Foi a Edmundo Pedro que Bento Gonçalves, o então secretário-geral do PCP, disse, antes de morrer no Tarrafal: “Edmundo, já tenho passaporte para o outro mundo”. Eram tão poucos a lutar contra a ditadura porquê? Edmundo Pedro: “Pela mesma razão com que aguentamos tudo. Quem é que resistiu à ditadura? Foi muita gente? Não, foi um grupo muito pequeno!”. Vasco Lourenço compara com o presente: “Pode ligar isso à actual situação.
Estamos a ser esbulhados e continuamos a aguentar estes fulanos no poder. Como é possível que ainda haja a hipótese de eles ganharem as eleições? Isto diz-nos como foi possível a ditadura aguentar tantos anos”.
Vasco Lourenço diz que Otelo era “muito influenciável pela opinião que ouvia antes de se deitar”. Todas as noites, um deles passava pelo Copcon para falar com Otelo
Edmundo Pedro é o nosso último herói romântico. A vida dele dava um filme que ainda ninguém fez só porque não. É esse romantismo incorrigível, que o levou a ser preso aos 15 anos, a jurar sobre uma campa de um companheiro de prisão morto que tudo faria para derrubar a ditadura quando quase ninguém o fazia, a alinhar no golpe de Beja com três filhas pequenas porque era “seu dever”, a aguentar calado a prisão já em democracia por ter sido apanhado com as armas que foram distribuídas ao PS – que todos os anos o faz convocar um almoço com capitães de Abril na sua casa perto da praia do Meco.
Estão vários protagonistas, alguns não puderam vir. Otelo, Vasco Lourenço, Aprígio Ramalho, Pita Alves, mulheres, filhos, amigos. Também o capitão Carlos Cruz Oliveira, médico militar no 25 de Abril, que estava no Estado-Maior e “prendeu uns generaizitos” e foi “o único oficial das Forças Armadas que depois do 25 de Novembro foi julgado por deserção”.
Carlos Cruz Oliveira gosta muito de Edmundo Pedro, menos daquilo a que chama o seu “mandelismo”. “Mandela esteve preso 28 anos e depois ficou amigo do carcereiro. E tu tens muito isso”, diz a Edmundo Pedro, que sorri e de certa maneira concorda: “Recebo um ex-pide em casa. Esse é o meu exagero”.
Sim, isto acontece todos os anos, por altura das festas do Natal. Trata-se do pide que o prendeu durante o processo do golpe de Beja, quando Edmundo Pedro ensaiou uma fuga falhada, atirando pimenta para os olhos do pide Sardinha, “um gigante. Edmundo Pedro tinha um carro à porta mas, azar, o carro estava trancado. Desatou a correr quando viu o Sardinha sair da porta do tribunal, Sardinha ainda lhe agarrou o casaco, mas ele deixou o pide com o casaco na mão e continuou a correr. Depois foi apanhado por outro pide, o que agora recebe em casa pelo Natal. Este pide garante a Edmundo Pedro que, ao prendê-lo, salvou-lhe a vida. “Se o Sardinha o apanhasse, matava-o”. Edmundo Pedro era operário e foi vítima de espancamentos brutais por parte da Pide, esteve na frigideira no Tarrafal (um sítio onde se morria de calor). Mas o pide que agora vem todos os Natais nunca lhe bateu. “Depois do 25 de Abril apareceu-me em minha casa. Eu funcionava como uma espécie de álibi para ele, que dizia: “Salvei a vida ao Edmundo Pedro”. Ele tinha saído da Pide cinco anos antes do 25 de Abril, já era guarda-livros. Era um miúdo, tinha vinte e poucos anos. Passou a ir a minha casa todos os Natais, vai lá desejar as boas festas”.
Manuel Alegre, de quem Edmundo Pedro é padrinho de casamento e padrinho do filho mais velho (Francisco, diplomata) ficou estupefacto ao saber a história do pide lá em casa. “Como é que tu recebes um pide em casa?”, perguntou a Edmundo Pedro. “Este pide é um desgraçado. Tem um complexo de culpa, está escangalhado”, respondeu Edmundo a Alegre. O pide, entretanto, começou a escrever artigos sobre humanismo para o jornal da terra dele.
“VIVA O PODER POPULAR” O almoço é cá fora, no jardim, umas sardinhas espectaculares. Otelo senta-se à mesa e, como se fizesse um brinde, levanta o punho e diz “Viva o poder popular”. Aos 78 anos, Otelo ri-se de si próprio, brinca com Edmundo Pedro (“Ó Edmundo, quando tu nasceste já o Manoel de Oliveira tinha feito a primária!”), provoca Vasco Lourenço (“vá, conta quem levou o documento dos Nove à CIA!!”), e até “encaixa” quando Vasco Lourenço conta a toda a gente que “Otelo era muito influenciável e todos sabíamos que ele ficava influenciado pela última opinião que ouvia antes de se deitar. E então fazíamos questão de todas as noites ir um de nós ao Copcon por volta das 11 horas, a ver se conseguíamos que a nossa opinião fosse a última que ele ouvia”. Quando Vasco Lourenço conta que almoçou com Carlucci e visitou o Pentágono, Otelo goza: “Isto é só desgostos! Só desgostos!” e depois ataca: “O Vítor Alves [porta-voz do Conselho da Revolução, já falecido] levou o documento dos Nove ao Carlucci para aprovação!”. Vasco Lourenço reage: “Qual aprovação?! O documento já estava aprovado!”. E contra-ataca: “Levámos-te o documento e tu disseste: ‘Concordo mas não assino'”. Depois Vasco Lourenço leva o documento assinado por nove conselheiros da revolução ao Presidente da República Costa Gomes que desata a gritar: “Isto vai ser uma guerra civil!”. Otelo confirma que concordava com partes do documento: “Concordava com as críticas ao PCP e que Vasco Gonçalves estava a ser instrumentalizado pelo PCP”. Mas não perdoa que o seu “querido amigo Vítor Alves tenha ido à embaixada americana mostrar o documento a Carlucci”. Vasco Lourenço: “Nós não necessitávamos do agreement do Carlucci!”.
Edmundo Pedro faz um ponto de ordem à mesa: “Fala-se muito do Carlucci e não se fala do Kalinine. Eu também falei com Carlucci, mas não falei com Kalinine. Vocês esquecem-se que o mundo esteve dividido ao meio e que a luta que se travava aqui tinha a ver com a luta entre duas potências. Eu sabia o que era a experiência soviética, tinha reflectido muito. Eu fui comunista, fui eleito para o comité central da juventude comunista ao mesmo tempo que Álvaro Cunhal. Sabia que a URSS era uma ditadura terrível que não respeitava os direitos humanos, conhecia a história do Gulag. Isto é a questão fundamental”. Vasco Lourenço concorda que se estivesse a naufragar e houvesse duas bóias, uma dos Estados Unidos e outra da União Soviética, também escolhia a dos Estados Unidos. Otelo concorda: “Sem dúvida. Entre os dois, talvez também preferisse o imperialismo americano”. (jornal I)
Fala-se no golpe falhado de Spínola no 11 de Março de 1975. Edmundo Pedro: “O Eanes esteve reunido em casa do major Manuel Monge até às 3 da manhã. Esteve a ver para onde caiam as coisas”. Diz que Otelo também era spinolista, mas não sabia”. Otelo: “Je? São bocas da reacção!”. E ri-se. Vasco Lourenço recorda que quando Spínola decidiu nomear Otelo chefe do Copcon e da Região Militar de Lisboa, tentou convencer Otelo a não aceitar as duas responsabilidades, conselho que Otelo não seguiu. Vasco Lourenço conta que disse a Otelo: “O caco [alcunha que os capitães davam a Spínola] está convencido que tu és spinolista, mas ele não te conhece. Vai ter uma desilusão do caraças!”.
Otelo aproveita agora para responder à acusação de que era influenciável. “Como é que me dizes que eu era influenciável quando a maior influência que eu podia receber era de Spínola?”. Vasco Lourenço: “Ele levou-te a aceitar os dois cargos e isso foi o princípio do fim!”. Otelo, mas agora a rir: “Está a dizer que eu era um incompetente quadrado?”. Vasco Lourenço: “Não tires conclusões erradas daquilo que eu digo. Qualquer um de nós na altura era inexperiente para uma tarefa isolada”.
Foi a Edmundo Pedro que Bento Gonçalves, o então secretário-geral do PCP, disse, antes de morrer no Tarrafal: “Edmundo, já tenho passaporte para o outro mundo”. Eram tão poucos a lutar contra a ditadura porquê? Edmundo Pedro: “Pela mesma razão com que aguentamos tudo. Quem é que resistiu à ditadura? Foi muita gente? Não, foi um grupo muito pequeno!”. Vasco Lourenço compara com o presente: “Pode ligar isso à actual situação. Estamos a ser esbulhados e continuamos a aguentar estes fulanos no poder. Como é possível que ainda haja a hipótese de eles ganharem as eleições? Isto diz-nos como foi possível a ditadura aguentar tantos anos”. (jornal I)
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