terça-feira, 13 de junho de 2017

Prisão de Alípio de Freitas pela ditadura militar no Brasil, inspirou canção de Zeca Afonso


O ex-padre e ex-guerrilheiro Alípio de Freitas morreu na terça-feira, 13, em Lisboa, aos 88 anos. Ele morava em Portugal e os jornais do país deram ampla repercussão ao falecimento. Ele era jornalista.
Alípio de Freitas nasceu em Bragança, em 1929, e se tornou padre da Igreja Católica em 1952. Em 1957, mudou-se para o Brasil, baseando-se em São Luís, no Maranhão. Deu aulas na universidade e vinculou-se a movimentos sociais e políticos. No Congresso Mundial da Paz, em Moscou, dialogou com líderes soviéticos e conviveu com o poeta chileno Pablo Neruda e com a revolucionária espanhola Dolores Ibárruri Gómez, La Pasionaria. A Igreja Católica pressionou-o, por suas vinculações com a esquerda comunista, e Alípio de Freitas abandonou a vida religiosa.
A se tornar crítico da ditadura, Alípio de Freitas acabou preso. O “Correio da Manhã” apresenta-o como um dos fundadores das Ligas Camponesas, ao lado de Francisco Julião. Depois de morar no México e em Cuba, retornou ao Brasil, clandestino. Ao lado da esquerda armada, organizou e executou atentados e foi preso pelo regime militar por 10 anos.
Alípio de Freitas teria sido o principal articulador do atentado a bomba de Guararapes, no Recife, em 25 de julho de 1966, por meio do qual se pretendia matar o ministro da Guerra, Costa e Silva, depois presidente da República. Mas o general não estava no aeroporto. No livro “A Ditadura Envergonhada” (Intrínseca, 464 páginas), o jornalista Elio Gaspari relata que “morreram no aeroporto um almirante da reserva e um jornalista. O guarda [que encontrou a bomba] teve a perna amputada, e o secretário de Segurança de Pernambuco perdeu quatro dedos da mão esquerda. Treze pessoas ficaram feridas, inclusive uma criança de seis anos”. Os jovens que praticaram o atentado teriam sido articulados pelo ex-padre, homem de Cuba no país. Numa entrevista, ele disse: “Morreu gente, nós lamentamos. Mas era uma guerra, tinha que haver vítimas”.
Ao ser preso, sofreu torturas. Liberado em 1979, mudou-se para Moçambique, em 1981. Mais tarde, na década de 1980, voltou para Portugal e integrou-se, como jornalista, à equipe de profissionais da RTP. Aposentou-se em 1994, aos 65 anos. Em seguida, em 2010, integrou-se ao Conselho Editorial do jornal “A Nova Democracia”.
No livro “Resistir É Preciso — Memória do Tempo da Morte Civil no Brasil” (Record, 279 páginas), Alípio de Freitas menciona o goiano Manuel Porfírio (torturadíssimo no DOI-Codi), filho de José Porfírio. Eles ficaram presos juntos. Na prisão, insistiram com o ex-padre se ele sabia do paradeiro de José Porfírio de Souza e de Aldo Arantes.
Trecho do livro: “A certa altura do interrogatório, quando eu mais rolava pelo chão do que ficava de pé, o capitão Correia Lima parou de dar-me choques elétricos e mandou que me levantasse, encostado a uma parede da sala. Disse que me retirassem um dos eletrodos de um dos pés; em seguida, ordenou-me que o ligasse no pênis. Recusei-me. O capitão Correia Lima gritou que eu tinha de ligá-lo. Calei-me, a expectativa do que iria acontecer. Então um soldado abaixou-se à minha frente e preparou-se para cumprir a ordem. Quando se aproximou, já com o eletrodo na mão, e se abaixava para ligá-lo, somei as poucas forças que tinha a todo o meu ódio e desferi-lhe um pontapé debaixo do queixo que o projetou de costas para o meio da sala. Um grito medonho partiu de todas aqueles gargantas enfurecidas: ‘Ao pau-de-arara, ao pau-de-arara com este filho da puta!'”
Alípio de Freitas deixa uma filha, a cantora brasileira Luanda Cozetti.
Alípio de Freitas foi homenageado pelo cantor português Zeca Afonso com a música “Alípio de Freitas”, do disco “Com as minhas tamanquinhas”. Letra da música:
“Baía de Guanabara/Santa Cruz na fortaleza/Está preso Alípio de Freitas/Homem de grande firmeza/Em maio de mil setenta/Numa casa clandestina/Com companheira e a filha/Caiu nas garras da CIA”.
Ouça a música: (ver fonte)

Morreu Alípio de Freitas

Foi padre português, revolucionário brasileiro, cooperante em Moçambique. Privou com os grandes do mundo em Moscovo e partilhou a sorte dos camponeses no sertão nordestino. Preso, torturado, libertado, voltou a Portugal e foi jornalista da RTP. Morreu hoje, aos 88 anos de idade.

Alípio Cristiano de Freitas nasceu em 1929, em Trás-os-Montes. Ordenado padre em 1952, desde logo quis viver junto das comunidades a quem se dirigia. Instalou-se primeiro junto dos camponeses pobres na Serra de Montesinho.
Foi depois para o Brasil, a convite do arcebispo do Maranhão. Deu aulas na universidade e fundou uma paróquia. Queria ser entendido e recusou dizer missa em latim. Disse-a depois em português, desafiando uma Igreja que ainda tinha por fazer o aggiornamento do Concílio Vaticano II.
Mas a mensagem nada valia sem a acção: Alípio de Freitas empenhou-se em organizar a criação de uma escola e de um posto médico. Envolveu-se na luta política e apoiou a candidatura de Miguel Arraes ao governo do Estado de Pernambuco, numa ampla coligação de comunistas, trabalhistas e social-democratas. Essa ousadia valeu-lhe um primeiro sequestro por um grupo paramilitar e detenção durante mais de um mês à ordem do Exército.
A detenção não o intimidou, antes acresceu a sua determinação. Naturalizou-se brasileiro e, ao lado de Francisco Julião, tornou-se co-fundador das Ligas Camponesas. Organizou a ocupação de latifúndios no que era um sinal precursor do actual Movimento dos Sem Terra.
O dirigente bloquista Alberto Matos, que militou com Alípio na fase final da vida deste, recordou recentemente a indignação que ecoava ainda na voz do amigo, várias décadas depois, sobre os pistoleiros pagos pela oligarquia terratenente para matarem camponeses pobres, que queriam terra para dar de comer aos filhos.
Depois de ter enterrado vários desses pacíficos ocupantes de terras, Alípio cada vez mais se foi decidindo a organizar a auto-defesa do movimento: pistoleiros e mandantes deveriam doravante recear as consequências dos seus crimes. Viria a ser citado anos mais tarde com o apelo: "Trabalhadores, ontem vos ensinei a rezar e hoje aqui estou para ensinar-vos a pegar em armas e lutar".
Com o golpe militar de 1964, o ex-padre partiu para Cuba, onde recebeu instrução de guerrilha. Antes, em 1962, estivera na URSS, para participar no Congresso Mundial da Paz. Aí conheceu o dirigente soviético Nikita Kruchev, o poeta chileno Pablo Neruda e a lendária dirigente espanhola Dolores Ibarruri.
Na clandestinidade, foi dirigente do Partido Revolucionário dos Trabalhadores. Em maio de 1970 foi capturado e sujeito a intensa tortura. Recusou sempre prestar declarações e apenas deve a vida à ampla campanha de solidariedade internacional de que foi alvo. Nessa campanha se inscreve a canção que lhe dedicou Zeca Afonso, no álbum Com as Minhas Tamanquinhas.
Libertado em 1979, após várias intervenções da diplomacia portuguesa, foi viver para Moçambique, e pôs a sua expriência nas Ligas Camponesas ao serviço da reforma agrária no novo país lusófono. Foi alvo de um atentado dos serviços secretos sul-africanos, que, por engano, vitimou um companheiro da mesma cooperativa onde trabalhava.
Regressou a Portugal ainda na década de 1980, tendo trabalhado na RTP até 1994. Foi co-autor de vários programas (“Fim de Semana”, com Mário Zambujal, Carlos Pinto Coelho e José Nuno Martins, “À procura do socialismo”, com Mário Lindolfo). Foi também eleito para a Comissão de Trabalhadores da RTP. A actual CT fez-se representar ao lado de centenas de pessoas, algumas delas trabalhadores da RTP, numa homenagem a Alípio de Freitas, em janeiro de 2017, recordando esse seu mandato precursor.
Embora tivesse perdido completamente a visão nos últimos anos, Alípio de Freitas continuava a ser uma presença constante, sempre guiado pela sua companheira Guadalupe, em movimentos de solidariedade internacional ou de protesto cívico. Ainda há poucos dias, recém-saído de um internamento hospitalar, interveio de forma marcante numa cerimónia realizada no Museu do Aljube.
O velório de Alípio de Freitas decorre na Basílica da Estrela. O funeral realiza-se quarta-feira para o cemitério do Alvito, Alentejo, onde viveu uma parte dos seus últimos anos. RTP

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