terça-feira, 10 de dezembro de 2024

O movimento antiturismo é um espelho do discurso anti-imigrantes

 (Excelente análise da grande jornalista Ana Sá Lopes)

«O fim do alojamento local não resolverá o problema da habitação num país em que o Estado que se demitiu de construir casas.»

Anacrónica

 A Assembleia Municipal de Lisboa aprovou na semana passada a ideia de fazer um referendo com o objectivo de acabar com o alojamento local na capital. Houve 11 mil pessoas a assinarem a petição para o referendo local que o PS achou por bem votar favoravelmente, em conjunto com o Bloco de Esquerda, Livre, PAN, Os Verdes e a abstenção do PCP. Reparem: o referendo não tem como objectivo a limitação do alojamento ou mesmo a suspensão de novas licenças que era aceitável ponderar. Não: é mesmo para acabar com o arrendamento a turistas em prédios destinados a habitação. Assim, de uma penada, pôr todas as casas no mercado de arrendamento sem-ser-para-turista e fazer com que o alojamento local, que existe em todas as capitais do mundo (talvez não na Coreia do Norte) desapareça. Há muito tempo que acho que parte do discurso contra o turismo e os choradinhos sobre o fim “da velha Lisboa” é a versão de esquerda e intelectual do discurso anti-imigrantes. As pessoas que têm vergonha de dizer que não gostam do facto de viverem muitos asiáticos no Martim Moniz sentem-se à vontadinha para se queixarem dos franceses ou espanhóis a “ocupar” a Baixa de Lisboa. E não vêem nisso nem uma ponta de xenofobia, nem quando choram o fim das antigas “mercearias”, agora substituídas por lojas que são propriedade de asiáticos. Comparem os discursos dos dois lados e verão que, infelizmente, um é o espelho do outro. Os dois querem uma Lisboa de um “antigamente perfeito”, obviamente só imaginado — nuns casos é uma Lisboa branca, nos outros é a falar português, sem atrapalhar a subida da rua do Carmo nem a frequentar os “seus” cafés. Eu não sei a que passado essas pessoas querem regressar, mas eu vivo em Lisboa há 40 anos e lembro-me da miséria total da Baixa a cair aos bocados, onde não morava ninguém — e que foi “salva” por incêndio em 1988 que rebentou com o Chiado. A Lisboa romântica que muitos têm na cabeça — nomeadamente os peticionários e os partidos que apoiaram o referendo — não existia no centro de Lisboa, que estava há séculos em total decadência até o turismo ter chegado. Lembram-se do Intendente antes de António Costa presidente da câmara ter chegado? Da Baixa com prédios em ruínas onde era perigoso uma pessoa andar sozinha à noite? É verdade que é impossível alugar uma casa em Lisboa — e não é de agora, mas o mercado, tanto o do arrendamento como o da propriedade, vive nestes tempos numa alucinada bolha especulativa que não existia há uns anos. Mas o fim do alojamento local em Lisboa — é essa uma das perguntas do referendo local aprovado — além de dar cabo dos empregos de muita gente que vive desse ofício, nunca resolverá o problema da habitação de um Estado que se demitiu há longos anos de promover a construção pública em massa. A quantidade de edifícios vazios do Estado que poderiam ser transformados em habitação estão, se não estou em erro, no mesmo estado em que estavam na altura da última polémica. Quanto à ideia de que o alojamento local incomoda os vizinhos é tão risível como o incómodo provocado por arrendar casas a menores de 30 anos sem filhos. Falo por mim, que dava graças a Deus pelo facto de a vizinha do lado ser surda e não se incomodar com os jantares ruidosos de jovens adultos. Como pessoa que já chamou a polícia por causa de um ruído infame no prédio e que também viu a polícia a bater à sua porta por razões idênticas, tenho uma boa notícia para dar: a polícia funciona. A nostalgia de um passado que nunca existiu é mesmo uma característica portuguesa. Aliás, é muito comum termos saudades da Lisboa dos anos 50, 60, 70. Era um paraíso não era? Não havia alojamento local, nem turistas, nem pobres, nem barracas. Havia uma ditadura, mas isso agora não interessa nada.
Ana Sá Lopes, jornalista

Sem comentários:

Enviar um comentário