..."Como é que o Ministério das Finanças explica aos contribuintes que um agricultor que explora uma pequena parcela no Douro tenha de pagar IMI e os donos de megaconstruções de betão estejam isentos de tributação?"
..."Ou como Eduardo Catroga, antigo ministro das Finanças de Cavaco Silva e guru de Passos Coelho nas negociações com a troika que precipitaram a privatização da EDP: passou a representar os chineses da Three Gorges no conselho geral e de supervisão. Órgão entretanto presidido por Luís Amado — que foi MNE e ministro da Defesa de José Sócrates, passando pelo defunto Banif até chegar à EDP."
O dilúvio Fiscal da EDP
Se as comissões parlamentares fizessem o teste do polígrafo aos presidentes das empresas que têm lesado o Estado português, Miguel Stilwell teria corado de vergonha quando afirmou que a EDP não pratica planeamento fiscal.
Sucede que, ainda antes do processo de privatização da EDP que, com a bênção da troika, a passou para as mãos do Estado chinês via China Three Gorges, um estudo da SOMO (um centro de pesquisa holandês que monitoriza as multinacionais) revelou dados surpreendentes acerca da EDP.
A EDP fez como as principais empresas do índice PSI-20: deslocalizaram artificialmente as suas sedes para a Holanda, com o objetivo de escapar ao pagamento de impostos. Obrigando os contribuintes cumpridores a suportarem o ónus da carga fiscal: segundo dados oficiais da Comissão Europeia, anualmente mais de um milhão de milhões de euros de impostos devidos nunca chegam a entrar nos cofres dos Estados-membros; e, por isso, cada contribuinte que os paga arca, em média, com 2000 euros adicionais.
O caso EDP é moralmente inaceitável e legalmente questionável.
A EDP Finance BV, a holding que a EDP instalou na Holanda, não passa de uma empresa-fantasma sediada numa caixa de correio. O esquema serve para refinanciar todas as empresas do grupo e fintar a Autoridade Tributária.
Ficámos a saber pela SOMO que um advance pricing agreement (acordo sobre preços de transferência e dupla tributação, que possibilita migrar lucros e definir a taxa de imposto a pagar), celebrado entre a EDP Finance BV e o fisco holandês, permitiu que a EDP eletrocutasse impostos entre 2008 e 2012, gerando lucros artificiais na Holanda no valor de 142 milhões de euros, sobre os quais pagou uma taxa de imposto de apenas 3,77%.
A Lei Geral Tributária, no artigo 38.º, dispõe que, sempre que seja usado um esquema para obtenção de vantagem fiscal contrário à lei vigente, o tributo devido tem de ser pago. Mas, até agora, a Autoridade Tributária nunca teve a coragem de enfrentar os poderosos em situações de clara violação das cláusulas anti abuso.
Ora, é precisamente este o caso da venda das barragens ao grupo Engie. A EDP valeu-se de um alçapão legal que, estranhamente, surgiu com a alteração do artigo 60.º dos Estatutos dos Benefícios Fiscais, permitindo isenção do pagamento de Imposto de Selo nas operações de reestruturação de empresas (isenções de IMT, emolumentos e outros encargos legais já lá estavam). E avançou com um processo de cisão através do destaque de parte dos seus ativos, criando uma empresa-veículo para a qual transferiu as concessões.
Destinada a, pouco depois, ser absorvida num processo de fusão com uma sociedade do consórcio francês.
Para além de se furtar a pagar 110 milhões de euros em imposto de selo através deste esquema de planeamento fiscal, a EDP de facto utilizou um artifício por etapas com enquadramento legal sobre violação das normas antia buso, sendo por isso da responsabilidade da AT a verificação da infração.
Mas, mesmo que a AT venha a fazer a EDP e Engie pagarem impostos, importa esclarecer porque surge a Proposta de Lei n.º 5/XIV, enviada pela Presidência do Conselho de Ministros à Assembleia da República durante a aprovação do Orçamento do Estado 2020: no que concerne a benefícios fiscais substituiu a palavra “empresas” por “entidades” (permitindo alargar os auxílios de Estado a consórcios) e aditou uma alínea que faculta a isenção do imposto de selo na transmissão de imóveis ou estabelecimento comercial nas operações de reestruturação de empresas — ou seja, abriu a porta ao trespasse da concessão das centrais hidroelétricas. Por isso, é imprescindível que o Governo esclareça porque submeteu aquelas alterações à AR, sob pena de se adensar a suspeita de uma lei feita à medida da operação da EDP.
A EDP é uma das portas giratórias pela qual têm passado os privilegiados membros do “clã dos centenários”, cerca de uma centena de personalidades que circula entre o Governo, Parlamento, escritórios de advogados, altos cargos na banca e na administração de multinacionais. Como António Mexia, que saiu da EDP para assumir a pasta de ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicação no Governo de Pedro Santana Lopes e regressou para presidente do conselho de administração da EDP, até ser impedido de exercer funções, juntamente com o administrador Manso Neto, por decisão judicial.
Ou como Eduardo Catroga, antigo ministro das Finanças de Cavaco Silva e guru de Passos Coelho nas negociações com a troika que precipitaram a privatização da EDP: passou a representar os chineses da Three Gorges no conselho geral e de supervisão. Órgão entretanto presidido por Luís Amado — que foi MNE e ministro da Defesa de José Sócrates, passando pelo defunto Banif até chegar à EDP.
Advogados da Morais Leitão prestaram assessoria jurídica à EDP na venda das barragens do Douro ao consórcio francês liderado pela Engie, que por sua vez foi representado pela Cuatrecasas. São estes dois dos escritórios de advogados que faturam milhões a diferentes entidades do Estado, pelos muitos pareceres e assessoria jurídica que prestam, com acesso a informação privilegiada suscetível de influenciar a decisão das autoridades reguladoras. Neste processo e noutros, sem que ninguém questione inerentes conflitos de interesse...
Pois não foi este mesmo escritório de advogados que, ao mesmo tempo que assessorou a EDP no processo de venda das barragens, foi prestando assessoria jurídica à Secretaria-Geral do Ministério das Finanças, à Direção-Geral do Tesouro e Finanças, à Agência para a Energia, à CMVM e a muitas outras entidades públicas?! Olha que coincidência!
A simples operação de cisão e destaque de ativos, com a transferência das concessões para uma nova empresa, implicaria pareceres e acompanhamento técnico por outras entidades do Estado, designadamente, a Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF) e a Inspeção-Geral de Finanças (IGF), cujas atribuições incluem “Avaliar e controlar a qualidade dos serviços prestados ao cidadão por entidades do setor público, privado ou cooperativo, em regime de concessão”.
Há por isso questões que o Governo tem de esclarecer:
1. Foram elaborados pareceres por parte da DGTF e da IGF que fundamentassem a decisão superior na defesa do interesse público?
2. Por que razão não se procedeu à desafetação da concessão dos ativos que foram incluídos no contrato inicial, que remonta aos anos 70 do século passado, designadamente, as pedreiras desativadas e empreendimentos como a Pousada e outros edifícios na barragem de Picote, património classificado que se encontra ao abandono e poderia ser requalificado e usado como polo de desenvolvimento regional?
3. Um estudo realizado pelo Movimento Cultural das Terras de Miranda salienta que três das seis barragens vendidas à Engie estavam escrituradas nas contas da EDP por 78 milhões de euros. Ora, no negócio que rendeu 2,2 mil milhões à EDP foram transacionadas por 1,7 mil milhões! Ninguém se preocupou com o reequilíbrio financeiro do contrato?
4. A transmissão das concessões não deveria incluir um conjunto de contrapartidas para compensar as comunidades locais pelos impactos ambientais, económicos e sociais que as expropriações, as construções de betão e a exploração dos recursos hidroelétricos provocaram ao longo do tempo?
5. Por que razão a adenda feita em 2007 ao contrato inicial prolongou o período de concessão de 26 barragens até 2042 (ultrapassando o prazo máximo de 75 anos estipulado por lei para a vigência de uma concessão), a troco de 759 milhões de euros, quando a transmissão de apenas seis barragens rendeu 2,2 mil milhões à EDP?
6. O prazo inicial da concessão terminaria em 2029 e permitiria ao Estado recuperar o usufruto dos ativos e redeÆnir a estratégica da gestão dos recursos hidroelétricos. Agora, o Estado autorizou a transferência das concessões para uma empresa que não conhecia e nem sequer existia à data do despacho de autorização, sem cláusulas de salvaguarda do interesse público. Como se justiÆca a negligência?
7. Como é que o Ministério das Finanças explica aos contribuintes que um agricultor que explora uma pequena parcela no Douro tenha de pagar IMI e os donos de megaconstruções de betão estejam isentos de tributação?
O caso EDP pode ilustrar a captura do poder político por interesses económicos e a desqualificação dos quadros técnicos do Estado no domínio da inspeção. Já o escrutínio público tardou, mas está aí: as barragens não vão submergir pelo dilúvio fiscal! Veremos no que dá o processo instaurado pelo Ministério Público por indícios de crimes de corrupção, participação económica em negócio e fraude fiscal qualificada. Aguardemos o que faz a comissária europeia da Concorrência sobre os auxílios de Estado ilegais inerentes a esta “borla fiscal” em favor da EDP e da Engie. Esperemos que a culpa não morra solteira, uma vez mais.
(Ana Gomes, diplomata aposentada e ex-eurodeputada; João Pedro Martins, economista)
Olha que "duas biscas"
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