𝗗𝗮 𝗜𝗻𝗰𝗼𝗺𝗽𝗲𝘁𝗲̂𝗻𝗰𝗶𝗮 𝗮̀ 𝗣𝗿𝗼𝗺𝗼𝗰̧𝗮̃𝗼: 𝗔 𝗩𝗲𝗿𝗴𝗼𝗻𝗵𝗼𝘀𝗮 𝗔𝘀𝗰𝗲𝗻𝘀𝗮̃𝗼 𝗱𝗲 𝗠𝗶𝗰𝗮𝗲𝗹𝗮 𝗙𝗿𝗲𝗶𝘁𝗮𝘀
A nomeação de Micaela Freitas para o cargo de Secretária Regional de Saúde e Protecção Civil é, como tantas outras coisas na vida pública madeirense, uma indecência embrulhada em retórica administrativa, um acto de descaramento político que já nem sequer tenta mascarar-se de mérito ou competência. Não espanta ninguém, diga-se - a não ser os ingénuos, os muito novos ou os que ainda não perceberam que a Madeira é governada, há décadas, como se fosse uma quinta privada, onde os lugares se herdam ou se trocam como favores antigos, nunca com base no escrutínio, muito menos no mérito. Ora, vejamos: a Dra. Freitas, até há pouco tempo presidente do Instituto de Segurança Social da Madeira, deixou atrás de si um lastro de desordem, de descontrolo orçamental, de contas recusadas, de milhões em dívida prescrita, de juros esquecidos, de auditorias ignoradas, e, para cúmulo, uma busca do Ministério Público nas instalações da instituição que dirigia. Que mais será necessário? Que venha a PJ buscar os móveis? Que se revele um desfalque? Que se descubra um esquema de corrupção rudimentar, com envelopes e palavras-passe?
Ou será que basta isto, esta sucessão de falhas gritantes, para que se reconheça que estamos perante uma gestora medíocre, uma funcionária sem rasgo, sem ética pública, sem capacidade?
Mas não. Nada disso importa. Porque na Madeira - esta bela ilha capturada por décadas de poder absoluto, de compadrio entranhado, de pequenos conluios que se fazem em cafés discretos e gabinetes forrados a madeira escura - o que conta é a fidelidade. A disciplina. A capacidade de obedecer sem hesitar. O instinto para manter a boca fechada nas alturas certas. O talento para gerir a desgraça com um sorriso de tecnocrata sem alma.
E, nesse aspecto, Micaela Freitas é perfeita. Sobreviveu a tudo. À reprovação do Tribunal de Contas, que declarou que as contas da Segurança Social não representavam a realidade - o que, num país normal, seria uma sentença política. À descoberta de que mais de cinquenta milhões de euros em contribuições haviam prescrito sem que ninguém se tivesse dado ao trabalho de agir. Às IPSS que recebiam dinheiro público sem apresentarem contas, como se a transparência fosse um luxo e não um dever. E mesmo assim, com tudo isto, foi promovida.
Não demitida, não afastada discretamente com uma justificação qualquer sobre “novos desafios” ou “reestruturação de serviços”. Promovida. E promovida para uma pasta fundamental, sensível, exigente, onde se lida com vidas humanas e catástrofes naturais, onde cada erro pode custar caro. E, no entanto, nada disto pareceu preocupar o Presidente do Governo Regional, que, com aquele ar tranquilo de quem já nem se dá ao trabalho de fingir que governa com critérios, assina a nomeação como quem assina uma escritura de casa herdada.
O que esta nomeação nos diz, com uma clareza brutal, é que a responsabilidade política morreu. Que a prestação de contas é uma relíquia. Que a má gestão, quando convenientemente calada e bem alinhada com os interesses de quem manda, é não só tolerada como recompensada.
E depois há quem se admire com o desinteresse da população, com o cinismo dos jovens, com a sensação generalizada de que nada muda e de que tudo está entregue aos mesmos. Pois claro que está. Como poderia não estar, quando se promove à Saúde uma gestora que deixou a Segurança Social em estado calamitoso? Quando se trata com leviandade o que deveria ser sagrado: a competência?
A nomeação de Micaela Freitas não é apenas uma má decisão: é um símbolo. Um emblema do regime. Um daqueles actos que nos recorda, com toda a crueza, que a Madeira é governada como um condomínio fechado, onde quem está dentro está sempre seguro, e quem está fora que se cale. Não há avaliação séria, não há exigência, não há vergonha. Só uma inércia confortável, uma endogamia política exasperante, uma cultura de poder que vive de si própria e para si própria, como uma velha oligarquia em decadência.
E, no meio disto tudo, o povo, esse detalhe incómodo, que espere pela ambulância. Se vier.