sexta-feira, 30 de abril de 2021

Mais um artigo de opinião acerca da liberdade de expressão, da parte de Francisco Teixeira da Mota

Beliscar a PSP

Escrever Direito


 O mundo da justiça, contrariamente ao que se poderia pensar, não se ocupa só de corrupção, nulidades e prescrições, mas também se debruça sobre a literatura e a poesia. 
 Poderia pensar-se que o evento de poesia judicial que hoje nos ocupa teria ocorrido numa qualquer época obscurantista em que a nossa gloriosa história é fértil, mas não foi. Foi no dia 7 de Março de 2020, pela 1h45, na Rua Domingos Sequeira, em Lisboa, que o Pedro foi detido por um agente da PSP quando estava a afixar cartazes com o poema Quando for grande, que reproduzimos: 

“Quando for grande quero ser polícia para bater nos pais de outros meninos em frente aos outros meninos. O meu pai sempre me disse: cuidado a quem dás bastonadas. Nunca dês bastonadas a um preto se não vão achar que és racista. Se deres bastonada a um branco estarás apenas a ser polícia.

 Ainda bem que não somos pretos. Imaginem se fôssemos pretos. Já não podia ser polícia.” Foi, assim, detido o Pedro, que, constituído arguido, se recusou a prestar declarações; apurou, entretanto, a PSP que tinha sido uma tal Ana que tinha pedido ao arguido Pedro para afixar os cartazes e que os mesmos reproduziam um poema que tinha sido extraído de um livro de poesia denominado Erosão, da autoria de Gisela Casimiro. Foi a Ana chamada ao processo e também constituída arguida. Interrogada, esclareceu que tinha solicitado ao Pedro que afixasse os cartazes para que as pessoas vissem o poema na rua, não só com o objectivo de divulgar uma exposição da escritora e artista Gisela Casimiro que iria ser inaugurada no espaço O Armário, na Calçada da Estrela, de que era curadora, mas também pelo facto de o poema estar na rua, fazer parte do próprio projecto expositivo. A Ana explicou, ainda, que não tinha qualquer intenção de, através dos cartazes, imputar à polícia portuguesa qualquer “facto concreto ou desvalor”. 
 O agente da PSP que tinha detido o Pedro também foi ouvido e, segundo parece, entendera o poema como injurioso para a PSP, sendo certo que ninguém lhe explicara que a afixação dos cartazes se inseria na exposição da artista Gisela Casimiro.  Ouvida a poetisa, confirmou que, como resultava do próprio poema, o mesmo não visava nenhum agente policial em concreto nem nenhuma concreta força policial, nacional ou estrangeira. O processo ainda foi instruído com diversas fotografias dos cartazes afixados na via pública, até que o Ministério Público (MP) declarou encerrado o inquérito. É, seguramente, difícil para qualquer cidadão comum descobrir um crime nesta história, se exceptuarmos a detenção ilegal do Pedro, mas o MP fez um esforço, afastou a inicial injúria agravada e admitiu que pudesse estar em causa o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, que determina que “quem, sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública (...), é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias”. Mas rapidamente concluiu o MP que o Pedro não podia ser culpado de nada, já que se tinha limitado a colar os cartazes conforme lhe tinha sido solicitado; já quanto à Ana, admitiu o MP que a mesma tivesse extravasado na crítica efectuada à PSP (!), mas que do texto (o poema de Gisela Casimiro) não resultava menosprezo por aquela instituição nem que a crítica tivesse sido feita com o afim de denegrir a imagem da PSP. Na verdade, afirmou o Ministério Público, “não vislumbramos que as considerações efectuadas [o poema de Gisela Casimiro] tenham sido susceptíveis de beliscar a confiança e a credibilidade” da PSP, pelo que, não tendo sido recolhidos indícios suficientes da prática de crimes pelos arguidos Pedro e Ana, no passado dia 28 de Março, determinou o arquivamento do processo. 

Moral da história: 
 a poesia é uma arma, a poetisa Gisela Casimiro, no futuro, seguramente que recordará com emoção este épico momento em que quase beliscava a PSP e todos nós ficámos preocupados quanto ao conhecimento, que existirá dentro da PSP, sobre o que dispõe a Constituição e as leis sobre a nossa liberdade de expressão.

 (Jornal Público)

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