Só amamos as batalhas difíceis
O processo Marquês nunca foi
um processo judicial, mas um
processo político. Foi
concebido e executado para
me afastar do debate público e
para impedir a minha
candidatura a Presidente da República, que a
direita dava como certa. Teve igualmente
como objetivo criminalizar as políticas do
Governo que liderei e, desta forma, legitimar
as políticas de austeridade do Governo que
me sucedeu. Em dois pontos, constituiu um
sucesso absoluto — o PS perdeu as eleições
legislativas e o candidato Marcelo Rebelo de
Sousa pôde ser eleito sem que o PS apoiasse
qualquer candidato presidencial, o que
aconteceu pela primeira vez na democracia.
No entanto, como tantas vezes aconteceu na
história, o golpe, vítima do seu próprio êxito,
escapou das mãos dos seus artífices. A
extrema-direita viu nele a oportunidade para
julgar o regime e a democracia — afinal de
contas, era um antigo primeiro-ministro
acusado de corrupção. De certa forma, o
processo Marquês, e as diversas
cumplicidades que com ele se
estabeleceram, constituiu um marco
importante no nascimento e afirmação do
primeiro partido da extrema-direita no
Portugal democrático.
O processo teve também uma longa
preparação. Antes dele, houve duas outras
tentativas de criar um processo judicial
contra mim — o Freeport e as chamadas
“escutas de Belém”. Ambas foram
desmascaradas e ambas falharam. A
primeira teve origem no gabinete do
primeiro-ministro de então; a segunda na
Casa Civil do Presidente da República.
Quando decidiram tentar de novo,
asseguraram-se de que toda a gente estaria a
seu lado — um Governo, uma maioria, um
Presidente e uma procuradora-geral. Faltava
um juiz. A obrigação legal do sorteio foi
então substituída pela “atribuição manual” e
o jogo foi viciado. Agora, o juiz era o seu juiz,
escolhido por quem nada quis deixar ao
acaso. Eis a trapaça, agora denunciada na
decisão instrutória. Eis o escândalo de que
ninguém parece querer falar.
Nada disto tinha tradição na política
portuguesa. A instrumentalização do
combate à corrupção para combater o
inimigo político é mais própria de outras
latitudes. Na verdade, o Governo Passos
Coelho foi o primeiro em democracia a iniciar
esta caça ao homem. Após as eleições, a
primeira preocupação foi a de criminalizar as
políticas do Governo anterior, única forma
que encontraram de legitimar as suas. A
ministra da Justiça da altura deu o tom —“acabou a impunidade”. A partir daí, valeu
tudo: inquérito sobre gastos dos gabinetes,
inquérito sobre as PPP, inquérito sobre a EDP,
inquérito sobre a PT, sobre o TGV, sobre a
diplomacia económica na Venezuela, sobre a
Parque Escolar, estas últimas devidamente
acondicionadas no chamado processo
Marquês. Escapou alguma coisa? Talvez o
Magalhães, o inglês na primária, as Novas
Oportunidades. Muito por onde escolher.
Quando chegou a primeira imagem da
detenção, estava tudo a postos. O clima de
ódio instalado, a televisão da lei e da ordem
atribuída à Cofina e o futuro chefe da
extrema-direita com emprego — o de
comentador principal da Operação Marquês.
A televisão dá-lhe visibilidade e o líder do
partido a oportunidade de se lançar na
política. Depois de um pequeno teste numa
campanha municipal e de uma primeira fala
sobre ciganos, fica absolutamente claro que
a direita salazarista nunca deixou de existir e fica igualmente claro o que quer ouvir. Chega
de uma direita tímida e civilizada. Depois de
Trump e de Bolsonaro, chegou o momento
de afirmação — violência, ódio e intolerância.
A moderação e o civismo democrático são filhos do politicamente correto e é preciso
acabar com isso. O momento simbólico dá-se
quando os polícias se manifestam em frente
à Assembleia da República e cantam o hino
nacional voltados de costas para o
Parlamento. Aplaudem freneticamente o
deputado de extrema-direita, que é também
o único a discursar aos manifestantes. Têm
agora à sua frente tudo aquilo com que há anos sonharam — ordem, pátria, autoridade,
os eternos ontem.
A esquerda, pelo seu lado, finge e finge e finge: o Partido Comunista considera as
reivindicações dos polícias justas; o Bloco de
Esquerda critica o Governo por ter sido tão
indiferente a essas legítimas aspirações; e o
Partido Socialista lembra tudo o que fez pela
organização policial. Os manifestantes
sentem imediatamente o cheiro da covardia
e garantem que doravante serão os donos
das ruas. A manifestação, na verdade, nada
tem a ver com reivindicações profissionais.
Ela pretende, isso sim, afirmar uma nova
cultura política, a caminho de um estado
policial.
Neste longo período, que tem agora mais
de dez anos, a crise, o terror, os refugiados e
os imigrantes criaram o ambiente propício para endurecer as leis, dar mais poderes às
autoridades e enfraquecer as liberdades
individuais. Como sempre, a caçada foi feita
de arrasto, sem distinguir culpados e
inocentes. O que importa é mostrar serviço:
acusar, difamar, insultar. Tudo é suspeito,
tudo é criminoso, até se provar que não é. Eis
o caminho que despertou a memória
histórica da inquisição e a cultura penal por
detrás dela — o julgamento passa a ser feito
por quem acusa e o direito de defesa e a
presunção de inocência, bases do Direito
moderno, transformam-se lentamente em
presunção pública de culpabilidade. A
“morosidade insuportável” dos julgamentos
acabou. Nós, procuradores e polícias,
faremos a nossa própria justiça — já não
precisamos de juízes independentes e
imparciais. Foi este o caldo cultural que
esteve no bojo do processo Marquês, que o
permitiu e que o impulsionou. E ao qual a
esquerda — toda a esquerda — assistiu em
silêncio.
No final, anotemos o essencial. Primeiro,
todas as alegações contidas na acusação — a
fortuna escondida e a corrupção — caíram
com estrondo. Segundo, fica agora
absolutamente claro que, durante o meu
mandato como primeiro-ministro, não foi
identificada nenhuma conduta contrária aos
deveres do cargo. Nunca. Pronto, este foi o
primeiro passo.
No entanto, o juiz de instrução não resistiu
à tentação de criar novas acusações.
Pronuncia-me por um crime de que nunca
estive acusado e do qual nunca me pude
defender. Transforma o alegado “testa de
ferro” em “corruptor” sem comunicar aos
visados esta alteração de factos. Passei sete
anos a defender-me da mentira da fortuna
escondida e no final ouço, pela primeira vez,
que há indícios (que alguns imediatamente
transformam em provas e em sentença
transitada em julgado) de um crime que já
prescreveu. Essa acusação é tão injusta e
falsa como as outras e dela me defenderei
mais à frente.
Por agora, que fique claro que as acusações
de corrupção no TGV, na diplomacia
económica com a Venezuela, em Vale do
Lobo, na PT e na ligação aos interesses do
BES eram fantasiosas, incongruentes e sem
nenhuma lógica, para usar as expressões do
juiz. E, todavia, tive de as ouvir todos os dias
reproduzidas nas televisões como se fossem
factos provados. E todavia, foi por elas, com
base nelas, que foi decretada a prisão,
pormenor que os moralistas de turno
decidiram pôr de lado, por inoportunidade.
Bom, a batalha foi longa e dura, mas a
solidão do combate deu-lhe uma beleza
singular. Houve momentos em que parecia
nada mais existir, a não ser essa vontade
interior que “mantém acordada a coragem e
o silêncio”. Não, não esqueço a ignomínia,
mas celebro a oportunidade de vencer esta
etapa. E vencerei a próxima porque nunca
cometi nenhum crime. Para alguns, esta foi a
vitória possível. Talvez. Seja como for, só
amamos as batalhas difíceis.
O Coelho a defender um ex-primeiro-ministro corrupto. Nada de novo para quem já foi à cadeia visitar presidentes de Câmara do PSD que foram apanhados a roubar.
ResponderEliminarJosé António Jardim a botar faladura contra o nosso amigo Coelho que por vezes em tempos colaborou com a nossa redação
EliminarColaborou ou é o dono do blogue? Cantas bem...
EliminarAh! não sejas tonto ! o Coelho não tem categoria para escrever um blog com a categoria do Pravda Ilhéu!
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