(Excelente análise da grande jornalista Ana Sá Lopes)
«O fim do alojamento local não resolverá o problema da habitação num país em que o Estado que se demitiu de construir casas.»
Anacrónica A
Assembleia Municipal
de Lisboa aprovou na
semana passada a
ideia de fazer um
referendo com o
objectivo de acabar
com o alojamento local na capital.
Houve 11 mil pessoas a assinarem
a petição para o referendo local que
o PS achou por bem votar
favoravelmente, em conjunto com o
Bloco de Esquerda, Livre, PAN, Os
Verdes e a abstenção do PCP.
Reparem: o referendo não tem
como objectivo a limitação do
alojamento ou mesmo a suspensão
de novas licenças que era aceitável
ponderar. Não: é mesmo para
acabar com o arrendamento a
turistas em prédios destinados a
habitação. Assim, de uma penada,
pôr todas as casas no mercado de
arrendamento sem-ser-para-turista
e fazer com que o alojamento local, que existe em todas as capitais do
mundo (talvez não na Coreia do
Norte) desapareça.
Há muito tempo que acho que
parte do discurso contra o turismo e
os choradinhos sobre o fim “da
velha Lisboa” é a versão de
esquerda e intelectual do discurso
anti-imigrantes.
As pessoas que têm vergonha de
dizer que não gostam do facto de
viverem muitos asiáticos no Martim
Moniz sentem-se à vontadinha para
se queixarem dos franceses ou
espanhóis a “ocupar” a Baixa de
Lisboa. E não vêem nisso nem uma
ponta de xenofobia, nem quando
choram o fim das antigas
“mercearias”, agora substituídas
por lojas que são propriedade de
asiáticos. Comparem os discursos
dos dois lados e verão que,
infelizmente, um é o espelho do
outro. Os dois querem uma Lisboa
de um “antigamente perfeito”,
obviamente só imaginado — nuns
casos é uma Lisboa branca, nos
outros é a falar português, sem
atrapalhar a subida da rua do
Carmo nem a frequentar os “seus”
cafés.
Eu não sei a que passado essas
pessoas querem regressar, mas eu
vivo em Lisboa há 40 anos e lembro-me da miséria total da Baixa
a cair aos bocados, onde não
morava ninguém — e que foi “salva”
por incêndio em 1988 que rebentou
com o Chiado.
A Lisboa romântica que muitos
têm na cabeça — nomeadamente os
peticionários e os partidos que
apoiaram o referendo — não existia
no centro de Lisboa, que estava há
séculos em total decadência até o
turismo ter chegado. Lembram-se
do Intendente antes de António
Costa presidente da câmara ter
chegado? Da Baixa com prédios em
ruínas onde era perigoso uma
pessoa andar sozinha à noite?
É verdade que é impossível alugar
uma casa em Lisboa — e não é de
agora, mas o mercado, tanto o do
arrendamento como o da
propriedade, vive nestes tempos
numa alucinada bolha especulativa
que não existia há uns anos.
Mas o fim do alojamento local
em Lisboa — é essa uma das
perguntas do referendo local
aprovado — além de dar cabo dos
empregos de muita gente que vive
desse ofício, nunca resolverá o
problema da habitação de um
Estado que se demitiu há longos
anos de promover a construção
pública em massa. A quantidade de edifícios vazios
do Estado que poderiam ser
transformados em habitação estão,
se não estou em erro, no mesmo
estado em que estavam na altura da
última polémica.
Quanto à ideia de que o
alojamento local incomoda os
vizinhos é tão risível como o
incómodo provocado por arrendar
casas a menores de 30 anos sem filhos. Falo por mim, que dava
graças a Deus pelo facto de a vizinha
do lado ser surda e não se
incomodar com os jantares
ruidosos de jovens adultos.
Como pessoa que já chamou a
polícia por causa de um ruído
infame no prédio e que também viu
a polícia a bater à sua porta por
razões idênticas, tenho uma boa
notícia para dar: a polícia funciona.
A nostalgia de um passado que
nunca existiu é mesmo uma
característica portuguesa. Aliás, é
muito comum termos saudades da
Lisboa dos anos 50, 60, 70. Era um
paraíso não era? Não havia
alojamento local, nem turistas, nem
pobres, nem barracas. Havia uma
ditadura, mas isso agora não
interessa nada.
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