Morreu o marquês de Fronteira, um mecenas da cultura
Mecenas da cultura e das artes através da sua Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, Fernando Mascarenhas morreu esta quarta-feira em Lisboa, aos 69 anos.
Fernando Mascarenhas, presidente da Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, morreu ontem em Lisboa, aos 69 anos. A sua oposição ao regime do Estado Novo e, depois do 25 de Abril, o modo como colocou o património familiar ao serviço da cultura e das artes, tornavam o marquês de Fronteira e conde da Torre, para citar apenas dois dos muitos títulos nobiliárquicos que representava, uma figura singular nos meios da alta aristocracia portuguesa.Em 1989, instituiu a Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, usando o seu palácio seiscentista em Lisboa, mas também a sua vasta propriedade de Ponte de Sor — que integrou o antigo condado da Torre — para iniciativas culturais, científicas e educativas.Culto, sofisticado e com reconhecido sentido de humor, considerava-se um homem de esquerda, mas sempre levou a sério a sua condição de herdeiro de uma boa dezena de títulos de nobreza, e fez questão de escrever um Sermão ao Meu Sucessor — Notas para Uma Ética da Sobrevivência, destinado — uma vez que não teve filhos de nenhum dos seus dois casamentos — a António Mascarenhas, filho do seu primo José Maria Mascarenhas.Antes do 25 de Abril de 1974 chegou a ser alcunhado de “marquês vermelho” pela sua oposição ao fascismo, embora ele próprio diga numa entrevista que nunca foi de um vermelho muito vivo. Mas promoveu reuniões clandestinas e conspirativas desde o final dos anos 60 no seu palácio de Benfica.Uma delas, destinada a preparar a estratégia da oposição democrática nas eleições de 1969, foi mesmo interrompida pela polícia. Fernando Mascarenhas, numa entrevista a Cândida Santos Silva publicada no Expresso, conta que estavam presentes Jorge Sampaio, Vítor Neto, Vítor Wengorovius, Maria Barroso e António Reis, entre outros.A sua actividade política nesses últimos anos antes do 25 de Abril era suficientemente notória para chegar a França, onde o L’Express brincava com o estatuto aristocrático do opositor e assinalava o nascimento de uma corrente ideológica, o “marquesismo-leninismo”.A sua oposição ao regime, que o levou mesmo a ser chamado um par de vezes à sede da PIDE (polícia política) — gostava de contar que chegou ao edifício da Rua António Maria Cardoso num Cadillac guiado por motorista —, não o impediu, enquanto grande latifundiário que também era, de sofrer alguns dissabores após o 25 de Abril. Viveu algum tempo fora do país, primeiro em Marrocos e depois em Londres, e chegou a pensar que o exílio poderia ser permanente.Quando regressou, e como os rendimentos familiares vinham sobretudo da herdade alentejana, que fora nacionalizada após o 25 de Abril, viu-se na contingência de ter de trabalhar. Licenciado em Filosofia, deu aulas durante alguns anos na Universidade de Évora.Quer as suas inclinações políticas, quer os seus interesses culturais, dever-se-ão pouco ao pai, um homem que competia em corridas de automóveis e pegava touros de caras, e que se divorciou da mãe de Fernando Mascarenhas quando este tinha dois anos. E, quando morreu, o filho tinha apenas 11 anos. A figura que verdadeiramente o marcou nesses anos de formação, disse ao PÚBLICO o historiador e olissipógrafo José Sarmento de Matos, “foi o seu padrasto, o arquitecto Frederico George, que era uma figura fantástica, de grande categoria, e um homem muito ligado aos meios da oposição”.O historiador, que conheceu Fernando Mascarenhas aos quatro anos e foi seu condiscípulo no colégio, realça a sua “grande cultura” e “sentido de responsabilidade”, e diz que o amigo “é uma dessas pessoas que vai mesmo fazer falta”. Sarmento de Matos recomenda que se divulgue a carta/sermão que dirigiu ao seu sucessor, um texto “muito bonito” e que crê resumir bem o modo como o marquês de Fronteira achava que devia lidar com o seu estatuto e património.“O verdadeiro aristocrata tem consciência de que tem uma história atrás de si e é essa própria consciência da história que tem atrás de si que o faz ter uma consciência igualmente clara de que também tem uma história à sua frente”, escreve Fernando Mascarenhas no seu Sermão, no qual deixa ainda este conselho ao seu herdeiro: “Sê primeiro um homem e, depois, só depois, mas logo depois, um aristocrata.”Jogos e jóiasNa sequência do divórcio dos pais, Fernando Mascarenhas viveu boa parte da sua infância com os seus avós maternos, que tinham casa na Rua da Emenda, em Lisboa, e só ia ao Palácio de Fronteira visitar o pai ou festejar os seus anos. É após a morte do pai que se muda com a mãe para o palácio de Benfica. “Não é um amor de juventude: as minhas relações emocionais são mais com a casa da herdade [de Ponte de Sor] do que com esta casa de Benfica”, contará ao PÚBLICO em 2011.É já em adulto que começa a interessar-se verdadeiramente pelo palácio, acabando por se tornar um especialista na história da casa e respectivo património.Num sintético auto-retrato que traçou apara acompanhar uma entrevista que lhe foi feita por Paula Moura Pinheiro, Fernando Mascarenhas diz que é “cristão por educação e agnóstico por ignorância”, que o seu defeito mais tolerável é “a preguiça” e que o seu passatempo é jogar Civilization, um célebre jogo de computador criado por Sid Meyer.Enumera também algumas preferências estéticas, como o David, de Miguel Ângelo, na escultura, ou o romance Guerra e Paz, de Tolstoi, na literatura. Mas também os livros de Mário de Carvalho e, na poesia portuguesa, Camões, Fernando Pessoa ou Luís Filipe Castro Mendes.Apreciador do convívio e da conversa, o país pôde conhecêlo efemeramente nessa condição de anfitrião de tertúlias culturais através do programa televisivo Travessa do Cotovelo, que durante algum tempo moderou na RTP.Nos últimos anos, vinha-sededicando à manufactura de jóias, um hobby que acabou por levar bastante a sério, tendo mesmo chegado a organizar algumas exposições das suas obras no Palácio de Fronteira.O secretário de Estado da Cultura lamentou já a morte de Fernando Mascarenhas, realçando a sua contribuição, “antes e depois do 25 de Abril de 1974, para o fortalecimento da liberdade de expressão e para a consolidação da cidadania”. Jorge Barreto Xavier sublinha ainda a sua “acção ímpar em prol das artes, da filosofia e da literatura”.Segundo informações da Fundação das Casas de Fronteira e Alorna à Lusa, que não adiantam a causa da morte, o velório de Fernando de Mascarenhas realizou-se ontem no Palácio de Fronteira e o seu funeral terá lugar hoje à tarde. Após a celebração de uma missa de corpo presente, o funeral seguirá às 16h30 para o Crematório do Cemitério dos Olivais. As jóias podem ser como as pessoas. Algumas falam imediatamente connosco, apresentam-se sem rodeios — sou chinesa ou indiana ou portuguesa, tenho tantos anos, andei por aqui e por ali. Outras requerem empenho, uma abordagem mais insistente, e, nas respostas que dão, tanto parecem dizer uma coisa como outra, até que poderão acabar por admitir: nasci na Índia mas cresci na China e acabei por vir para Portugal. O comissário da exposição Jóias da Carreira da Índia, Hugo Miguel Crespo, teve de dedicar muito do seu tempo a este diálogo. Algumas das 200 peças que a partir de hoje estão expostas no Museu do Oriente, em Lisboa, não lhe facilitaram a tarefa.A principal dificuldade provém do próprio ponto de partida: “Dar a conhecer um património artístico único, de fusão, entre a Europa e o Oriente”, afirma ao PÚBLICO. “É muito difícil explicar, porque são peças que não são óbvias do ponto de vista estilístico... É preciso fazer muitas perguntas.”A Carreira da Índia começou logo a seguir à descoberta do caminho marítimo para a Índia em 1498 e durou até ao século XIX. Uma vez por ano, fazia a ligação entre Lisboa e os portos do Oriente (Goa, Cochim e por vezes Malaca). “Apenas quatro anos após o feito de Vasco da Gama, Lisboa via com os seus olhos até que ponto eram verdadeiras as descrições de Marco Polo, com as naus trazendo até à Europa, não só as cobiçadas especiarias, mas todo um mundo de mercadorias e objectos raros, muitos nunca antes vistos”, escreve no catálogo Nuno Vassallo e Silva, coordenador científico da exposição e director-geral do Património Cultural. “Nenhuma terá contudo marcado mais o imaginário colectivo, mesmo que raríssimos as tivessem conhecido de perto, do que as pérolas, as gemas e outras mercadorias valiosas.”O universo das jóias é aqui ampliado para a ourivesaria. Se temos colares, pendentes, pulseiras, também há adagas, taças, caixas... A exposição começa com o núcleo “Os portugueses e as jóias da Ásia”, onde, entre outros objectos, se podem ver retratos (sobretudo reproduções) de pessoas ligadas à corte portuguesa, porque, “muitas vezes, o único testemunho que fica das peças é o testemunho visual”, explica Hugo Miguel Crespo. “A joalharia é das coisas mais difíceis de estudar do ponto de vista histórico, porque com o passar das modas as jóias são alteradas e as gemas relapidadas.” Mas, através das imagens, fica-se com “uma ideia do tipo de produtos, de gemas, que pela mão dos portugueses começaram a chegar à Europa numa quantidade antes impensável”. Por exemplo, o quadro de Catarina de Bragança (1638-1705), rainha de Inglaterra, da autoria de John Riley. Podemos ver uma fiada de pérolas brancas, grandes e calibradas, no seu pescoço, brincos de pérolas pêra, pérolas a adornar o cabelo. Não é por acaso: o dote pago por Portugal pelo seu casamento foi a cidade de Bombaim, que era, lembra o comissário, o principal centro de irradiação das pérolas. “As pérolas eram as pedras mais valiosas do planeta no século XVI, XVII... Esta fiada valia tanto ou mais que uma rua inteira ou mesmo um bairro de Lisboa.”Percorrendo a exposição é possível ver de que forma os modelos circularam em ambas as direcções. O comissário aponta para um pequeno cofre francês do século XVI de couro e ferro. “Os portugueses levavam este tipo de cofres para o Espada ( Ceilão (Sri Lanka), século XVIII, feita de aço, prata, ouro, rubis e cornalina Oriente e depois eram copiados com os materiais autóctones.” É assim que mesmo ao seu lado está um outro produzido em Guzarate, no Norte da Índia, em tartaruga e com montagens de prata, muito provavelmente feitas em Goa, também no século XVI. E seguem-se diversas variações. Muitas destas peças têm funções civis, outras, religiosas. “Sempre que se erigia uma capela, tinha de se levar uma parafernália de objectos, que serviam como modelos para outros objectos que depois são feitos por artistas locais.”A réplica é mais um factor que por vezes contribui para complicar a geografia da peça. E aqui, como ainda agora acontece, os chineses eram exímios. “Copiam com uma perfeição absolutamente extraordinária”, afirma Hugo Miguel Crespo. “Têm uma cultura de produção para exportação desde o período medieval, até antes, com a Rota da Seda. Têm de responder aos mercados, ao cliente.” Já os indianos denunciavam mais a sua origem.Algumas peças obrigaram o comissário a usar o microscópio electrónico de varrimento, que “permite ampliações muito grandes e portanto dá para ver o tipo de riscos e que mão é que os produziu”. “Se a peça não nos diz imediatamente que é goesa, ou chinesa ou filipina, temos de fazer o interrogatório científico, técnico, e isso nunca foi feito para estas peças de cariz luso-oriental e muito raramente foi feito para peças de ourivesaria europeia, portuguesa.” Crespo aponta para uma santa mártir de prata. “O tipo de cinzelado visto microscopicmante é igual, ou muito semelhante, ao de outras peças indianas...” Esta peça “absolutamente única” tem outras formas de comunicar a sua origem. “Se observarmos bem, o tipo de construção facial, o tipo de orelhas, remete para os ícones hindus. Encontro esculturas de metal em Goa com o mesmo tipo de figuração, com o mesmo tipo de articulação dos braços. Esta peça só pode ter sido produzida em Goa.”Goa tornou-se “um verdadeiro empório de comércio e produção de bens de luxo a uma escala mundial”, escreve Vassallo e Silva. Esta “globalização” vai fazer com que algumas peças passem por várias mãos até assumirem a forma final — e vai também baralhar os historiadores sobre as origens de muitas das peças que chegaram até nós. Em muitos casos, é preciso continuar a perguntar: de onde vens? (fonte:Jornal Público)
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