre a importância do património natural que foi subtraída à Região. “É evidente que a Casa do Caramujo, embora esteja muito destruída tal como a casa da Bica da Cana e outras, é um activo absolutamente fundamental para Região, mais ainda quando se pensa em pedestrianismo, na articulação do património cultural com o património natural, quando falamos em caminhos reais, tudo isso, faz parte de uma rede”, destacou Miguel Sequeira.Também o caminho florestal da Estrada do Caramujo, por “passar por uma parte importantíssima do património, é preciso ter muito cuidado com o uso que se faz dele”, alertou. Sobre se há outros casos de apropriação ilegítima de património florestal da Região, Miguel Sequeira respondeu pelo menos no seu mandato, desde Abril, este foi o primeiro caso que lhe passou pelas mãos. Cadastro teria evitado tudo istoO director regional das Florestas e Conservação da Natureza não esconde que a inexistência de um cadastro geométrico onde constasse todos os registos prediais, evitaria situações desagradáveis como esta. “É evidente que ajudaria muito ter o cadastro completo. Pelo menos seria muito complicado isto ocorrer”, admitiu.Conforme o DIÁRIO noticiou no último domingo, mais de 400 reclamações cadastrais estão em análise na Direcção Regional do Ordenamento do Território e Ambiente por discrepância nos artigos prediais, nas matrizes e nas confrontações das propriedades. Apenas seis concelhos têm cadastro geométrico, permitindo referenciar 162 mil prédios rústicos. Nos restantes cinco vale a fé na palavra dos titulares quando fazem registos nos notários ou transacções nas Finanças.
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