sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Ricardo Araujo Pereira comenta a falta de liberdade de expressão em Portugal por parte da juizada fascista que pulula nos tribunais portugueses

 

 «Um homem chamou javardo a outro e foi condenado a pagar €2200 de multa e €6 mil de indemnização. Não há dúvida nenhuma de que a vida está caríssima. Em 1881, Alexandre da Conceição propôs, referindo-se a Camilo Castelo Branco, “a ver se amaciamos os lombos hirsutos deste javardo espumante”, e Camilo respondeu, entre outras coisas, “eu peço vénia ao sr. Conceição para o capitular de besta; mas quer-me parecer que me corre mais restrito dever de pedir licença às bestas para lhes chamar Conceições”. O custo desta troca de ideias foi: nenhum. Chamar javardo era grátis no fim do século XIX e custa €8200 no início do século XXI. Temos mesmo de fazer alguma coisa acerca da inflação.
  No caso cujo desfecho conhecemos esta semana, o delinquente é um antigo embaixador e o ofendido é treinador de futebol. O ex-embaixador é administrador não-executivo de 157 empresas, pelo que tem tempo para andar a executar desaforos; o treinador melindra-se facilmente porque, nos campos de futebol, está habituado a escutar apenas as mais elevadas considerações. O desastre era previsível. Falta dizer que a sentença foi proferida pelo tribunal do Bolhão e que a injúria foi publicada no Twitter. É preciso um talento especial para viver no Bolhão com a convicção de que “javardo” é um insulto grave, e uma habilidade ainda maior para descobrir que, no Twitter, era aquela a opinião criminosa. A juíza teve a bondade de explicar que, e cito: “Somos livres de entender que uma pessoa tem má educação, mas a palavra conta e a palavra tem peso. É diferente dizer que é grosseiro ou que é javardo. Podia ter dito tudo o que disse sem ter usado a expressão em causa. 
 Aqui mostra-se a linha que não se deve ultrapassar.” Ou seja, trata-se da versão jurídica do clássico “não foi o que tu disseste, foi a forma como o disseste”. É possível, por enquanto, considerar que outra pessoa é mal-educada. Mas não se pode ser mal-educado a chamar mal-educado, porque a falta de educação, ao que tudo indica, agora é punida por lei. Nem toda, no entanto. Se é verdade que o réu “poderia ter dito o que disse”, isto significa que o tribunal entende que a substância do que foi dito não é difamatória. Talvez o queixoso seja mal-educado, e não será ilícito apontar-lhe a falta de educação. Mas é obrigatório fazê-lo de forma educada. É, por isso, uma questão de grau. A hipotética falta de educação do queixoso não seria punida, nem a observação do réu. Mas tendo o réu sido malcriado a assinalar má-criação, essa grosseria merece castigo. O tribunal é um requintado escanção de faltas de educação, e determina que umas são legítimas e outras ilegítimas. Façamos todos um esforço para sermos apenas moderadamente rudes.» 

 Ricardo Araújo Pereira escreve de acordo com a antiga ortografia» Publicado no Expresso

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