sexta-feira, 1 de maio de 2015
Lembrando Brecht
Mais de oitocentos homens, mulheres e crianças terão morrido vítimas de um naufrágio no Mediterrâneo. Na imprensa lê-se que foram oitocentos, que terão sido novecentos, que foram mais de novecentos. Ao certo não sabemos quantos foram. O seu estatuto de ilegais banaliza os números. Quando (e se) se procurarem os cadáveres, que diferença fará mais um ou menos um quando não há uma família para reivindicar o luto do corpo e o carpir das mágoas? Diz-se que eram «imigrantes» e «refugiados», que procuravam chegar à UE através do território italiano, com ou sem «justificação» para aspirar à «legalidade» não sabemos, nem nunca chegaremos a saber. Um jornal informa que nem só no Mediterrâneo se morre e que nos Balcãs mais de uma dezena de imigrantes foi atropelada por um comboio. E estas foram apenas as notícias mais recentes, uma espécie de sobressalto na já rotineira morte de imigrantes. Razão e lógica que nos leva a perguntar: quantos terão escapado ao escrutínio, jazendo no fundo do mar ou numa vala comum? Diz-se que estamos perante um maior fluxo. Como se as razões que o explicam não fossem a consequência lógica da violação da soberania da Líbia, da Síria, do Iraque, do Iémen, do apoio com armas e treino a grupos de extrema-direita e terroristas e das guerras que os EUA, as potências da NATO, da UE e os seus aliados levam a cabo. Como se os tratados e acordos ditos de livre comércio que permitem ao grande capital dominar recursos naturais e mercados fossem meios para melhorar a situação desses países e regiões e não as razões que explicam o drama humano que se vive em muitos países africanos e do Médio Oriente.A UE é um mar de hipocrisias em que da aparente preocupação nasce a medida que agravará ainda mais a situação. As decisões tomadas pelo Conselho Europeu extraordinário, supostamente para fazer face ao número crescente de mortes são um paradoxo que segue a lógica do governo italiano de Renzi (social-democracia) que decidiu terminar com a missão italiana de salvamento no mar por tal atrair mais imigrantes. As mortes, as agressões, as violações e todos os outros crimes que são cometidos pelos traficantes camuflam-se pela criminalização dos imigrantes e da ilegalidade que lhes é imposta. Uma maior militarização da política de imigração da UE, supostamente para combater os traficantes, terá como consequência o aumento do tráfico, como se constata pelas missões em curso. Os traficantes esfregam as mãos de contentamento, a suposta dificuldade aumenta o risco e este inflaciona o valor cobrado aos imigrantes. A fazer contas aos lucros estarão também os bancos e os paraísos fiscais por onde circulam os lucros crescentes do que é considerado um dos mais florescentes negócios deste século, o tráfico de seres humanos. A UE defende mais acordos com os chamados países de trânsito ou de origem para colocar longe da porta a repressão dos imigrantes, que tão má fama dá a uma UE em queda livre de apoio. A mais obtusa das medidas agora apresentadas é a destruição de barcos. Quando se pensa que se atingiu o limite do ridículo aí está a evidência do contrário. Imaginamos a soldadesca de fuzil em punho e perguntar a um pescador líbio, tunisino ou outro se o seu barco é mesmo para pescar ou se pretende vendê-lo ou usá-lo para traficar imigrantes… que se destrua o barco.Não será ilógico esperar que o tempo traga mais mortes para contar. Para elas nos empurram os lamentos hipócritas do costume ou decisões como as da UE. Independentemente da banalização dos números dos que morrem, entram ou são expulsos, banaliza-se a história de todos e cada um desses seres humanos. No último degrau do desespero ou no primeiro da esperança, são sobretudo os jovens que saem dos seus países para fugir à fome, à miséria, à violência ou à morte. E arriscam a morte na esperança de uma vida melhor. Aspiram à dignidade humana e ao exercício do direito à sua emancipação social. Mas neste como noutros domínios da vida no capitalismo nem todos são iguais, há os que têm meios para pagar a um traficante ou a uma rede e os que ficam para trás porque nem isso podem fazer. Os que escapam ao filtro da morte e ao crivo da necessidade do grande capital podem ficar, até ao dia em que deixarem de ser úteis, aí são de novo recambiados. A UE não dá ponto sem nó. (fonte)
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