Beliscar a PSP
Escrever Direito
O mundo da justiça,
contrariamente ao que se
poderia pensar, não se
ocupa só de corrupção,
nulidades e prescrições, mas
também se debruça sobre a
literatura e a poesia.
Poderia pensar-se que o evento de poesia
judicial que hoje nos ocupa teria ocorrido
numa qualquer época obscurantista em que
a nossa gloriosa história é fértil, mas não foi.
Foi no dia 7 de Março de 2020, pela 1h45, na
Rua Domingos Sequeira, em Lisboa, que o
Pedro foi detido por um agente da PSP
quando estava a afixar cartazes com o
poema Quando for grande, que
reproduzimos:
“Quando for grande quero ser polícia para
bater nos pais de outros meninos em frente
aos outros meninos. O meu pai sempre me
disse: cuidado a quem dás bastonadas.
Nunca dês bastonadas a um preto se não vão
achar que és racista. Se deres bastonada a
um branco estarás apenas a ser polícia.
Ainda bem que não somos pretos. Imaginem se fôssemos pretos. Já não podia ser polícia.”
Foi, assim, detido o Pedro, que,
constituído arguido, se recusou a prestar
declarações; apurou, entretanto, a PSP que
tinha sido uma tal Ana que tinha pedido ao
arguido Pedro para afixar os cartazes e que
os mesmos reproduziam um poema que
tinha sido extraído de um livro de poesia
denominado Erosão, da autoria de Gisela
Casimiro.
Foi a Ana chamada ao processo e também
constituída arguida. Interrogada, esclareceu
que tinha solicitado ao Pedro que afixasse os
cartazes para que as pessoas vissem o
poema na rua, não só com o objectivo de
divulgar uma exposição da escritora e artista
Gisela Casimiro que iria ser inaugurada no
espaço O Armário, na Calçada da Estrela, de
que era curadora, mas também pelo facto de
o poema estar na rua, fazer parte do próprio
projecto expositivo. A Ana explicou, ainda,
que não tinha qualquer intenção de, através
dos cartazes, imputar à polícia portuguesa
qualquer “facto concreto ou desvalor”.
O agente da PSP que tinha detido o Pedro
também foi ouvido e, segundo parece,
entendera o poema como injurioso para a
PSP, sendo certo que ninguém lhe explicara
que a afixação dos cartazes se inseria na
exposição da artista Gisela Casimiro. Ouvida
a poetisa, confirmou que, como resultava do
próprio poema, o mesmo não visava
nenhum agente policial em concreto nem
nenhuma concreta força policial, nacional
ou estrangeira. O processo ainda foi instruído com diversas fotografias dos
cartazes afixados na via pública, até que o
Ministério Público (MP) declarou encerrado
o inquérito.
É, seguramente, difícil para qualquer
cidadão comum descobrir um crime nesta
história, se exceptuarmos a detenção ilegal
do Pedro, mas o MP fez um esforço, afastou
a inicial injúria agravada e admitiu que
pudesse estar em causa o crime de ofensa a
organismo, serviço ou pessoa colectiva, que
determina que “quem, sem ter fundamento
para, em boa-fé, os reputar verdadeiros,
afirmar ou propalar factos inverídicos,
capazes de ofender a credibilidade, o
prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam
autoridade pública (...), é punido com pena
de prisão até seis meses ou com pena de
multa até 240 dias”.
Mas rapidamente concluiu o MP que o
Pedro não podia ser culpado de nada, já que
se tinha limitado a colar os cartazes
conforme lhe tinha sido solicitado; já quanto
à Ana, admitiu o MP que a mesma tivesse
extravasado na crítica efectuada à PSP (!),
mas que do texto (o poema de Gisela
Casimiro) não resultava menosprezo por
aquela instituição nem que a crítica tivesse
sido feita com o afim de denegrir a imagem da
PSP. Na verdade, afirmou o Ministério
Público, “não vislumbramos que as
considerações efectuadas [o poema de
Gisela Casimiro] tenham sido susceptíveis
de beliscar a confiança e a credibilidade” da
PSP, pelo que, não tendo sido recolhidos
indícios suficientes da prática de crimes
pelos arguidos Pedro e Ana, no passado dia
28 de Março, determinou o arquivamento
do processo.
Moral da história:
a poesia é uma arma, a
poetisa Gisela Casimiro, no futuro,
seguramente que recordará com emoção
este épico momento em que quase beliscava
a PSP e todos nós ficámos preocupados
quanto ao conhecimento, que existirá
dentro da PSP, sobre o que dispõe a
Constituição e as leis sobre a nossa liberdade
de expressão.
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